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PRÓXIMA ESTAÇÃO: SARACURA VAI-VAI



Burburinhos ansiosos, carrinho de pipoca e uma fila à espera de cerveja no bar. Naquela fria noite de sexta-feira, a população do Bixiga reunia-se em um cinema a céu aberto, projetado na esquina de uma rua do bairro. Parecia um reencontro de amigos de longa data: pessoas sorrindo e conversando, petiscando e relembrando vivências antigas que passaram juntas ali onde cresceram. Crianças andavam de bicicleta, corriam e brincavam pela rua enquanto os adultos conversavam e aguardavam sentados. Risadas ecoavam pelo local. A agitação era notória. Certamente estavam felizes, mas, para além disso, esperavam avidamente a estreia do documentário de suas vidas. O filme que tornaria cristalino o motivo pelo qual todos eles encontravam-se ali, reunidos naquela ocasião.


As cadeiras – que não eram suficientes para acolher todos os presentes – estavam posicionadas diante de um grande muro laranja e branco. Muro esse que escondia, fracassadamente, um grande guindaste. Guindaste construtor de obras e destruidor de sonhos, vidas, culturas e histórias. Mas o que tem de tão depredador nesse guindaste? Era isso que o documentário que seria apresentado iria explicar. Estava na boca do povo há muito tempo, mas o impacto da obra do metrô da Estação 14-Bis precisava ser relembrado diante de todos os presentes.


Quando as imagens começaram a ser refletidas no muro e a voz de Aldo Bueno reverberou pela rua, o silêncio reinou. Cantava: "Vai, meu alvinegro à desfilar, faz a avenida delirar, mostra que é nossa canção", "Venha desfilar, venha vibrar, venha sentir e venha sonhar!". Uma letra carregada de energia e alegria. A voz de Aldo, não obstante, estava melancólica. Isso porque ele, bem como a própria letra da música apontava, cantava do fundo de seu coração que, naquele momento, estava sendo pisoteado. Da mesma maneira que o coração de todos os que assistiam ao documentário. De toda a população negra que havia se assentado na região, atualmente conhecida como Bixiga, cuja cultura, cultivada há séculos, estava sendo negligenciada pelas autoridades governamentais. E o que denunciava essa depredação histórica e cultural? A rua interditada e de difícil acesso, bloqueada por tapumes. As obras ao fundo e, é claro, o guindaste. O guindaste que todos eram obrigados a encarar, enquanto Aldo cantava.


Tal equipamento é um mero figurante do mais novo cenário que está tomando conta do bairro e perturbando o sono dos habitantes do Bixiga: a construção da Linha 6 Laranja do Metrô de São Paulo, com a futura Estação da 14 Bis. Desprezando completamente o valor cultural inerente ao local, o planejamento urbano da cidade escolheu justamente uma antiga área quilombola para arruinar e embranquecer. Comumente conhecida, no século XX, como "Pequena África", o quilombo representa muito mais do que um lugar de refúgio para escravizados. Simboliza o início de um caminho de resistência e perseverança protagonizado pelos negros, que, até hoje, buscam seu lugar na sociedade por meio da organização popular, rompendo com padrões e estereótipos fixados de maneira estrutural dentro da sociedade.


Para fins de exemplificação, convida-se o leitor a realizar uma reflexão pessoal a respeito da imagem do bairro do Bixiga na modernidade. Muito provavelmente, vieram à sua mente cantinas italianas e estabelecimentos destinados à valorização da cultura imigrante. Talvez você tenha se lembrado, também, da famosa e tradicional Festa da Achiropita, caracterizada pela presença de profusas barracas, espalhadas pelas ruas 13 de Maio, São Vicente e Doutor Luis Barreto, que visam homenagear a padroeira da região e a cultura italiana supostamente inerentes ao lugar. Do tradicional espaguete aos mais variados antepastos, pratos dessa culinária estrangeira atraem pessoas do país inteiro – configurando a maior festa italiana do Brasil. Além da cativante música e da prática de diversos costumes típicos. O verde, branco e vermelho tomam conta do preto predominante anteriormente.


A Festa da Achiropita substitui a Festa Negra de Santa Cruz e a contagiante felicidade irradiada pelos cantos da Vai-Vai, Escola de Samba fundada em 1930 no Bixiga – uma das mais importantes e tradicionais do país, que remonta à verdadeira cultura originária do bairro. Nesse contexto, a líder local e jornalista negra Luciana Araújo comentou: “Só o racismo explica que um bairro que é fundado em cima de um território quilombola hoje seja vendido como um bairro italiano” [1].


