CONCORRÊNCIA ESTRUTURAL E GOVERNANÇA ALGORÍTMICA: A NOVA DICOTOMIA EUROPEIA
- Ornito Vargas
- há 4 dias
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Nos últimos dez anos, a União Europeia tem se empenhado em reconstruir sua presença no espaço digital – um território marcado, por décadas, pela hegemonia de plataformas norte-americanas e pelo avanço tecnológico impulsionado pela China. Essa constelação geopolítica gerou uma ambição dupla e, de certo modo, paradoxal: promover um mercado digital competitivo e, simultaneamente, assegurar a proteção de direitos fundamentais em um cenário em que decisões sobre consumo, trabalho, segurança e informação passam a ser mediadas por algoritmos, e, consequentemente, pelas grandes empresas. Dessa ambição emergem dois pilares regulatórios que sustentam o atual edifício europeu de governança digital: o Digital Markets Act (DMA) e o Artificial Intelligence Act (AI Act), que são apresentados, pelo discurso oficial, como dois lados de um mesmo projeto de “soberania digital”. Tratado como uma expressão guarda-chuva que promete afirmação geopolítica, autonomia tecnológica e liderança normativa, a busca pela soberania enfrenta não somente as lacunas legislativas mas também um ideal mercadológico competitivo e acirrado. Assim, analisando ambas as medidas, noto que o DMA e o AI Act parecem menos pilares de uma mesma construção e mais arquipélagos regulatórios que coexistem sem efetivamente dialogar entre si.
A retórica europeia, marcada pelo que Anu Bradford formulou como o Brussels Effect, alimenta a imagem de que a UE exporta padrões regulatórios globais, consolidando sua autoridade normativa justamente pela força da harmonização interna. Porém, o DMA e o AI Act representam filosofias regulatórias distintas desde a origem. O primeiro opera como uma espécie de concorrência estrutural ex ante, que não espera que condutas abusivas ocorram para agir, mas barra de antemão comportamentos típicos de concentradores de mercado (comumente denominados como “gatekeepers”). Já o AI Act propõe se organizar como um regime verticalizado de risco, impondo camadas de obrigações proporcionais aos potenciais danos sociais e éticos dos sistemas de IA, enquanto tenta equilibrar inovação e tutela de direitos fundamentais.
Ambos os atos normativos repousam formalmente sobre a mesma base jurídica, que seria o artigo 114 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFEU), utilizado para harmonizar regras do mercado interno. Mas esse ponto comum funciona muito mais como uma ficção organizadora, do que de fato como uma convergência de racionalidades. Sob a superfície, cada regime responde a lógicas institucionais, objetivos econômicos e estratégias políticas substancialmente diversas.
O DMA nasce de um diagnóstico histórico: a aplicação tradicional do direito antitruste, que é, especialmente no campo digital, lenta demais, casuística demais e frágil demais diante de mercados que tendem ao monopólio natural. A essa altura, é óbvio afirmar que o mercado digital se estrutura cada vez mais em um oligopólio – Alphabet, Apple, Amazon, Meta, Microsoft. Em vez de reconstruir casos após anos de litígio, o regulamento estabelece obrigações diretas e imediatas para plataformas com posição estrutural dominante. Trata-se, então, de um retorno à concorrência estrutural, adaptada ao século XXI, que tenta promover a transparência, interoperabilidade, limites à autodireção de tráfego (o chamado “self-preferencing”) e garantias mínimas para que empresas menores possam contestar mercados caracterizados por efeitos de rede e economias de escala extremas. Vale destacar que, assim como qualquer outro ato normativo, existe um limiar entre regulamentação e eficácia, que deve ser seriamente considerado.
Esse arranjo representa, em grande medida, uma tentativa da União de reequilibrar as relações de dependência econômica que moldam o ecossistema digital atual. A soberania digital, nesse caso, assume um caráter eminentemente econômico, centralizado na capacidade de garantir que o mercado interno não seja capturado por um punhado de conglomerados globais, reforçando a autonomia europeia frente às Big Techs e, ao mesmo tempo, preservando a contestabilidade que sustenta a inovação.
