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NÃO ACABOU, TEM QUE ACABAR...



1. Surgimento e atualidade da Polícia Militar — uma herança da Colônia e da Ditadura


A primeira polícia militar foi fundada em 1809 no Rio de Janeiro, chamada de Guarda Real de Polícia, e tinha o intuito de proteger a família real portuguesa que chegava ao Brasil. Poucos anos depois, com a renúncia ao trono e o retorno de D. Pedro I a Portugal, a colônia enfrentou grande instabilidade política durante o período regencial, regado a revoltas populares. Naquele momento, a polícia funcionava para controlar a classe de marginalizados e escravizados, reprimindo manifestações culturais e cultos de religiões não católicas. O policiamento se tornou ainda mais central no cenário sociopolítico e econômico do país ao se expandir para as demais províncias coloniais. Detendo o monopólio da força, a Guarda era truculenta e servia para a manutenção da ordem, garantindo os interesses da classe escravocrata. Desde sua origem, a polícia esteve diretamente ligada à criminalização de movimentos populares, à violência contra o povo preto e pobre e à defesa da elite.


Dou um salto no tempo até a ditadura militar, momento em que a polícia militar tomou proporções e adquiriu características semelhantes às que conhecemos hoje. Anteriormente utilizada apenas para combater manifestações do povo pobre e das minorias, a partir da década de 1960 ela passou a ter a função de patrulhar as ruas, o que antes era feito por forças civis. Desse modo, o policiamento passou a ser militar e, portanto, diretamente ligado às Forças Armadas, com sua estrutura alicerçada na hierarquia e na obediência. Enxergando a população como inimiga, com seu modus operandi fundado na violência e na manutenção da ordem, a instituição PM sequer teve reformas que pudessem mudar seu modelo de atuação após o fim da ditadura.


Quanto aos números da violência policial, pode-se citar o registro de 242 chacinas, que totalizaram mais de 1100 mortos entre 2016 e 2018 [1], e 6416 mortes, ainda com a possibilidade de subnotificação, em 2020 [2]. Para efeitos de comparação, no ano de 2021, a Guerra da Síria registrou cerca de 3800 mortes[3]. A PM no Brasil mata mais do que uma guerra civil ao longo de um ano, e é fato que essas mortes têm classe e cor. A herança que nos cabe do período ditatorial é uma polícia letal que combate a população e defende a elite, tendo como alvos a população pobre e preta.


A PM vigia, agride, prende e mata sob um condicionante, o racismo: 80% das pessoas mortas por policiais em 2020 eram negras [4]. Isso escancara uma política letal de repressão contra esse grupo marginalizado. Seja para abordar, incriminar ou atirar, a PM age, como regra, de forma violenta e ataca constantemente os direitos humanos dessa parcela da população.

Mesmo recebendo baixo salário e com um grande contingente de pessoas negras na corporação, a PM não se identifica com a classe pobre de trabalhadores. A polícia atua, nesse sentido, como reprodutora do racismo estrutural e algoz do povo do qual se distancia, ao se entender muito mais como guardiã das elites do que do próprio povo, que o enxerga como inimigo.


Para isso, os policiais têm um treinamento militar humilhante e desumanizado que pouco apoia o indivíduo psicologicamente e que não permite questionamentos aos seus superiores, colocando-o sob constante pressão. Essa hierarquia tem em sua gênese a violência e as condições salariais precárias. A instituição é reacionária, e nela ainda imperam as doutrinas da ditadura. O produto disso? Mais policiais mortos por suicídio do que em combate, indivíduos em crise emocional e que atuam em estado de frenesi.


2. Desmilitarização

A militarização — desde a hierarquia e os treinamentos até o modus operandi — replica a mentalidade de que o uso da força é legítimo e sua função é exatamente a de reprimir a população e tratá-la como inimiga. Para superar essa realidade que perdura há séculos, mudanças estruturais são necessárias. Nesse sentido, o fim da PM brasileira é recomendado pela Comitê de Direitos Humanos da ONU, o que se justifica pelo seu nível de violência, baixa eficiência e constante violação dos direitos humanos.[5] Assim, a desmilitarização se apresenta como parte fundamental no caminho para mudar a realidade genocida dessa corporação, que encontra raízes coloniais, ditatoriais e racistas. .


Fato é que os policiais também anseiam pela desmilitarização, conforme aponta pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas da Fundação Getulio Vargas e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública.[6] Mais de 77% desses funcionários são a favor do rompimento desse vínculo com os militares.

Marielle Franco, ex-vereadora do Rio de Janeiro assassinada pelas milícias, se tornou símbolo da pauta da desmilitarização. A vereadora era reconhecida pela militância em prol da melhoria da qualidade de vida dos policiais e entendia que, apesar de suas condutas, eles também eram vítimas da estrutura autoritária e opressora. Dentre as pautas defendidas pela parlamentar estava a reforma da corporação e sua desvinculação dos militares como aspecto fundamental para diminuir da violência policial.


Primeiramente, sua defesa da desmilitarização tratava da desconstrução da ideia de um inimigo, na imagem da população que a PM combate, assim como das ideias de hierarquia extrema e obediência cega. Esses fatores transformam os policiais em máquinas de matar pobres[7], além de não permitirem que esses funcionários questionem ordens absurdas, organizem-se em sindicatos e possam ter voz. Vale pontuar que não se trata do rompimento com a hierarquia ou com a disciplina, mas da implementação de um ambiente democrático que favorece os policiais e colabora para uma melhora em suas vidas.


O que também seria combatido com a desmilitarização é a desumanização de quem trabalha na polícia, atentando-se às questões psicológicas desses indivíduos. Para isso, é necessário o acompanhamento psicológico de qualidade de quem trabalha na área da segurança pública a fim de enfrentar o grande número de casos de depressão e suicídio que assolam as corporações. Com essa mesma mentalidade, é fundamental a melhoria dos salários públicos, uma vez que a precarização desses policiais e as condições em que vivem atrapalham diretamente suas questões emocionais e seu desempenho no trabalho.


Os policiais precisam passar a se entender como parte da classe trabalhadora e não como seus algozes. É inaceitável uma polícia que protege a elite em detrimento dos direitos humanos do povo, que vigia, pune e mata quem vive em condição marginalizada e que age ainda sob o arquétipo da ditadura militar. A desmilitarização é o caminho para combater a violência intrínseca à PM, e é urgente.



Referências Bibliográficas:

[1] Policia já foi responsável por outras chacinas que marcaram o país relembre - Folha Uol - https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/10/policia-ja-foi-responsavel-por-outras-chacinas-que-marcaram-o-pais-relembre.shtml

[2]Racismo e as Violências Policiais - Le Brasil resiste https://lebresilresiste.org/racismo-e-as-violencias-policiais/

[3] Em 2021 siria teve menor número de mortos desde o início da guerra - Correio braziliense

[4] Racismo e as Violências Policiais - Lebresil resiste https://lebresilresiste.org/racismo-e-as-violencias-policiais/

[5] Países da ONU recomendam fim da polícia militar no Brasil - Portal G1 - Globo http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/05/paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-no-brasil.html

[7] Boca de Lobo - Criolo, 2018.


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