top of page

POR QUE SEMPRE VOLTO A TWIN PEAKS



Um sonho que insiste em voltar

Tem certos filmes — e séries — que atravessam a gente de um jeito que parece um sonho recorrente, voltando a você quando menos espera. Às vezes é uma imagem, um cheiro, uma pausa no meio do dia. Um plano de segundos que reaparece como se estivesse sido tatuado em algum canto escondido da memória, aquele diálogo, aquela cena, e o que você sentiu com aquilo. Para mim, Twin Peaks é isso. Um sussurro insistente, uma trilha que toca sozinha, uma lembrança que molda como vejo o mundo, causada por algo que eu consumi e me fez sentir algo que nunca foi embora.


Nunca vou esquecer de como me senti na primeira vez que assisti à cena em que o agente Dale Cooper diz ao xerife Harry, no diner clássico da série: 


“Harry, I’m going to let you in on a little secret. Everyday, once a day, give yourself a present. Don’t plan it, don’t wait for it. Just let it happen. It could be a new shirt at the Men’s store. A catnap in your office chair. Or two cups of good, hot black coffee. Like this.” [1]


E a câmera corta para dois cafés, perfeitamente enquadrados. Ali, algo me capturou, e talvez eu nunca tenha realmente saído de lá.


Cena da série Twin Peaks
Cena da série Twin Peaks

Descobri Twin Peaks no início da pandemia, por insistência de um amigo que me emprestou o box em Blu-ray, já que era difícil encontrar a série fora dos mares da pirataria. Eu tinha 18 anos. Fui fisgada logo no piloto (um dos melhores já feitos, na minha humilde opinião), mas só entendi o que tinha acontecido comigo meses depois, ao terminar as duas primeiras temporadas, o filme Fire Walk With Me e a terceira temporada, lançada em 2017. Foi como fazer uma viagem intensa, linda e estranha, em que você sabe, mesmo durante, que está sendo incrível e que vai sentir saudade.

Desde então, estou digerindo Twin Peaks. E acho que nunca vou terminar.

A série mudou meu jeito de ver as coisas. Deu textura ao silêncio, inseriu mistério nos objetos mais banais, me mostrando que o absurdo pode morar no detalhe, e que a lógica é só uma das muitas camadas possíveis da realidade. Com Lynch, tudo vibra: a névoa, os sonhos, a eletricidade, as vozes que não combinam com os rostos, o tempo que dobra em si mesmo, a dúvida. E é aí que reside o encantamento, porque a experiência “lyncheana” não se decifra, se sente.

Voltar a Twin Peaks é sempre diferente. A cada revisão, a série parece outra — ou fui eu que mudei? Há diálogos que me soam banais em um momento e, meses depois, me atravessam como revelações. É como reler um poema que estava adormecido dentro de mim, como  dito pelo próprio Lynch no filme Fire Walk With Me:

“We are like the dreamer who dreams, and lives inside the dream. But who's the dreamer?” [2]

Provocações como essa, que escancaram a dissociação de quem cria a realidade e de quem a experimenta e nos fazem pensar que somos simultaneamente autores e personagens da nossa própria realidade, são raras. Acima de tudo, evocam perguntas que o mundo linear atual nos distrai. Se somos criadores da nossa própria percepção, estamos presos a ela? Se estamos todos sonhando e vivendo no sonho, quem está sonhando tudo isso? Para alguns, parece loucura, mas ser jogado em um abismo existencial de vez em quando faz bem, e Lynch faz isso como ninguém.  


Não é para entender


É claro que há a tentação de “resolver” o enigma. De entender o que aconteceu com Laura Palmer, de colocar cada imagem em seu devido lugar, de montar o quebra-cabeça. Mas, com Lynch, fazer isso é como tentar lembrar um sonho: no esforço de organizar os fragmentos, eles escapam. A lógica linear empobrece o que é, por natureza, intangível. Seus filmes e séries funcionam como monumentos expressionistas, feitos de sentimentos, simbolismos, impulsos e desejos, tanto conscientes quanto subterrâneos.

Assistir a Lynch é como ouvir uma música em outro idioma: você pode não entender as palavras, mas sente tudo no fundo da psique, como uma pulga atrás da orelha que fica pra sempre, te lembrando de exercitar os sentidos, olhar com outras perspectivas, sentir o cheiro das árvores, enxergar o mundo com amor — mas nunca esquecer da dualidade entre as coisas, da existência do bem e do mal.

Ainda assim, há beleza no conversar. Há quem diga que tentar discutir ou teorizar sobre Twin Peaks ou qualquer obra de Lynch é “estragar” a magia. Discordo. Discutir também é sentir. Cada interpretação errada, exagerada ou absurda é mais uma maneira de tocar o mistério — nunca de resolvê-lo. Como o próprio Lynch disse em entrevista uma vez: “As soon as you finish a film, people want you to talk about it, and it 's, like, the film is talking!” [3].

O mais difícil, talvez, é apresentar Twin Peaks ou qualquer filme de Lynch para quem não está familiarizado. Conto nas duas mãos as pessoas com as quais me sinto confortável para fazer isso na minha vida pessoal. Como mostrar algo infinito, para quem espera começo, meio e fim? Para quem pergunta “Mas o que significava aquilo?”. Para quem quer “entender”, como se entender fosse tudo. Mostrar Lynch para alguém é expor um pedaço do seu próprio estranhamento, e não há garantias de que a pessoa vá aceitar o convite. Mas tudo bem. Porque para quem aceitou (de verdade), não tem mais volta.


Um luto criativo 

Hoje, sinto que o mundo perdeu algo imenso com o falecimento de David Lynch. Surgiu um luto criativo de espécie, de alguém que ousou exercer os mais primordiais propósitos de nós como humanos, o de questionar, olhar, sentir, traduzir, interpretar, explorar e criar. Sua obra é, para mim, uma forma de lembrança ativa de que o cinema pode ser experiência, sonho, absurdo, arte e espelho. De que não precisamos compreender tudo para sermos profundamente transformados, e que devemos sempre deixar atravessar, olhar com cautela, e observar as pequenas coisas. 


Por fim, a volta

Finalmente, sinto que sempre volto a Twin Peaks porque ela nunca foi, de fato, embora. Como um suspiro de vento que bate na nuca, continua ali, me chamando, me recordando que o lugar que os velhos sonhos ainda sussurram existe. Que nada é completamente esquecido, ou morre. Que o lugar onde as perguntas importam mais que as respostas é real, e que o mistério não é um enigma a ser resolvido, e sim uma atmosfera para ser habitada (para os que ousam olhar). De certa forma, esse espaço de estranhamento e beleza, onde para ser atravessado não precisa de sentido, é o que faz com que em meio ao mundo que vivo hoje, lógico e de narrativas lineares, eu me lembre que existe valor na pausa, no ócio, na sensação que eu esqueci algo, ou que alguma coisa está levemente fora do lugar, e que isso está vindo de algum espaço, e que pode ser mágico. Em suma, um lembrete constante de que tudo pode ser mais estranho do que parece e, por isso mesmo, mais bonito também. 



Texto: Gabriela Melo Villalba

Revisão: André Rhinow e Ana Clara Jabur Imagem de Capa: Lynch, D. (Director). (1991, June 10). Twin Peaks (Season 2, Episode 22) [TV series episode]. In M. Frost & D. Lynch (Creators), Twin Peaks. American Broadcasting Company.


Referências: 


bottom of page