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STJ descarta a configuração de crime em relações sexuais de homens com meninas menores de 14 anos em casos específicos; e não é a primeira vez



Apesar de a maioria esmagadora das pessoas abominar o crime de abuso sexual contra menores de idade, o Brasil não possui um dispositivo específico para pedofilia no Código Penal [1]. O que há, na verdade, é o crime de estupro de vulnerável, que abrange a conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, independentemente de consentimento (Artigo 217-A) [2]. No entanto, com o passar do tempo, novos projetos são aprovados sobre esse tema, com o fim de diminuir a vacância retórica que existe sobre esse ato hediondo [3].

O fato mais recente é que as turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça consideram que há exceções que podem descaracterizar o crime diante do ato sexual com menores de 14 anos [4].


O STJ tem um entendimento, repassado para instâncias inferiores, de que "o crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente". Esse entendimento (súmula 593) [5] é bem semelhante ao que o Código Penal, no seu artigo 217-A, propõe.


No entanto, na segunda semana de abril de 2025, a Terceira Seção do STJ rejeitou um recurso que pedia a condenação de um homem de 22 anos que manteve relação sexual com uma menina de 13 anos. Esse recurso foi interposto pelo Ministério Público de Santa Catarina contra uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado. A decisão considerou que a condenação seria irrelevante, dado que a dignidade sexual da menina não teria sido violada, uma vez que teria havido consentimento da vítima e de seus familiares para o relacionamento com o homem.


“Não se trata de adultos, coronéis, pessoas com idade avançada que poderiam estar pervertendo a criança. Trata-se de outro jovem. A Organização Mundial da Saúde caracteriza jovem de 15 a 24 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente vai de 12 a 18 anos. A adolescência tardia pode se estender até os 24 anos” [4], afirma o ministro Reynaldo Soares da Fonseca.


O ministro Rogério Schietti abriu uma divergência sobre a decisão, mas foi derrotado. O magistrado teme manter uma decisão dessas, “uma vez que essas meninas não encontraram proteção da família ou do Estado” [4].


Não é a primeira vez que um caso de natureza semelhante chega ao STJ e resulta em uma decisão controversa.


Há um caso de 2021 que teve resultado semelhante. O ministro relator do caso, Reynaldo Soares da Fonseca, propôs a aplicação de um distinguishing (distinção) à súmula 593, para abrandar a pena de um jovem de 19 anos que cometeu o ato contra uma menina de 12 anos. A pena de 14 anos de reclusão em regime fechado poderia causar injustiças irreparáveis para o homem, segundo o entendimento do resultado [6].


O caso e o que os magistrados argumentaram foi:


“Trata-se de réu que, adolescente, iniciou namoro com menor de 14 anos com a permissão e o consentimento dos pais dela. Desse relacionamento, resultou um filho. De forma consensual, eles decidiram morar juntos na casa dos pais do adolescente, que trabalha para sustentar a família. A vítima, por sua vez, continua estudante e deseja manter a união com o réu” [6].


“[...] a pretexto de proteger a vítima menor de 14 anos, a decisão condenatória acabaria por deixar a jovem e o filho de ambos desamparados não apenas materialmente, mas também emocionalmente, desestruturando a entidade familiar, que é também protegida constitucionalmente” [6].


Em outro caso, ocorrido no ano passado (2024), o STJ não reconheceu estupro quando uma menina de 12 anos engravidou de um homem de 20 anos. O relator afirmou que a prisão poderia abalar o bem-estar da criança que nasceu [7].


Nesse caso de 2024, a mãe da jovem de 12 anos denunciou o homem, que foi condenado em primeira instância a 11 anos e 3 meses. O caso chegou ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que absolveu o agressor. O Ministério Público do Estado, então, recorreu ao STJ, que, por sua vez, não entendeu o fato como crime.


Esse é mais um caso que, coincidentemente, contraria o entendimento do STJ (Súmula 593). Outra coincidência é que o relator que absolveu o homem do ato mais recente (2025) é o mesmo homem que não reconheceu o estupro no caso da menina de 12 anos e é o mesmo que aplicou o distinguishing no caso de 2021. Reynaldo Soares da Fonseca sugeriu, durante o julgamento, que o acusado não saberia que é crime manter relação sexual com menor de 14 anos. “Isto aqui é um absurdo.” “É um escárnio.”, afirma o professor de direito da FGV Direito SP e FGV RI, Thiago Amparo, em seu post na plataforma X (antigo Twitter) em relação ao caso [8].


A ministra Daniela Teixeira foi contra a decisão final desse caso. Ela afirmou que o afastamento do crime de vulnerável pode abrir precedentes perigosos para futuros casos semelhantes. “O que vai acontecer é que os coroneis deste país vão misteriosamente se apaixonar pelas meninas de 12 anos. Este será o principal excludente de ilicitude. As crianças precisam ser protegidas de todo tipo de violência.”