Lamentavelmente, a Vai-Vai foi vítima direta dessa tentativa de apagamento cultural que há muito tempo vem sendo colocada em prática. Isso porque, em 2021, para dar lugar ao futuro que se projeta para Saracura – a região onde se assentava o quilombo anteriormente –, enterrando o seu passado histórico, sua sede foi desapropriada e demolida. Tentaram soterrar, por baixo dos escombros, uma das maiores formas de expressão cultural da população negra: o samba. Com isso, o bairro também perdeu um espaço de sociabilidade e contato entre seus moradores – sobretudo os negros. Foi desarticulada a rede de apoio e sociabilidade com a qual muitos habitantes contavam e estavam acostumados ao longo de todas as suas vidas, como bem colocou ao longo de suas manifestações a historiadora e moradora do bairro, Marília Belmonte [2].


"Com que roupa eu vou/ Para o samba que você me convidou", já dizia Noel Rosa [3], maior representante do samba-canção brasileiro, evidenciando a preocupação do sujeito negro com a forma através da qual iria se portar no momento mais feliz do seu dia. No refúgio que encontrava em meio a tantos estorvos ao desenvolvimento social, marcados pela desigualdade e pela necessidade de enfrentar uma vida dura e sofrida. Refúgio musical, que contrastava com a melancolia cotidiana. A música supracitada, após descrever as dificuldades do dia a dia do eu lírico, traz a possibilidade de festejar como uma forma de sobreviver. E justamente esse modo de subsistência encontrado pelos negros está sendo renegado.


As raízes que fixam no chão, a árvore frondosa que representa a cultura negra no Brasil estão sendo severamente lesadas. A qualquer preço, tenta-se ofuscar a riqueza da sua história. De todas as formas, insiste-se em calar as vozes cantantes da Saracura. Mas mesmo ferida, a grande estrutura histórica assentada no solo do Bixiga permanece. Nunca foi realmente derrubada. E o que garante essa resistente fixação é a união da comunidade, a organização popular. A mesma razão que uniu os ex-escravizados nessa mesma região séculos atrás para se refugiarem de escravocratas na sociedade colonial. A mesma razão que uniu a população do bairro para assistir o documentário “Bixiga: Caminhos para Saracura”, de Caio Franco.


Razão essa que também impulsionou esse povo a criar o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai, como uma reação imediata à descarada construção do metrô localizada em um dos territórios de maior importância cultural do país. Sendo um exemplo de um quilombo urbano, o Saracura tem potencial para mudar o entendimento a respeito da definição do conceito de quilombo, comumente enxergado como uma ocupação rural e afastada, escondida em algum lugar no meio da mata. Por este motivo também, é necessária a preservação e o estudo do local mencionado. É importante, conforme Marília Belmonte, “pensar o processo histórico de forma contínua”; então, se no passado, no Bixiga, havia um quilombo, “pensando na sociabilidade, pensando na vida do bairro, pode-se dizer que aqui, ainda hoje, se têm um quilombo” [4].


Além disso, no relatório elaborado pela Lasca Arqueologia, empresa contratada pela concessionária Linha Uni para avaliar o lugar, a região da futura Estação 14-Bis foi classificada como um sítio arqueológico. Garrafas e louças foram alguns dos resquícios encontrados até então, mas é muito provável que outros ainda estejam por lá. Objetos que aparentam apenas cumprir com seu propósito principal de alimentar quem os usa. Por trás de sua materialidade, entretanto, não se pode negar a existência de milhares de histórias. Quem os usou? Quando? Em que condições? Estavam sofrendo? Será que realmente havia comida para comer com esses utensílios? Muitos questionamentos e poucas evidências sobre o passado remoto que moldou a identidade daqueles que hoje lutam pela preservação das memórias que restam dos seus antecedentes. E é precisamente com o intuito de preservá-las, que o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai, criado para defender a memória negra no Bixiga ante ao surgimento da obra do metrô, entrou com uma ação judicial pedindo a garantia de preservação do sítio encontrado, com a transferência dos vestígios para um museu no bairro, o mais próximo possível de seu local original, bem como a alteração do nome da estação para “Saracura Vai-Vai”.


