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O GOVERNO ACABOU?


No último mês, o Governo Lula III sofreu sua maior derrota política até o momento: a derrubada do decreto presidencial que aumentava a alíquota do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). A medida elevava as alíquotas sobre uma série de operações de câmbio e financiamento, de modo que se ampliasse a arrecadação tributária e mitigasse os bloqueios orçamentários necessários para o cumprimento da meta fiscal. 


Imediatamente após o anúncio, a decisão da equipe econômica recebeu críticas até mesmo do recém-indicado à Presidência do Banco Central por Lula, Gabriel Galípolo. O chefe da autoridade monetária não só afirmou publicamente que não havia sido informado da alta do tributo, como se manifestou contrariamente ao decreto. Além dele, representantes do mercado e do Congresso Nacional também figuraram como críticos da medida. 


Ao longo de um mês, as críticas se intensificaram e o Governo Federal se viu compelido a recuar parcialmente e a abrir negociações com o Parlamento para a implementação de medidas alternativas à elevação do IOF.  Surpreendendo a Presidência, no entanto, às 23h35 de uma terça-feira (24), o presidente da Câmara dos Deputados anunciou, pelas redes sociais, que pautaria o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que revogava o decreto presidencial. 


Assim, por meio de um tweet, Hugo Motta (Republicanos-PB) anunciava o rompimento de sua lua de mel com o Palácio do Planalto, uma parceria que até aqui havia poupado a Presidência da República de passar por uma série de tremores políticos. É público que, por exemplo, Motta teria sido um dos principais responsáveis pelo freio no avanço do Projeto de Anistia aos envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro.


Não foi por menos, portanto, que o Planalto foi surpreendido com o anúncio via redes sociais. De acordo com apuração realizada pelo portal de notícias G1, a expectativa era de que a Câmara apenas discutiria o assunto após a divulgação do próximo Relatório Bimestral de Receitas e Despesas em 22 de julho, o que não ocorreu. Daí em diante, o Governo viu sua base desintegrar-se até a sua derrota contundente no Congresso Nacional. 


Em relação à derrubada do decreto presidencial,  383 deputados federais votaram a favor e 98 votaram contra. Desse modo, somente três partidos da base votaram integralmente com o Governo: os pequenos PSOL, PCdoB e REDE. Por outro lado, favoráveis à derrubada, foram 63% dos deputados de partidos com representação na Esplanada dos Ministérios, incluindo os ex-ministros Juscelino Filho (União-MA) e Daniela do Waguinho (União-RJ). Na Casa Alta do Congresso, a votação contra o Governo se repetiu, mas por meio de votação simbólica.


Nesse meio tempo, o Congresso Nacional também impôs outras derrotas ao Palácio do Planalto, estabelecendo uma agenda política própria. São exemplos, a derrubada dos vetos presidenciais ao Marco Regulatório de Energia Offshore, a aprovação do aumento do número de deputados federais e a ameaça de escalação de Nikolas Ferreira (PL-MG) para a relatoria da CPI do INSS. 


Assim, a cada dia tem se tornado ainda mais evidente o fracasso do Executivo em estabelecer sua própria agenda política. A pouco mais de um ano das eleições, estão emperrados projetos centrais ao Governo Federal, como as reformas do Imposto de Renda e da previdência militar, os fins dos supersalários e da escala 6x1, além da PEC da Segurança Pública. 


Parcela majoritária dessa trava, deve-se ao modelo cada vez mais peculiar de Presidencialismo adotado pelos Três Poderes desde 2015. Embora a população brasileira já tenha descartado o Parlamentarismo nos referendos de 1963 e 1993, não são poucos os esforços recentes feitos por atores políticos para o encaminhamento da República para esse modelo de governo. 


O desrespeito à decisão soberana do povo, sobretudo nos termos do referendo de 1993, tem se dado a conta gotas por meio de medidas que atenuam os poderes do Executivo e inflacionam a dimensão do Legislativo. Nos últimos dez anos, isso fica evidente com, inicialmente, a edição da Emenda Constitucional 86, que instaurou o regime de emendas impositivas na Constituição Federal. 


Historicamente, as emendas parlamentares sempre fizeram parte da dinâmica de nossa política. Elas são parcelas do orçamento público que são executadas em conformidade a apontamentos de congressistas, sendo liberadas discricionariamente pelo Executivo. Por isso, é costumeiro que o pagamento se dê nas vésperas de votações importantes para a agenda do Governo. Foi o caso, por exemplo, da votação da Reforma da Previdência de Michel Temer (MDB) e das que suspenderam duas denúncias criminais contra o ex-presidente. 


Inclusive, foi na breve gestão do emedebista, expoente do “Centrão”, que a liberação de emendas parlamentares se expandiu. Alçado ao Palácio do Planalto em mais uma afronta do Legislativo à soberania popular e às urnas num “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”, Temer declarou que governava em um regime “quase” semipresidencialista, uma vez que a Câmara teria deixado de ser um “apêndice, para ser parceira do governo”. 