Dito e feito. Mesmo que não tenha servido como precedente formal na argumentação do relator, mais um homem foi absolvido de relações sexuais com menores de idade. Mesmo com a existência do artigo 217-A no Código Penal, este parece ter pouco efeito sobre as decisões dos magistrados.


O que se observa é que, mesmo que a cada 8 minutos uma mulher ou menina seja vítima de estupro no Brasil, e que 61,4% das vítimas tenham no máximo 13 anos [9], quando o caso sobe às instâncias judiciais superiores, a justiça frequentemente não é feita. As jurisprudências e precedentes criados por esses casos e outros semelhantes são perigosos para a manutenção do ordenamento social.


O perigo reside não só na questão judicial, mas também na percepção da sociedade acerca do ato. Filósofos como Michel Foucault e Immanuel Kant argumentam que a sensação de impunidade em uma sociedade pode gerar insegurança e desconfiança, o que enfraquece a autoridade das instituições e incentiva comportamentos desviantes. Se um criminoso pratica um ato considerado hediondo quase que unanimemente e é absolvido dessa ação, o que impede que outros também o façam? Se até com crimes que não encontram leniência por parte da população existe ausência de punição, o que dizer dos outros atos?




Referências:


  1. VALADARES, Pablo. Projeto define crime de pedofilia no Código Penal. Câmara dos Deputados, Brasília, 19 jan. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/721950-projeto-define-crime-de-pedofilia-no-codigo-penal/. Acesso em: 26 abr. 2025.


  1. BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Presidência da República, Brasília, 7 dez. 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 26 abr. 2025.

  2. OLIVEIRA, Maryanna. CCJ aprova inclusão de crimes de pedofilia no rol de crimes hediondos. Câmara dos Deputados, Brasília, 18 nov. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/828302-CCJ-APROVA-INCLUSAO-DE-CRIMES-DE-PEDOFILIA-NO-ROL-DE-CRIMES-HEDIONDOS. Acesso em: 26 abr. 2025.

  3. G1. Decisões recentes do STJ descartam crime em relações sexuais de homens com meninas menores de 14 em casos específicos. G1, São Paulo, 10 abr. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/04/10/decisoes-recentes-do-stj-descartam-crime-em-relacoes-sexuais-de-homens-com-meninas-menores-de-14-em-casos-especificos.ghtml. Acesso em: 26 abr. 2025.

  4. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 593: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o consentimento, a experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso com o agente. Boletim do MPPR, Curitiba, 2017. Disponível em: https://site.mppr.mp.br/crianca/Pagina/Sumula-no-593-STJ-anotada. Acesso em: 26 abr. 2025.

  5. MINISTÉRIO PÚBLICO DE GOIÁS. STJ afasta presunção de crime em caso de estupro de vulnerável. Boletim do MPGO, Goiânia, set. 2021. Disponível em: https://www.mpgo.mp.br/boletimdompgo/2021/09-set/cao/infancia_juventude_educacao/noticias/stj-afasta-presuncao-crime-estupro-vulneravel.html. Acesso em: 26 abr. 2025.VITAL, Danilo. STJ afasta presunção de estupro de vulnerável e rejeita denúncia. Consultor Jurídico, São Paulo, 2 jun. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jun-02/stj-afasta-presuncao-estupro-vulneravel-rejeita-denuncia/. Acesso em: 27 abr. 2025.​

  6. MENON, Isabella. STJ não vê estupro em caso de menina de 12 anos que engravidou de homem de 20. Folha de S.Paulo, São Paulo, 14 mar. 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/03/stj-nao-ve-estupro-em-caso-de-menina-de-12-anos-que-engravidou-de-homem-de-20.shtml. Acesso em: 26 abr. 2025.

  7. @thiamparo, Thiago. STJ afasta presunção de crime em caso de estupro de vulnerável. Twitter, 15 mar. 2024. Disponível em: https://x.com/thiamparo/status/1768587265456890117. Acesso em: 26 abr. 2025.

  8. SINTRAJUFE/RS. A cada 8 minutos, uma mulher ou menina é vítima de estupro no Brasil; 61,4% das vítimas têm no máximo 13 anos. Sintrajufe/RS, Porto Alegre, 3 maio 2024. Disponível em: https://sintrajufe.org.br/a-cada-8-minutos-uma-mulher-ou-menina-e-vitima-de-estupro-no-brasil-614-das-vitimas-tem-no-maximo-13-anos/. Acesso em: 26 abr. 2025.




Autor: Raphael Adans

Revisão:

Capa: JOTA


1 comentario


Ótimo texto e tem um ponto importante que geralmente é suscitado nesse tipo de debate: tecnicamente, a pedofilia em si é uma parafilia (ou seja, um transtorno). Contudo, nem todo abusador de menores é um pedófilo. Desse modo, como identificar quem é e quem não é, para oferecer tratamento (que existe)? Acho interessante - e ao mesmo tempo cru - que a deputada do PT-PI proponha uma leia para criminalizar a pedofilia com esses termos. Justamente pela questão técnica, acredito que a proposta encontrará impeditivos em audiências públicas, na CCJ e afins

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