Nesse sentido, a história também é contada a partir da materialidade. Ou seja, não basta a memória da população e a oralidade para manter viva a história da ocupação negra que formou e mantém o Bixiga, são igualmente necessários traços de materialidade que possam demonstrar o processo de ocupação do bairro e a vida cotidiana das pessoas que ali viveram. Dessarte, a população de hoje merece – e reivindica – esses vestígios como uma legítima forma de preservação cultural, sociológica e histórica. Por sua vez, a obra do metrô encontrou estes vestígios no seu processo de escavação, o que poderia ser a oportunidade perfeita para a cidade de São Paulo e o governo do estado se reconciliarem com sua história, notoriamente racista e moldada pela escravidão. No entanto, somente serviu para demonstrar as permanências racistas que compõem o Brasil, pois o descaso com os resquícios arqueológicos e com a população foram evidentes.


Dentre eles, está a escavação, com pouco cuidado, que gerou alagamentos no local, durante a temporada de chuvas, prejudicando a preservação e manutenção dos artefatos. Além disso, segundo relato de Luciana Araújo, jornalista negra e líder local na estreia do documentário, a concessionária das obras da estação ocultou, em um primeiro momento, a descoberta arqueológica, a qual a população só descobriu algum tempo depois. Indignados, mais uma vez se organizaram no movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai, quando ouviram de algumas pessoas que ali não encontrariam “nada de valor”, “somente alguns caquinhos”. A pergunta que fica é: nada de valor para quem? Por que vestígios arqueológicos de pessoas negras são taxados de “sem valor”?


Para a população do Bixiga esses vestígios, logo abaixo da antiga sede da Vai-Vai, onde antes viviam seus ancestrais, são de suma importância. Eles contam a sua história, contam a história de todos nós, de um país inteiro, marcado por séculos de escravidão que, como pode ser evidenciado pelo tratamento dado ao longo do processo de construção do metrô, ainda não foram superados. Portanto, talvez seja por isso que, frente às adversidades impostas, os moradores tenham feito o que aprenderam a fazer ao longo de todas as suas vidas: resistir. Ainda, Luciana Araújo ressalta: “Nós, em nenhum momento, fomos contra o metrô. Nós achávamos que ele não deveria passar por cima da Vai-Vai e nós não aceitamos o apagamento histórico com o qual ele vem junto” [5].


"Quilombo Saracura: nosso chão, nossa história", "Metrô sim, apagar nossa história não" - diziam alguns dos inúmeros cartazes levantados pela multidão desesperada nas mobilizações organizadas. Foi muita luta em diversas frentes, pela via judicial, administrativa e até na vida cotidiana. Muitos motivos plausíveis, atrelados à preservação cultural, foram levantados. E ainda assim, precisou ocorrer uma desastrosa tempestade para que as obras fossem finalmente suspensas, sob a justificativa de que fatores climáticos incontroláveis poderiam prejudicar o seu andamento. Uma ação legítima, mas, ao mesmo tempo, uma continuidade – nem um pouco surpreendente – do desrespeito direcionado à cultura negra, que não foi motivo de preocupação das autoridades.


À luz da história supracitada do bairro do Bixiga, é possível traçar um paralelo com os motivos que levaram o Brasil a se tornar o país que é hoje a partir dos esclarecimentos do livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, de Lilia Schwarcz. A nação brasileira, construída a partir da linguagem da escravidão, criou um sistema social em que poucos monopolizam o poder e a maioria da população sofre sem acesso a direitos humanos, essenciais para sua sobrevivência. Logo, os governantes brasileiros infringem as normas que eles mesmos criaram no que tange à garantia dos direitos humanos, vide a falta de assistência às minorias no presente e a aparente falta de comprometimento para melhora desses aspectos no futuro.


Decerto, a população negra do bairro possui grande perseverança em lutar pela preservação de sua própria cultura, porém, ao adquirirem um status passivo na sociedade são considerados como objetos, de modo que não conseguem atuar diante do Estado de maneira ativa e ficam sujeitos à subordinação e à violência. Assim, por mais que a construção do metrô seja positiva para a mobilidade das pessoas em meio a cidade, a forma como as obras estão sendo realizadas afeta e desrespeita a comunidade – que nunca deixou de sofrer e continua sendo violentada.


Apesar da atual constituição de 1988 ser comumente referida como "Constituição cidadã", a falta de alguns direitos marca presença nos setores mais baixos da sociedade. Os direitos de defesa, que visam proteger os indivíduos de interferências abusivas do Estado, estão presentes na legislação, mas não são aplicados de maneira equânime na conjuntura social. Essa é uma das grandes críticas do constitucionalista José Gomes Canotilho [6], que joga luz sobre a maneira como esses direitos foram interpretados com o nascimento do direito constitucional social. A Constituição Federal aludida possui um capítulo específico sobre ordem social com uma série de direitos sociais estipulados. Atrelado a isso, o texto legislativo desenvolveu uma engenharia de vinculação de receitas e repartição de federativas capazes de criar sistemas universais de educação e saúde. No entanto, Canotilho identifica esses movimentos de repressão de minorias na atualidade, como é o caso de Saracura, e começa a fazer provocações em relação a esse constitucionalismo social que não é, de fato, aplicado da maneira como deveria em decorrência de más opções políticas de decisões orçamentárias, entre outros fatores.


