Atenção: essa publicação contém algumas revelações sobre a trama de "Round 6", recomendamos que você, caro leitor, assista à série antes de realizar a leitura do texto para evitar "spoilers".
Round 6 é uma série sul-coreana produzida pela Netflix e dirigida por Hwang Dong-hyuk que completa um mês de lançamento neste domingo (17), atingindo a surpreendente marca de 1º lugar nos mais assistidos da plataforma em 90 países, segundo a Forbes, em 3 de outubro de 2021. A produção é dividida em 9 episódios, nos quais conhecemos o superendividado protagonista, Seong Gi‑Hun, e sua trajetória que toma proporções inesperadas a partir de um jogo mortal.
Seong é uma pessoa em que, ao longo da série, enxergamos uma grande generosidade nos atos, mas que possui um grande vício: a aposta. Esse mesmo vício, retroalimentado pela ambição misturada à falta de perspectiva do sistema neoliberal para pessoas como ele - sem escolaridade, sem emprego fixo e com um passado cheio de traumas e frustrações - assume um papel irônico e cheio de símbolos que nos faz questionar o modo de vida competitivo em que paira o mito meritocrata e toda uma cadeia de hierarquias que engole os mais "fracos" - ou menos aptos - sob um olhar darwinista.
O "Jogo da Lula", como foi traduzido o nome da série para a maioria dos países, dos quais não fez parte o Brasil, consiste no que parece ser uma mistura de Jogos Mortais, Jogos Vorazes e 3%, outras produções que, respectivamente, representam um paralelo entre redenção, luta espetacularizada e ascensão. O primeiro passo para o jogo é a captação de participantes, aparentemente mapeados pela organização como potenciais jogadores. Isto é, pessoas em situação de vulnerabilidade por conta de um acúmulo insolvível de dívidas. Neste momento, no metrô de Seul (capital sul-coreana), um misterioso agente aposta uma quantia de wons (moeda sul-coreana) com o candidato, que deve escolher entre dois envelopes, um azul e um vermelho - em uma possível referência à escolha proposta por Morfeu na franquia de longas, Matrix - para jogar uma tradicional brincadeira infantil do país Ddakji. Aqui é o momento em que se seduz a pessoa infortunada, a qual, participando de um bobo jogo de criança, desembolsa uma quantia boa e "fácil" de wons. A partir desse encontro, o candidato deve ligar para o número presente num cartão de visitas entregue pelo agente. Nessa dinâmica, é possível enxergar um dos princípios tão respeitados pela ideologia do jogo: a liberdade, ou melhor, o livre arbítrio e vontade para se juntar à emboscada.
Foto de divulgação de Round 6 (Créditos: Netflix).
É com essa chantagem que a partida em que ingressa Seong congrega 456 jogadores identificados por seus números, sendo o protagonista enumerado justamente como o último. Ainda no primeiro episódio, o telespectador descobre que o jogo consiste em seis etapas sangrentas nas quais há vencedores e perdedores, sendo a consequência da derrota a eliminação do jogador, no caso, sua morte. As etapas recriam jogos infantis de uma maneira violenta, de modo a focalizar a trama e a tensão entre os personagens ao invés desviar a atenção do público à complexidade da tarefa.
Ainda, o contrato que se assina para concorrer ao prêmio acumulado de 45,6 bilhões de wons (na cotação atual do real, equivalente a R$208.845.119,58) contém apenas 3 cláusulas: o jogador não pode parar de jogar; quem se recusar a jogar será eliminado; e a maioria decide se quer encerrar os jogos. É, contudo, extremamente satírico o modo como se estabelece os princípios e a ética nesse ambiente. Primeiro, é fortemente reiterado que entre os participantes prevalece a igualdade de oportunidade para ganhar. Isso, entretanto, não leva em consideração as diferenças materiais entre homens mais fortes ou fracos, mulheres grávidas ou não, jovens ou idosos, o que nos leva a compreender a fragilidade da premissa "justiceira" da proposta. No entanto, é esse princípio da igualdade que norteia algumas consequências aos trapaceiros descobertos e gera um senso distorcido de justiça no ecossistema completamente doentio que é criado. Lá, o que vale é ganhar, os meios não são exatamente questionados, contanto que não haja evidente desrespeito às regras principais do jogo. Não há equidade nesse sistema, o que reduz o jogo a uma prova de resistência ao meio, demonstrando-se o quão injusta se torna a corrida para o sucesso. Assim, cidadãos pobres - ou nem tanto - se humilham e literalmente dão suas vidas por uma chance em 456 de ganhar o dinheiro prometido, além de terem que "escolher" entre priorizar a própria existência ou a do outro.
