No último dia 25, completaram-se 5 anos da morte da brilhante escritora Fernanda Young. Esta mulher que, entre muitos outros feitos, foi reconhecida pelo seu talento de retratar muito bem a sociedade brasileira média, do que pensava a dona de casa ao que fazia o chefe do escritório, sabia como ninguém colocar em palavras a verdade nua e crua. Em sua última coluna para o jornal O Globo, Fernanda declarou que o Brasil estava perdido para a cafonice.
Nascida em um Brasil sob um regime militar, jovem rebelde nos anos 90 e artista competente nos anos 2000, Fernanda Young viveu muitas realidades do país, mas jamais foi tão certeira em prever uma distopia brasileira quanto em seu derradeiro texto. A cafonice, como ela indica, toma conta de um país que já tem outros grandes problemas para se preocupar. Mesmo assim, se torna tão alarmante que merece destaque em um texto simbólico publicado em um dos maiores jornais do país.
A cafonice que Young evoca em 2019 ainda se faz presente em 2024, igualmente, senão mais latente e alarmante. O que trago aqui é, portanto, mais do que uma tentativa de reviver as palavras póstumas da escritora como forma de homenageá-la. É um apelo para que pensemos sobre essa cafonice chata que assola o país e, principalmente, a quem interessa mantê-la e por quais interesses o faz.
Cafona é aquele a quem falta bom gosto e elegância, que é grosseiro ou vulgar. Muito atrelada ao mundo da moda, essa palavra tem um peso maior quando analisada pelo viés de uma nação. Não se trata de sapatos e vestidos que não combinam entre si, mas de um país que caminha para uma direção sem gosto, vulgar e extremamente grosseira com tudo que vai contra o pensamento comum - este que é, claro, extremamente cafona.
“O cafona manda cimentar o quintal e ladrilhar o jardim. Quer todo mundo igual, cantando o hino. Gosta de frases de efeito e piadas de bicha. Chuta o cachorro, chicoteia o cavalo e mata passarinho. Despreza a ciência, porque ninguém pode ser mais sabido que ele. É rude na língua e flatulento por todos os seus orifícios. Recorre à religião para ser hipócrita e à brutalidade para ser respeitado.” escreveu Fernanda Young, ainda em 2019. Muito similar é o que temos hoje, os cafonas que, na ânsia de manter tudo igual o tempo todo, agridem de todas as formas quem ousa contrariá-los.
No Congresso, uma onda cristã toma conta, se agarrando a uma falsa moral e aos falidos símbolos nacionais - uma bandeira marcada e um hino esquecido - para evocar o espírito de um Deus que prega a perseguição e a morte do que é diferente. A caridade é perseguida e as mazelas sociais ignoradas, em nome da fé cristã e de uma agenda que é mais inescrupulosa do que política. Aos berros, discutem-se assuntos em retroativo: quem pode casar com quem, quem pode abortar, o que podemos aprender nas escolas, o quanto devemos nos matar de trabalhar. Tudo cafona, tudo de péssimo gosto. Em 2024 ainda estamos presos a debates de 10, 15 ou 20 anos atrás, sem perspectiva de avanço ou nem sequer de um trato mais refinado da coisa.
A Amazônia de Young ainda pega fogo aqui. A Mata Atlântica também. O Pantanal também. Sem chance de melhorar, o cafona mete fogo para criar gado. Para plantar soja. Para exportar e crescer um agro que, hoje, é mais sinônimo de morte do que vida. Um país condenado a virar um grande pasto. Em Brasília, os cafonas se reúnem para conversas vazias sem efeito, tapam os olhos para a questão com medo do déficit de uma frágil economia, apenas esperando o próximo coquetel para socializar e fazer boa figura. Sem bom gosto, sem competência, sem muito mais a oferecer do que o brega.
Quando achamos que já estamos no limite da cafonice, ecoa na maior cidade do país o canto de um homem que é o ápice da cafonice, da imbecilidade. Seguido por outros como ele, ganha força no pleito do executivo local e cresce em disparada nas pesquisas. Nada mais do que um retrato tosco do que a sociedade brasileira se tornou. Esta que gosta do animalesco, do selvagem, do que morde ao invés de conversar, do que ataca sem provas os inocentes enquanto comete crimes acobertados pela mesma laia que o defende. Vergonhosa essa cafonice, que chega a ser uma ameaça a um já deteriorado sistema, que coloca em risco também uma já deteriorada cidade.
