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Aborto no Brasil: o paradoxo entre a ilegalidade formal e a clandestinidade cotidiana

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“Paguei 700 reais para ir em uma clínica de aborto… quando cheguei lá eu fui recebida por um médico vestido de açougueiro com um avental branco todo ensanguentado. E com instrumentos claramente artesanais, rudimentares… Ele aplicou uma injeção local que eu não lembro se funcionou ou não, mas eu senti dores absurdas… e aí eu comecei a ter uma crise de vômito enquanto o médico me torturava dizendo que se eu não tivesse procurado ele, eu não estaria vivendo aquilo [...] Nos seis dias seguintes eu fiquei completamente fora de mim e com sangramentos muito constantes… Até que um dia eu desmaiei sozinha no meu quarto… eu deixei um recado para a minha mãe dizendo que ia viajar e fui encontrar meu namorado que me levou para um hospital particular perto da casa dele. A minha sorte era que o hospital tinha um convênio com o SUS… eu cheguei e eu desmaiei de novo. Quando eu acordei a plantonista falou que eram seis da manhã e que o plantão dela tinha acabado, que ela não ia poder me atender mas que era pra eu dizer pro médico seguinte que eu tive um aborto espontâneo. Eu vi ela dando instruções para as técnicas de enfermagem… quando ele chegou ele ficou falando coisas horríveis sobre as técnicas de aborto, enquanto as enfermeiras tentavam convencer ele de que eu era uma moça ‘direita’ [...] E desde que eu cheguei lá a plantonista anterior tinha me dito que se eu não disesse que era um aborto espontâneo ele ia me deixar morrer.” 


Este relato é do documentário “Clandestinas”, de 2014, que dá voz às mulheres brasileiras que recorreram ao aborto clandestino e ilegal. Elas contam como engravidaram, seus motivos para escolher a prática abortiva e suas experiências na tentativa –  algumas bem-sucedidas, outras não. Fiquei particularmente emocionada por esse relato em específico. Essa mulher não podia tomar anticoncepcionais, que lhe davam dores de cabeça intensas e náuseas, então, depois de ter uma relação sexual com o namorado sem preservativo, engravidou. Ela logo decidiu pelo aborto. Achei o caso interessante, porque, diferentemente de outros, nos quais a gestação é fruto de de um abuso e, por isso, as vítimas tendem a receber maior empatia, mesmo por parte daqueles que são contra o aborto, o caso dessa mulher é considerado mais “simples” e, portanto, mais mal-visto pela sociedade. Em uma sociedade na qual  a prostituição é percebida mais como uma degradação moral e algo a ser tratado com repulsa do que um problema sério de políticas públicas; na qual a vida sexual das mulheres é, ao mesmo tempo, objeto de fetiche e instrumento de ódio – não vejo como poderia ser diferente. 


Fiquei me perguntando se uma mulher comum merecia tamanho sofrimento, se ela deveria ser torturada por um único deslize (que não foi só dela, diga-se de passagem) e se um profissional da saúde não poderia ser responsabilizado por realizar um atendimento com objetivo de causar sofrimento à paciente, dado seu caso visto como “moralmente questionável”.  


Todos esses questionamentos me levaram à conclusão de que eu não consigo mais ver o aborto como uma questão moral. Abortos acontecem e continuarão acontecendo. Dentro de casa, com cabides e agulhas de tricô, ou em clínicas clandestinas, por mulheres pobres ou  ricas, por adultas e meninas. Não acho que as mulheres tenham que justificar os seus motivos para abortar. No final, não é uma questão de governo da mulher somente sobre seu próprio corpo, mas de domínio sobre sua própria vida. Individualmente, a questão do aborto suscita um debate moral. Coletivamente, entretanto, não há moralidade que possa alterar a realidade. Abortos acontecem e continuarão acontecendo, independente da sua opinião.


Surpreendentemente ou não, as diretrizes definidas pelo governo Vargas quanto à prática do aborto permancem praticamente inalteradas até a atualidade. Desde a redemocratização, nenhum dos 65 projetos de lei propostos na Câmara dos Deputados que pretendiam mudar as regras do Código Penal foram para frente. A única alteração feita desde 1940 foi a inclusão de descriminalização do aborto no caso de feto anencéfalo em 2012 por parte de um entendimento formado pelo STF (ADPF 54). A decisão removeu a ilicitude da conduta como determinado pelo Código Penal outorgado por Vargas. Portanto, para além do caso em que houve a descriminalização, no Brasil o aborto é legalizado em duas situações específicas, conforme previsto no Código Penal brasileiro (Decreto-Lei n 2.848/1940): risco à vida da gestante e gravidez resultante de estupro.  Sob condições diferentes das três citadas anteriormente, abortar ou realizar um aborto no Brasil é crime, com penas de detenção de 1 a 3 anos para a mulher e de 1 a 4 anos para quem realizar o procedimento. 