A ética ou moral das pessoas é questionada em um campo em que não há espaço para cooperação sem a autodestruição, a não ser que haja a renúncia da maioria absoluta ao cobiçado prêmio. Esse embate permeia toda a narrativa, isto é, já no segundo episódio, os competidores, assustados, votam em uma disputa extremamente acirrada para deixarem o jogo com base na segunda cláusula do contrato. É aqui que conhecemos mais sobre as vidas de Sae-byeok, Sang-woo, Deok-su e Ali Abdul, personagens que ganham relevância na trama, incluindo o misterioso e simpático jogador idoso nº 01 e o policial Joon-ho. O trágico da história é que, nesse episódio intitulado "Inferno", os personagens sem as quase mitológicas autonomia e independência liberais, dada a falta dos meios financeiros e de uma factível possibilidade de resolverem suas dívidas, decidem voltar ao jogo. Afinal, a vida fora do jogo é tão ruim ou pior. Sem o almejado dinheiro do prêmio, os participantes estão em perigo de vida. A diferença crucial é que, ainda que exista a chance de sair definitivamente do abismo financeiro, a consequência fatal da derrota se consolidaria mais rapidamente.
É interessante observar que fora do jogo os personagens são ainda mais desiguais. Há relações de classe entre eles, como por exemplo entre Sang-woo, um individualista, orgulhoso e instruído consultor de investimentos que desviou dinheiro de seus clientes, e Ali Abdul, um refugiado paquistanês sem instrução formal e explorado por seu patrão. Eles representam, tanto dentro como fora da arena de disputas, a performance de papéis de classe em uma relação de subserviência e assimetria em que há exploração de uma parte sobre a outra pela falta de uma autonomia intelectual e pelo enrustido imaginário de minoridade do homem "ignorante", mesmo dentro do jogo, onde supostamente todos deveriam ser "iguais". Ou seja, independente de classe, fica a brecha para o argumento de que a financeirização e a indústria do consumo junto a uma cultura do desperdício afetam a todos e podem pôr em perigo, de diferentes modos, todos aqueles que não estão de fato no topo da pirâmide.
De volta ao jogo, mais falhas no sistema de pretensa justiça surgem quando os participantes percebem que não há problemas em matar um adversário em prol do seu próprio benefício na competição. Deok-su, o cara malvado, sem escrúpulos, com histórico de gangster e maior antagonista até então, mata uma pessoa com suas próprias mãos e não sofre qualquer consequência. Ainda, os valores quanto a corretude dos atos nessa atmosfera são expressamente nulos. Os "soldados vermelhos", os operários do evento, são punidos por se envolverem com a venda de órgãos de participantes à beira da morte com a ajuda de um jogador médico em troca de informações privilegiadas. Eles são eliminados por romperem com o princípio da igualdade, ao fornecer informações privilegiadas, não pela atividade ilícita que praticaram em busca de dinheiro.
A conformação dos soldados vermelhos, a partir do momento em que o policial se infiltra na operação em busca de respostas para o desaparecimento de seu irmão, ganha um nível maior de complexidade aos olhos do público. O funcionamento da divisão de tarefas e a relevância de cada indivíduo se estabelecem de forma estamental, algo como em um formigueiro, em que as formigas se dividem em castas de diferentes níveis de importância, vivem em função de um bem comum e devem obediência à rainha. Eles são separados em três classes: os círculos, os triângulos e os quadrados. O que se entende é que os círculos são pessoas comuns que estão sujeitas àquele trabalho ou ao descarte, novamente a morte, e talvez sejam ainda mais insignificantes que os jogadores, pois são substituíveis e não são as commodities do negócio.
Soldados Vermelhos em formação. (Créditos: Netflix, via Twitter).