Nesse sentido, faz-se necessário questionar: a Constituição Federal apenas dita quais são os direitos a serem garantidos ou também coloca possibilidades de meios para que esses direitos sejam atingidos? Esse questionamento faz-se importante, uma vez que o direito de autodeterminação dos povos originários precede o Estado, sendo possível, atualmente, a criação de um espaço onde a garantia dos direitos sociais previstos na carta magna não significa uma política segregacionista. Isso porque, muitas vezes, discursos de assimilação foram usados como justificativa para a ausência de direitos na sociedade. Logo, a não utilização de vocábulos como "uniformização" ou "harmonização", que trazem consigo uma ideia de perda de identidade e de submissão a um determinado modo de vida com a assimilação, seria de grande importância para garantir que os direitos sociais convivam com todos os povos do Brasil.


Voltando para o Bixiga, ainda em constante silêncio, a população, que encarava o documentário – e o guindaste – de forma atônita, voltou a ouvir a voz chorosa de Aldo Bueno, dessa vez dando vida à canção de Beth Carvalho. "O sambista está dormindo/ Ele foi, mas foi sorrindo". O sambista negro foi morto, porém, mesmo diante da crueldade do sistema, ele foi radiante, pela alegria que o samba proporciona no dia a dia dessa população ao possibilitar a oportunidade de fugir de todo o sofrimento. O samba é o refúgio.


"Não tem placa de bronze, não fica na história/ Sambista de rua morre sem glória". É isso que as autoridades tentam fazer, apagar vestígios do passado, retirar a sua importância social na mentalidade da população. E isso não é de hoje: esse fato se repete continuamente, desde o tempo que o quilombo surgiu. Não importa o quanto a sociedade evolui, infelizmente, a perseguição persiste. Dessa forma, enquanto a perseguição continuar, deve também continuar a resistência para que as tentativas de apagamento sejam em vão. Para que prospere o canto das vozes do Saracura. E para que o sambista fique, sim, na história.


A luta é protagonizada pelos moradores do bairro do Bixiga, sobretudo negros, liderada pelo movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai, no entanto, ela também é de todos nós. Sociedade civil, moradores e frequentadores do bairro, estudantes, brasileiros. A luta pela preservação dos vestígios arqueológicos encontrados próximo à sede da Vai-Vai e a alteração do nome da estação possuem um peso simbólico e prático. É essencial combater o embranquecimento, a gentrificação e o apagamento histórico que a construção do metrô carrega. Estes são passos no sentido do reconhecimento da participação histórica da população negra na construção do Bixiga, dando crédito e valor a um grupo social que é historicamente apagado e silenciado. Para além disso, a garantia da materialidade da história que se desenrolou no Bixiga confere aos seus descendentes os subsídios materiais necessários para relembrar todos os dias de suas origens e da história da “Pequena África”, no coração de São Paulo.


A rua, antes silenciada, é preenchida pela salva de palmas de todos que haviam se reunido no cinema a céu aberto do Bixiga. Uma população que, embora desacreditada com as atrocidades elucidadas, não desiste e se junta mais uma vez na história para lutar contra o sistema embranquecedor. Os aplausos, nesse contexto, significam muito mais do que mera admiração. Simbolizam união, resistência, resiliência e força. E inauguram mais um capítulo de combate ao preconceito e ao desrespeito. Não é à toa que, centenas de anos atrás, nesse mesmo canto de rua onde a comunidade se reunia naquela noite de sexta-feira, estavam profusos escravizados, que tentavam, juntos, encontrar uma forma de combater a elite que lhes desprezava e marginalizava.



Autoria: Giovanna Layoun, Giulia Bortoleto, Linneo Adorno

Revisão: Artur Santili e Gabriela Veit Barreto

Imagem de capa: Acervo pessoal



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:




[3] Samba “Com que roupa?”, Noel Rosa




[6] CANOTILHO, JJ Gomes. O direito constitucional como ciência da direção - o núcleo essencial de prestações sociais ou a localização incerta da sociedade. Direitos Fundamentais Sociais, p. 11-32.











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