Onde podia haver esperança, na verdade, reside mais cafonice. A arte e a cultura vem sendo tomadas pela onda do conservador, do falso puritanismo e da aversão à transgressão. “O cafona odeia a arte”, afirmou Fernanda sem saber que, em pouco tempo, este cafona se apoderaria dela. Transformaria o outrora refúgio de uma sociedade cansada em mais um aparelho de falácia, do monótono e morno, do intrinsecamente e irremediavelmente cafona. Sexo? tabu. Gays e lésbicas? assunto proibido. Política? Deus me livre. Nada mais pode escapar das pavorosas críticas de um povo tão reprimido quanto amargurado. Os filmes nacionais sofrem com revisionismos toscos e resistências exacerbadas da sociedade, as novelas sofrem cada vez mais alterações a fim de agradar um público de sofá conservador. Na música, se não o agro da morte, quem domina as paradas são aquelas que ostentam um estilo de vida meritocrático, falácia neoliberal, que entra na mente de uma multidão ainda jovem e estabelece bem a mensagem desejada.
Não há momento mais cafona para se viver no Brasil. País afundado por prédios espelhados, Hilux cromadas e apostas esportivas. Nada de arte, de política séria, de meio ambiente ou de justiça social. Os frangalhos econômicos provenientes de um crescente subemprego se aliam à vulnerabilidade de um povo que ainda cai em fake news do grupo do zap. Falta mais crítica, mais apreço ao que é bom e mais caráter. Não há espaço sequer para um pouco mais de graça nos pensamentos, de elegância nas palavras ou de firmeza nas ações.
Mas então, por que parece que ninguém faz nada? Isto é, por que parece que ninguém que pode fazer alguma coisa, de fato faz? Ora, mas é claro que são justamente essas pessoas que gostam de manter as coisas assim. Hoje, não é mais vantajoso soar progressista, banana, esquerdalha. Muito melhor sair por aí balbuciando frases de efeito, atacando minorias e depois transformar isso em reels para o instagram. Essas pessoas que, talvez, lá atrás estivessem do lado garboso da luta, hoje já nem se dão ao trabalho. Ocupam salas na capital para não fazer muito mais do que partilhar emendas e ganhar likes dos eleitores, pensando mais nos pleitos futuros do que no presente. Nas grandes cidades, acompanham com mais veemência a situação da bolsa de Nova York do que a queda da floresta, sinônimo de um fim escaldante para todos nós. Tudo o que avançamos na última década não passou de um mal ensaiado teatro, na qual a cafonice era repreendida quando, na verdade, era ansiada pela classe dos poderosos.
A realidade é dura. Difícil aceitar que não é o ator da globo que pode, de fato mudar o país, embora alguns ainda pensem assim. Não é o professor universitário e nem o movimento estudantil. Não são os MEIs e nem as influencers de maquiagem. Estes são apenas parte do novo jogo social. Podem sim influenciar e alterar a realidade a sua volta, mas só em um curto raio. No final, quem realmente faz as regras não quer, essencialmente, mudá-las. Está muito bom assim. Quanto mais avançamos para ser um país vulnerável, fundamentado em uma rasa interpretação da fé cristã, com ódio do que é diferente, queimando pra fazer pasto e correndo para apostar tudo no já normalizado jogo do tigrinho, mais vamos para o buraco.
Enxergo, com muita tristeza, que voltamos à estaca zero da nação. Se não zero, algo muito próximo a isso. Se concorda ou não comigo, não sei. Mas deve dar o braço a torcer e admitir que estamos vivendo um país - quiçá um mundo- muito obscuro, que não nos dá uma oportunidade real de pensar no melhor que está por vir amanhã. Por hoje, é vestir a máscara, seja de um lado ou do outro, e tentar fazer o melhor em meio a cafonice crônica brasileira. O mesmo país de antes, os mesmos problemas e as mesmas dinâmicas, só que dessa vez, mais cafonas do que nunca.
Parafraseando o final do texto de Young: “Existe algo mais brega do que um rico roubando? Algo mais chique do que um pobre honesto? É sobre isso que a pessoa quer falar, apesar de tudo que está acontecendo. Porque só o bom gosto pode salvar este país”. Apenas tomo liberdade de revisar a última frase, já desesperançoso. Não há mais bom gosto que possa salvar esse país, pois aquele vive escondido em poucos remanescentes. No geral, deu espaço para uma ode ao mais grotesco e vazio, o mais vulgar e rude possível. Enquanto isso, vemos o Brasil afundar pelas mãos dos que, ironicamente, deveriam melhorá-lo, utilizando valores rasos e distorcidos. E claro, muito, mas muito cafonas.
Autoria: Arthur Quinello
Revisão: André Rhinow e Laura Freitas
Imagem de capa: Divulgação/B3
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