Sim, o jogo não é uma iniciativa completa em si mesma, é um show vendido a uma elite que conhecemos como os VIPs. Esses são introduzidos no 7º episódio, falam inglês, não têm seus rostos revelados, são extremamente excêntricos e são quem financia a execução com apostas nos jogadores e a consomem como entretenimento. Eles vêm os "pobres", como Seong via os cavalos em que apostava. São recebidos com trajes e ambientação que rememoram a extravagância de eventos da elite mundial como o icônico Baile Surrealista da família Rothschild de 1972. Além dessa grande ironia, até quem assiste à série pode se questionar quanto ao seu interesse e deleite ao assistir a conteúdos de extrema violência e morbidez, assim como os VIPs desfrutam o Jogo da Lula.
Round 6 combina diversas referências à arte de culturas externas à Coreia, como através da curiosa arquitetura que mimetiza a Relatividade de M.C. Escher com as cores e formas da La Muralla Roja de Ricardo Bofill. Isso resgata uma dimensão internacional do jogo que descobrimos no 7º capítulo. Além disso, o uso de músicas clássicas como a valsa de Strauss, Danúbio Azul, dá um tom de espetáculo macabro junto a toda carnificina da disputa, assim como Fly me to the Moon de Frank Sinatra passa a sensação glamourizada de show business para o outro lado do jogo em que há espectadores cosmopolitas endinheirados bebendo whiskey.
À esquerda, Relatividade, de M. C. Escher. Litografia, 1953. (Fonte: Site oficial M.C. Escher - mcescher.com) e, à direita, La muralla roja, Alicante, Espanha (1973)
(Créditos: imagem por Salva López / Ricardo Bofill, Gestalten 2019)
Labirinto de escadas na série Round 6. (Créditos: Netflix)
Como esperado, vemos os personagens sendo engolidos pelo jogo do qual "escolheram" participar com um perverso tom kármico ao notarmos que suas mortes imitam, de algum modo, algo ruim que fizeram a alguém, independente das condições em que o fizeram. Percebe-se um punitivismo teológico, que se espelha no pecado de cada um num mundo sujo, onde nada além do ato em si determina a culpa de quem o fez, ignorando-se um julgamento a partir de contextos e possibilidade de defesa. Depois de muito sangue derramado, há apenas um ganhador. Ao fim desta temporada, reviravoltas inesperadas acontecem e o debate sobre a crença na bondade humana ressoa como um tema superficial para tornar mais palatável uma história com tantas críticas ao sistema capitalista competitivo como Round 6, uma produção limitada a ser "esclarecida", mas não demais, por conta de seu próprio meio de difusão, a Netflix.
Então, por que a Round 6 chamou tanta atenção? É possível falar em algumas hipóteses, como a atração pelo conteúdo violento, justamente por conta da massificada cultura da violência não só presente nas ficções, mas, primeiramente, na vivência humana e no cotidiano das notícias locais e internacionais. Uma segunda razão pode vislumbrar um real interesse, curiosidade pela temática e reflexão do telespectador, e uma última, que me parece mais provável, estaria tanto relacionada ao conteúdo e ao encadeamento engajador da trama que nos prende à tela quanto a um comportamento de manada projetado pelo algoritmo da rede através do sistema de recomendações por popularidade. Ora, por virar manchete e se tornar tão falada, a série acabou agregando um público curioso e interessado em se familiarizar para poder se socializar com base no assunto do momento.
Apesar de seu diretor, Hwang Dong-hyuk, afirmar a sua não pretensão por uma próxima temporada da série, é muito provável que, pelo enorme sucesso, seja encadeada uma segunda a mando da plataforma produtora. Há muito o que explorar por conta de um desfecho ainda enigmático e pontas soltas numa sequência. No entanto, esperamos que a extensão da série não seja guiada apenas pelo interesse comercial, dado a exemplos anteriores como La Casa de Papel e 13 Reasons Why, séries que, como uma obra geral, perderam sua qualidade e subverteram seu intuito com a forçação de um conteúdo já esgotado. Round 6 é uma série repleta de referências atuais, um tema universal e um ritmo engajante. Certamente, há boas expectativas para mais história.
Autoria: Maria Eduarda Neuburger Freire
Revisão: Letícia Fagundes
Imagem de capa: Reprodução Rolling Stone Brasil
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