Já o AI Act, porém, segue um caminho relativamente diferente. Ele nasce da constatação de que a inteligência artificial não é apenas um mercado, mas uma infraestrutura cognitiva que reconfigura relações sociais, institucionais e mesmo políticas. Em vez de se fixar exclusivamente na estrutura econômica dos sistemas, o regulamento prioriza o risco. Por exemplo, nele os litígios se classificam em alto risco, risco limitado, risco mínimo e proibições absolutas. Cada categoria impõe obrigações diferentes, desde governança de dados e documentação, até supervisão humana, testes contínuos e mecanismos de accountability. Vale esclarecer que esse modelo assume que a IA é uma tecnologia de múltiplo uso, ou seja, pode ter consequências boas, neutras ou danosas, dependendo do contexto. Por isso, regular a IA significa regular a relação entre sistemas algorítmicos e o tecido social, não apenas o mercado que os produz. Além disso, o AI Act também expressa uma forma distinta de dominação, já que se baseia em uma soberania ética, voltada a definir os limites de legitimidade do uso de sistemas algorítmicos. A UE tenta afirmar que certas práticas – vigilância biométrica em tempo real, manipulação subliminar, pontuação social – simplesmente não são compatíveis com o projeto democrático europeu. Desse modo, acaba sendo menos sobre contestabilidade do mercado e mais sobre integridade das instituições e proteção da dignidade humana.
Essa diferença entre os atos se reflete na própria engenharia institucional das normas. O DMA centraliza a aplicação na Comissão Europeia, que atua quase como uma autoridade antitruste de novo tipo, com poderes investigativos e sancionatórios robustos. Já o AI Act distribui competências entre autoridades nacionais de supervisão, órgãos científicos especializados e mecanismos de certificação técnica, criando uma teia mais complexa e fragmentada – o que até condiz com a natureza transversal da IA, mas se distancia da clareza hierárquica do DMA.
Colocar essas normas lado a lado evidencia não apenas a diversidade de seus objetivos, mas uma fissura estrutural na economia política digital da União. O DMA tenta reordenar o mercado, enquanto o AI Act tenta reordenar o risco. Um regula plataformas, o outro regula sistemas. Um lida com poder econômico, o outro com poder informacional e político. Ambos são fundamentais, mas funcionam em paralelo, quase sem interseção conceitual ou procedimental, apesar de supostamente integrarem a mesma estratégia de soberania digital.
Apesar de isso causar uma falsa ideia de complementaridade, o desalinhamento gera tensões práticas e teóricas. Do ponto de vista econômico, as obrigações de interoperabilidade e abertura de dados do DMA podem interferir nos requisitos de governança de dados de sistemas de IA classificados como de alto risco – e a legislação não oferece respostas claras para conflitos desse tipo. Já do ponto de vista institucional, a coexistência de autoridades distintas aumenta o risco de decisões desalinhadas e insegurança jurídica, especialmente considerando que estamos tratando de diversos países e, em larga medida, graças ao Brussels effect, de mais de um continente. E, do ponto de vista geopolítico, a fragmentação normativa ameaça diluir a própria ideia de soberania digital como um projeto unificado, no qual, em vez de um ecossistema coerente, a União parece construir múltiplos regimes autônomos que compartilham o mesmo rótulo, mas não necessariamente o mesmo horizonte.
Sustento, portanto, que o desafio central para o futuro da regulação digital europeia não é apenas aplicar o DMA e o AI Act, mas integrá-los. A soberania digital não se realiza com normas isoladas, mas com coordenação substantiva entre elas. Sem isso, corre-se o risco de produzir um mosaico regulatório que, embora aparentemente sofisticado, carece de unidade estratégica e é, em si, um conjunto de ilhas normativas cercadas por contradições. Se a União Europeia pretende, de fato, orientar a arquitetura digital global, precisará costurar melhor as fronteiras entre concorrência, governança algorítmica e direitos fundamentais. O verdadeiro teste não será a força de cada norma isoladamente, mas sua capacidade de dialogar dentro de uma mesma visão de futuro.
Autoria: Vicky Auricchio
Revisão: Sarah Costa
Imagem de capa: Pinterest







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