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O CASO CASTELINHO E A PROBLEMÁTICA DA VIOLÊNCIA POLICIAL NO BRASIL



Em 5 de março de 2002, foram assassinados doze membros do Primeiro Comando da Capital (PCC), evento que ficou conhecido como “Caso Castelinho”. Tais integrantes eram ex-presidiários e se encontravam dentro de um ônibus particular e duas picapes que, supostamente, tinham como destino o aeroporto de Sorocaba, com o presumido intuito de roubar uma carga de dinheiro avaliada em R$ 28 milhões, que estaria dentro de um dos aviões. Nesta mesma noite, o GRADI (serviço de inteligência da Polícia Militar) organizou-se para realizar uma operação contra o PCC, visando impedir o suposto roubo, e aproximadamente cem policiais cercaram a rodovia pela qual passaria o ônibus e as picapes. Todos os que estavam no transporte, os doze membros da facção, foram mortos, sendo disparados mais de 700 tiros.


Porém, após posterior apuração das provas, foi constatado que o suposto avião a ser roubado, não chegou sequer a pousar em Sorocaba (a cidade não estava na sua rota de viagem), levantando suspeitas de que a operação teria sido uma armação da PM, que plantou a história da carga de dinheiro a fim de ludibriar a quadrilha e, assim, atacar parte dela. Além disso, das dezesseis armas de fogo apreendidas após a operação, apenas duas apresentavam manchas de sangue, ou seja, grande indicativo de que não houve troca de tiros entre os policiais e os membros, além do fato de nenhum policial ter saído ferido. Logo, teorizou-se que houve um possível massacre por parte da polícia.


Com isso, as famílias das vítimas processaram o Estado brasileiro, alegando que houve abuso de poder por parte dos policiais, e buscaram indenizações pelas mortes de seus entes. No entanto, a justiça de São Paulo absolveu todos os policiais em 2003, decisão que foi mantida pelo Tribunal de Justiça. Por se tratar de um possível caso de violência policial, o caso foi para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ingressar com uma ação [1] em 2003. A fim de auxiliar o juízo, várias organizações e instituições com propósito social, que lutam contra a injustiça, por exemplo o CAJU-FGV (Centro de Assistência Jurídica Saracura da Fundação Getulio Vargas), participaram do julgamento como amicus curiae. O dispositivo mencionado é garantido pelo art. 138 do Código de Processo Civil e é definido segundo a doutrina do STJ como: “um terceiro que ingressa no processo para fornecer subsídios ao órgão jurisdicional para o julgamento da causa”, ou seja, fornece auxílio e pareceres jurídicos para a Corte, a fim de auxiliar no processo. O CAJU apresentou frente à Corte uma tese que sustenta que as ações do Estado brasileiro feriram dois artigos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), da qual o Brasil é signatário [2]. Sendo eles, o artigo 8º (garantias judiciais), visto que não foram respeitados os direitos dos requerentes em possuir um processo com a devida apuração, e artigo 25 (proteção judicial), já que o recurso teve a mesma sentença do julgado em 1º grau, isto é, após transitar na justiça de São Paulo, as famílias da vítimas recorreram à 2º instância (Tribunal de Justiça), que manteve a mesma sentença proferida anteriormente.


Contudo, o caso, que ocorreu há mais de 20 anos, ainda se encontra sem decisão da Corte. Além disso, durante o processo na justiça brasileira, houve um excesso de burocracia, como a exigência descomunal de provas, já que produzir tais elementos contra agentes do Estado é uma tarefa extremamente difícil e, quanto mais tempo decorria do acontecimento, mais incertos e esparsos ficavam os elementos que comprovavam a correlação dos fatos. Ademais, os parâmetros internacionais de direitos humanos não foram levados em conta, visto que a CIDH afirmou que a operação não seguiu as orientações do Direito Internacional e que houve descaso no decorrer da investigação policial, como a diligência na apuração das provas, assim como apontado na tese apresentada pelo CAJU. O julgamento segue em trânsito na Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Defensoria Pública de São Paulo é a representante dos requerentes desde 2018.


A partir deste caso, evoca-se o debate sobre o abuso de autoridade e violência por parte da polícia brasileira, já que além de reincidir em ocorrências como a analisada, essa sai impune na maior parte dos casos. Segundo o Humans Right Watch, a impunidade é uma das principais causas de violência policial [3]. Um grande exemplo seria o Massacre do Carandiru, evento que deu origem ao grupo do PCC em 1992. No evento, a Polícia Militar, a fim de conter uma rebelião de detentos, realizou uma operação brutal na penitenciária do Carandiru, que resultou na morte de 111 encarcerados. No caso em questão, foi comprovado pela perícia que houve excesso de força policial. Assim, percebe-se que o Brasil tem um histórico de casos como esses, nos quais houve um exagero na ação da polícia. Há muito tempo o país empilha corpos de pessoas vítimas da negligência do Estado.


