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UM VIVA À EFEMERIDADE DA CULTURA




Não há outro jeito de dizer isso: a cultura é efêmera. Ela nasce, tem seu auge e morre. Assim é o ciclo, sempre foi. Uma verdade difícil de engolir para muitos de nós, principalmente aqueles que, em desespero, negam-se a ver os avanços do mundo.


Mesmo assim, nossa geração deu um jeito de mudar esse ciclo, de profanar o sagrado sistema. Somos ao mesmo tempo abençoados e amaldiçoados pela capacidade de revisitar memórias do passado, lendas da música dos tempos de juventude de nossos avós e obras audiovisuais de anos que não voltam mais. Abençoados, sim, pois é com essas ferramentas que podemos corromper o ciclo de vida da cultura, de forma mais orgânica e rápida do que os mais velhos jamais imaginariam. Em um clique, trazemos para 2023 o que Caetano cantou em 67, assistimos em um maio cinzento o que foi gravado em uma longínqua primavera americana por Hitchcock. Não à toa, somos a geração com “alma velha”, com mania de antiguidades e de gostar de tudo o que se empoeirou nas lembranças de nossos pais.


Ao mesmo tempo, somos amaldiçoados pela perda constante, por relembrar que alguns daqueles artistas não estão mais entre nós. Como nosso pais, lamentamos a morte de uma Elis Regina que nem sequer vimos cantar. Quando um nome se vai, já nos nossos tempos, o impacto é duplo, pois não é apenas uma geração que perde um ícone, mas todas as subsequentes que puderam apreciar seu trabalho. Uma Rita Lee não é grande só em seu tempo, cresce no coração de todos e se torna maior do que tudo o que tentou representar lá na Tropicália.


A efemeridade da cultura doeu, dói e doerá sempre que abrirmos o Twitter e nos depararmos com um nome sexagenário nos trending topics. Nome que, horas antes, tocou em nosso Spotify ou atuou em algum filme na nossa conta da Netflix. Essa dança entre o antes e o agora é o elo que faz a passagem dos ídolos ser contínua, amarga e complexa. Como ABBA canta para emocionar um bando de moleques de 19 anos? Como Madonna ainda impacta jovens que não acompanharam o seu “Like a Prayer"?


Efêmera, sim. Felizmente, porém, a cultura também é facilmente recriada, reconstruída em novas formas para se adequar ao tamanho da sociedade que a carrega. Claro, trazemos os moldes criados por grandes nomes da arte, mas temos também a capacidade de criar o novo, de novo. Se não nos preocupamos com os militares ou com a repressão, é contra a caretice impregnada que devemos lutar, então. Por que não olhar para trás e rever a luta de uma certa senhora paulistana de cabelos vermelhos? Artistas se constroem aos passos dos que vieram antes, garantindo a continuidade da cultura em seu eterno morrer e viver. Se um Brasil quebrado cantado por Gal Costa ainda não mostra a sua cara, é ao som de novos músicos que devemos cobrar esta terra contemporânea. O que Michael dançou, Beyoncé relembra em passos ensaiados de suas turnês.


Não, não, não. Quero ligar a tevê e ver na tela os rostos familiares da geração de papai e mamãe. Quero ver Queen abalar no primeiro Rock in Rio, levando uma multidão de cabelos coloridos, que hoje ocupa escritórios frios em algum canto do Brasil, à loucura. Voltar no tempo para encaixar aquela cultura com a que eu tenho. Ir a festas e dançar ao som do novo hit do Tiktok não parece a mesma coisa quando percebemos que em algum dia a atuação de uma Fernanda Montenegro chegará ao ato final. De repente, quando notamos que a ruptura é inevitável, tudo fica meio chato. Às vezes até parece que a efemeridade da cultura se acelera a cada dia, assim como tudo, nesse mundo.


Em caso de parecer conservador, peço perdão. Não digo que a cultura de hoje não presta, não serve, que é coisa ruim. No meu tempo era melhor? Jamais. Sou daqui, é minha também. Pego, assumo e cuido. Cultivo da melhor forma. Faz parte da cultura ser diferente e, ao mesmo tempo, tão igual para cada gen. Baby Boomers têm tanto a aprender com os Millennials quanto nós temos com eles. No fim é isso, um ensinando o outro a conviver com essa metamorfose ambulante, que é tão contínua em cada nova década, mesmo que cantada com palavras diferentes.


Se nossos avós tiveram Janis, nossos pais ouviram Raul. Nós temos o privilégio de ouvir tudo isso e mais um bocado, vivemos ainda com a pluralidade de nossos tempos. Hoje, mulheres seguras celebram seus corpos, a periferia ganha o centro com seu funk, drag queens roubam a cena em um país ainda manchado pelo preconceito. Coisa da cultura, penso eu, isso de melhorar a cada tempo. Mas curvando-se para o passado pode-se construir um futuro ainda mais brilhante. Vamos celebrar, então. Em nome de cada um que pisou em um palco para enfrentar problemas que se modificam, que deu a vida em uma atuação sobre um dilema que talvez nem exista mais ou que escreveram sobre sentimentos tão permanentes no mundo.


Escrevo esse texto com lágrimas, em especial pela notícia fresca de que um dos maiores nomes da nossa música, da MPB, produto da nossa gente, morreu. Rita Lee era única, mas permitiu que outras únicas viessem depois. Agarrando-se a isso, fica mais fácil de entender esse fenômeno da cultura. Ao mesmo tempo efêmera, permanente e continuada. Quanta coisa!


A cada perda, o legado fortalece esse sistema maluco para o qual damos o nome de cultura. Cada nome que temos hoje e que as próximas gerações não terão fará parte de algo maior e mais bonito. Quanto blablabla, quanto clichê. Sinto muito, são coisas inevitáveis no mundo de hoje. Um mundo que parece do avesso, no qual é na cultura, a do passado, do presente e a do futuro, que nos agarramos pela sanidade. Celebremos então. Viva a efemeridade da cultura, em nome de Ritas, Freddies, Gals, Michaels e tantos outros. Viva a efemeridade da cultura em nosso próprio nome, e em nome de todas as nossas playlists em nossos apps de música favoritos.


Autoria: Arthur Quinello Revisão: Anna Cecília Serrano, Enrico Recco e Luiza Parisi

Capa: Gustavo Zeferino/colagem.



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