Assim, de 2015 para 2017, houve um crescimento de 68% na liberação de emendas ao Congresso Nacional, totalizando 21,94 bilhões de reais em valores atualizados pelo IPCA. Em 2024, os pagamentos atingiram sua máxima histórica: um montante de 50 bilhões de reais. Mas por que os valores cresceram tanto? E, mais, por que o que era um mero expoente do modelo político brasileiro se tornou um de seus atores mais corrosivos? Simples: a impositividade subverteu a lógica do Presidencialismo de Coalizão. 


Cunhado por Sérgio Abranches na década de 80, o Presidencialismo de Coalizão é um modelo peculiar da política brasileira. Isso porque mescla, de maneira profundamente associada, o presidencialismo, o federalismo e o governo por coalizão partidária. Com isso, o presidente necessita organizar a coalizão de partidos majoritária para poder governar e, posteriormente, mantê-la, sob risco de inviabilizar sua agenda política ou até mesmo sua permanência na Presidência.


Parte desse processo de organização da coalizão daria-se por meio de trocas entre Executivo e Legislativo: o primeiro concederia vagas em Ministérios, estatais e financiaria projetos dos currais eleitorais do segundo; enquanto o segundo se comprometeria a aprovar os projetos do Palácio do Planalto.


Mas veja, se o valor das emendas parlamentares de 2025 ultrapassam a soma dos recursos de investimento de 30 dos 39 Ministérios do Governo Federal, qual interesse um partido tem em compor a Esplanada? Ainda mais em um cenário de impopularidade de seu mandatário? Por que se comprometer com o Governo se, cumprindo acordos políticos ou não, a impositividade das emendas permitirá milhões disponíveis para investir em sua base eleitoral? Extraí-se daí a insustentabilidade do modelo pelo qual Executivo e Legislativo se organizam atualmente. 


É inadmissível que, em um regime Presidencialista, o Congresso utilize quase metade das despesas discricionárias – como estimado para 2027 no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2026 –  em um Orçamento que é cada vez mais estrangulado pelos gastos obrigatórios. Uma fatia tão alta concedida ao Parlamento impossibilita não só que sejam realizados investimentos a longo prazo, como a própria implementação da agenda política eleita para a Presidência da República. 


A expansão das emendas parlamentares desrespeita profundamente o princípio da separação entre os Poderes. E isso ultrapassa o debate desta não ser uma competência do Congresso: simplemente, não há como executar um orçamento coerentemente nesses termos. Em um universo de 513 deputados federais e 81 senadores, que se preocupam prioritariamente com o próximo ciclo eleitoral, como garantir que projetos de longo prazo acontecerão? Como garantir que um Orçamento que deva visar a coletividade não será cooptado por número ínfimo de grupos de interesse que detêm o poder? 


E vale dizer que a concessão desse poder aos congressistas aconteceu sem um ônus essencial à execução orçamentária: a prestação de contas. Afrontando as exigências constitucionais de transparência, rastreabilidade e controle público, a expansão das emendas parlamentares ocorreu em um cenário de pouca clareza de como, para quê e para quem os recursos estavam sendo destinados. Essas foram as razões que ensejaram uma série de ações no Supremo Tribunal Federal, que, atualmente, estão sob relatoria do ministro Flávio Dino. 


Um caso emblemático recente, inclusive, demonstra como as emendas parlamentares têm sido utilizadas para fins diversos a uma boa execução orçamentária. Nas últimas semanas, o deputado federal Fábio Teruel (MDB-SP) foi acusado de ter utilizado 2,2 milhões de reais de emendas parlamentares para recapear ruas do condomínio de luxo, onde mora, em Alphaville. 


Por isso, não se pode admitir que o Legislativo repita 2016 ao realizar um novo acordo com o Supremo – “com tudo” –  em detrimento da agenda política eleita nas urnas. Flávio Dino, em conjunto de toda a Suprema Corte, possui uma oportunidade única ao declarar a inconstitucionalidade das emendas impositivas: dar um freio de arrumação na harmonia entre os Poderes. Somente assim, freia-se a guinada clandestina dos últimos dez anos ao Parlamentarismo.


É preciso notar que a manutenção da impositividade das emendas parlamentares não representa um fim apenas a este governo. Jornalistas políticos do UOL, CNN e GloboNews apuraram que a derrubada do IOF não havia sido mera “preocupação” dos congressistas com o aumento da carga tributária brasileira, mas um recado ao Palácio do Planalto em relação ao atraso de liberação de emendas em 2025. 


Não se vê, portanto, o Congresso realizando debates cruciais à sociedade brasileira – sejam eles referentes à justiça tributária, à eficiência da arrecadação da administração pública ou à responsabilidade fiscal. Vê-se só um Parlamento que pressiona uma faca contra o pescoço do Governo, ordenando que seus interesses sejam cumpridos. E, assim, não há governo que sobreviva: ou se cumpre a determinação, afastando-se de sua agenda eleita – como fizeram Temer, Bolsonaro e Lula até aqui; ou, se descumpre e é interditado. 


Autoria: Erick Martins Rosario

Revisão: Pedro Anelli Bastos

Imagem da capa: Nicolas Floriano


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Referências


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