Em estudo realizado pela diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno, o Brasil aparece como o país com a segunda polícia mais letal do mundo, perdendo apenas para El Salvador [4]. Desse modo, percebe-se que tal organização é extremamente letal, além de que estatísticas [5] mostram que tal comportamento é, principalmente, contra a população negra.


Durante o período de colonização, já se instaurava um estereótipo do que seria um criminoso: pessoas com cor de pele escura e de baixa renda. É fato que tal noção era relacionada diretamente com o sistema escravocrata presente no país. Mesmo com a abolição da escravidão, não houve nenhum tipo de política pública de reinserção social para os recém libertos na sociedade, mantendo-os marginalizados e afastados dos centros urbanos. A título de exemplo, vale analisar a Lei da Vadiagem, de 1942, que penalizava, com encarceramento, aqueles que não exerciam profissão ou atividade suficiente à subsistência. Esta legislação afetava, principalmente, os descendentes de ex-escravos, dado que esses eram excluídos do corpo social, devido a falta de austeridade do governo brasileiro e, por isso, enfrentavam dificuldades em encontrar empregos. Assim, é possível perceber que o racismo foi uma das principais bases para a criação do sistema penal brasileiro.


Todo esse contexto de ausência de reinserção dos ex-escravos contribuiu para um aprofundamento ainda maior dos estereótipos de “bandido”, “vagabundo”, “criminoso”, entre outros, corroborando para uma polícia cada vez mais brutal, corrompida e tendenciosa, principalmente contra os negros, o que causa um aumento nos casos de violência policial. Tal comportamento foi responsável pela fundação de umas das maiores organizações criminosas do país e, mesmo assim, continua sendo praticado reiteradamente, criando um ciclo sem fim de crime e punição excessiva. Assim, percebe-se que a problemática tem raiz nos primórdios da história nacional e da sociedade brasileira.


Diante desse quadro extremamente preocupante, já foram apresentadas diversas medidas para atenuar o problema. Uma das mais importantes é a obrigatoriedade do uso de câmeras corporais nos uniformes policiais, a fim de esclarecer os acontecimentos de ações da polícia. A medida tem se mostrado efetiva, já que de acordo com uma pesquisa da FGV, “o número total de mortes decorrentes de intervenção policial caiu em 80% em comparação com os 12 meses anteriores” [6]. Desse modo, é possível perceber que o uso de tal tecnologia torna as operações mais seguras tanto para os policiais, que teriam como comprovar seus atos, quanto para os combatidos, uma vez que evita o uso desnecessário e desumano da violência por parte dos policiais, gerando maior prudência nesses, visto que teriam medo de serem acusados pelos seus atos.


Portanto, nota-se que a violência policial é um tema atual de extrema importância, sendo essencial sua inclusão nas pautas nos debates públicos, junto com possíveis medidas que a atenuem. Além disso, é crucial que cada vez mais organizações e instituições trabalhem na luta pela justiça, e que o Estado brasileiro seja menos omisso em tais casos, para que a sociedade brasileira consiga sair do paradigma da violência e do racismo.



Referências:

[1] A CIDH apresenta caso sobre o Brasil perante a Corte Interamericana. OEA. https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/146.asp. Acesso em: 8 ago. 2023.


[2] Alunos, professoras e pesquisadoras da FGV Direito SP e da Unifesp apresentam amicus curiae perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos relativo ao Caso Castelinho. FGV DIREITO SP https://direitosp.fgv.br/noticias/alunas-professoras-pesquisadoras-fgv-direito-sp-unifesp-apresentam-amicus-curiae-perante-corte.


[3] Impunidade é a principal causa da violência da polícia no Brasil. Observador https://observador.pt/2021/01/13/impunidade-e-a-principal-causa-da-violencia-da-policia-no-brasil/.


[4] Brasil perde apenas para El Salvador em número de mortes provocadas por policiais, mostra estudo. O Globo https://oglobo.globo.com/politica/brasil-perde-apenas-para-el-salvador-em-mortes-provocadas-por-policiais-mostra-estudo-23598482.


[5] Negros têm 4 vezes mais chance de sofrer violência policial do que brancos nas abordagens. G1 Globo https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/11/20/negros-tem-4-vezes-mais-chance-de-sofrer-violencia-policial-do-que-brancos-nas-abordagens.ghtml.


[6] Câmeras corporais nos uniformes policiais: o caso de São Paulo. FGV https://portal.fgv.br/artigos/cameras-corporais-uniformes-policiais-caso-sao-paulo



Autoria: Maria Eduarda Midea

Revisão: Gabriela Veit e Enrico Recco

Imagem de capa: Global Voices


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