Maria, uma mulher negra de 42 anos, trabalha em uma quitanda de frutas na comunidade da periferia de São Paulo onde mora e é mãe solteira de três filhos: o Emerson, o Caíque e a pequena Jéssica (19, 15 e 7 anos, respectivamente). A vida dela é marcada por muitas preocupações, como sustentar os filhos sozinha e protegê-los dos perigos da vida, exacerbados pela situação de vulnerabilidade em que estão inseridos, mas a maior de todas é quanto aos filhos mais velhos. São pobres, negros, jovens e trabalham pela comunidade, Emerson em uma mecânica e, Caíque, como assistente de pedreiro.
Maria sempre se esforçou muito, dentro de suas capacidades, para que não se envolvessem com drogas nem fossem atraídos pelo tráfico. Também sempre orientou que não andassem em lugares específicos em certos horários para que “a polícia não encrenque”. Mas, mesmo com seus esforços, seus filhos mais velhos já foram diversas vezes enquadrados e agredidos por policiais, aparentemente sem motivo, no caminho de volta para casa.
Em uma noite qualquer, Maria estava preparando o jantar e seu filho Emerson lhe deu um beijo e saiu com seu irmão para uma festa na vizinhança, dançaram, riram e esqueceram por um tempo as dificuldades da vida. Após saírem da festa, enquanto caminhavam pela rua, um disparo de arma de fogo rompeu o silêncio da noite. Emerson caiu no chão, ferido gravemente, com sangue escorrendo pelo seu corpo. Ele foi levado às pressas para o hospital, onde os médicos lutaram para salvar sua vida.
Naquele mesmo instante, outra tragédia estava se desenrolando em outro canto da cidade. Para aqueles lados, um carro havia sido roubado e houve uma tentativa de roubo a um policial militar. Ocorreu uma troca de tiros entre os criminosos e o policial, que conseguiu uma foto do suposto ladrão com seu celular. O que ninguém sabia naquele momento era que Emerson, a 24 km de distância, estava sendo erroneamente identificado como o autor desse crime do outro lado da cidade. O elo que uniu esses eventos foi a foto de Emerson tirada pelo celular do policial no leito hospitalar.
Enquanto isso, Maria estava prestes a dormir, preocupada com seus filhos que ainda não haviam chegado em casa. Quando se deitou, recebeu uma ligação de Caíque que explicou a situação. Maria foi direto para o hospital, onde recebeu notícias que seu filho havia escapado da morte e não corria mais risco de vida. Maria suspirou aliviada, mas o que ela não sabia era que a vida de seu filho ainda passaria por muitos percalços por conta dessa noite. Depois desse marco, Emerson foi condenado erroneamente a quinze anos e seis meses de reclusão pelo reconhecimento informal em questão, cumpriu três anos da pena e foi posteriormente inocentado.
O caso descrito acima parece absurdo mas, infelizmente, é baseado no caso real de Igor Barcelos Ortega, apresentado pelo Innocence Project Brasil. Esse Projeto é uma organização dedicada a provar a inocência de pessoas injustamente condenadas, o qual assumiu o caso de Igor. Na investigação do caso, o Projeto reuniu provas determinantes que afirmaram que Igor não poderia estar na cena do crime e que os ferimentos que sofreu naquela noite eram incompatíveis com a dinâmica dos crimes pelos quais foi condenado. Em julho de 2019 ele foi solto provisoriamente e posteriormente, em junho de 2021, foi inocentado por decisão do 2º Grupo de Câmaras Criminais do TJSP.
Esse é um caso que retrata a realidade de milhões de brasileiros que sofrem violência policial e que são presos injustamente com base em reconhecimento informal. Esses brasileiros são, em sua maioria, negros, pobres e jovens. Assim, é nítido que o racismo permeia o sistema criminal — com uma polícia que associa negros e pobres ao crime, colocando em prisões já superlotadas pessoas inocentes pelo simples fato de terem certa cor de pele e pertencerem a certa classe social.
Um levantamento realizado pelo Condege (Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais), entidade que engloba defensores públicos de todo o país, e pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro demonstrou que 83% dos presos injustamente por reconhecimento facial errôneo no Brasil são negros. Esses são como os filhos de Maria: jovens, pobres e negros que estudam e trabalham para sustentar a família. Além disso, o levantamento em questão também constatou que 80% dos presos injustamente passaram mais de um ano encarcerados sem sequer terem cometido um crime. Nesse levantamento foram analisados 242 processos, nos quais 30% dos réus tinham sido inocentados, sendo que 80% dos inocentes ficaram presos preventivamente antes do julgamento. Os dados demonstram a gravidade da situação de encarceramento indevido e injusto, sendo um fator caracterizador do atual sistema prisional brasileiro.
Portanto, tal questão de prisões injustas indica que há muitas pessoas sendo penalizadas por delitos dos quais não são culpadas. O Brasil é o país com a 3ª maior população carcerária do mundo e tem uma desesperançosa parcela de inocentes invisíveis, cujas vidas foram suspensas por anos até voltarem para a sociedade. Vidas essas que sempre serão marcadas pelo passado vivido atrás das grades em condições precárias e pelo futuro repleto de preconceito e de portas fechadas. Essa é a vida dos milhões de filhos inocentes das preocupadas Marias do Brasil.
Autoria: Giulia Lauriello
Revisão: André Rhinow, Luiza Parisi e Anna Cecília
Imagem de capa: Ponte Jornalismo
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