A tentativa mais recente de alterar o texto legislativo foi em 2024, mas não com o objetivo de descriminalizar os outros casos não previstos no CP. O deputado Sóstenes Cavalcante (PL) foi responsável pela autoria de um projeto de lei que visava aumentar a pena do aborto realizado após 22 semanas de gestação para até 20 anos de reclusão (pena equivalente ao crime de homicídio simples no Brasil, que é de 6 a 20 anos, e que se equipara à pena mínima do crime de estupro quando este resulta em morte, cuja pena pode ser de 12 a 30 anos de reclusão). A última ação legislativa relacionada a esse projeto de lei foi em agosto de 2024, de modo que, um ano depois da última atualização, acredito que podemos considerar a tentativa do deputado como frustrada, pelo menos por enquanto. 


Vale destacar – para evitar o sensacionalismo em torno do projeto de lei e ser justa na exposição de todos os fatores influentes neste debate – que o método realizado para interromper a gravidez depois de 22 semanas é a assistolia fetal, procedimento no qual o médico utiliza uma substância para parar os batimentos do feto, para então seguir com a indução do aborto. Esse método, indicado pela OMS, foi proibido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em abril de 2024, sob justificativa de que o medicamento utilizado é cruel, e que o aborto pode ser feito sem a assistolia nos casos em que a gestante foi violentada sexualmente. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, no entanto, suspendeu liminarmente a proibição do CFM, uma vez que o procedimento é recomendado pela OMS. O debate no Brasil quanto à necessidade do procedimento continua, tanto na esfera política quanto na privada. 


Até mesmo as mulheres que têm o direito de abortar encontram dificuldades no processo. Em teoria, o SUS deve garantir o acesso ao aborto seguro previsto por lei. Entretanto, esse serviço é oferecido em somente 3,6% dos municípios, concentrando-se em grandes cidades, de acordo com pesquisa da Anis (Instituto de Bioética), publicada em 2010. Apesar de ser um dado antigo, um relatório mais recente da Anis (2022) indica que a distribuição geográfica desigual e a dificuldade de acesso permanecem como uma grave realidade, de modo que a garantia desse direito na prática é a exceção, não a regra


Além disso, por conta do caráter extremamente moralista atribuído à questão do aborto no Brasil, muitas vezes essas mulheres dependem da boa vontade dos médicos e de suas inclinações morais para receber o atendimento previsto por lei. Perguntas são feitas e repetidas. Esse julgamento moral é descrito pelas mulheres que passam por esse tipo de situação como uma violência simbólica. Para muitas, esta representa mais uma violência sofrida (Documentário “Clandestinas”, 2014). 


A ilegalidade não impede a ocorrência de abortos, mas sim torna a segurança no processo inacessível às mulheres mais vulneráveis que, devido a complicações com abortos baratos e/ou mal executados, têm que recorrer ao sistema de saúde. Estima-se que ocorram mais de 500 mil abortos por ano no Brasil, o que resulta em aproximadamente 250 mil internações para o tratamento de complicações no SUS –  ainda que os dados não sejam precisos devido ao caráter clandestino da prática (Anis – Instituto de Bioética, 2022). 


Ainda de acordo com a pesquisa realizada pela Anis em 2022, pode-se afirmar que o Sistema Único de Saúde gasta milhões de reais por ano com o tratamento das complicações de um procedimento que é criminalizado. O Estado paga para tratar as consequências de uma política falha que insiste em manter, em vez de prevenir os danos por meio do acesso a serviços seguros. Portanto, a questão do aborto não é meramente moral – é um problema de saúde pública, de governança estatal e um reflexo da desigualdade social brasileira. 


A notícia mais recente quanto ao aborto no Brasil não é nada animadora. No dia 20 de outubro, foi suspensa a decisão liminar que autorizava o Hospital da Mulher a realizar o aborto em casos de stealthing, isto é, a retirada da camisinha sem consentimento. A Lei Maria da Penha inclui como ato de violência sexual qualquer conduta que “impeça [a mulher] de usar qualquer método contraceptivo”. A norma técnica de 2012 do Ministério da Saúde afirma que “abortamento é permitido quando a gravidez resulta de estupro ou, por analogia, de outra forma de violência sexual” (Folha de S. Paulo). Como argumenta a redatora Luana Lisboa no seu texto para a Folha, em que encontrei essas informações, há embasamento jurídico e técnico para realizar o aborto no caso de stealthing. Um contra-argumento seria que não há consenso legal quanto à ilegalidade do stealthing, o que causa uma insegurança jurídica. 


Se a nossa única esperança no tempo presente é o voto de Barroso a favor da descriminalização do aborto na véspera de sua aposentadoria, não acredito que nossas chances são boas, ainda que o voto seja preservado dada a regra interna do Tribunal. Ainda mais se a indicação do presidente Lula do evangélico Jorge Messias como novo ministro do STF e substituto de Barroso for para frente. Com isso, a perspectiva de quaisquer avanços relacionados a pauta se distanciam cada vez mais da realidade, e a esperança fomentada anos atrás com o voto de Rosa Weber pela descriminalização me parece mais um caso isolado, do que um símbolo do começo de uma batalha política pelo domínio das mulheres sobre sua vida. 


O aborto segue como prática criminalizada no Brasil. Agora, meu último e único questionamento é: por quê? Por que o Estado insiste na criminalização de uma prática que financia indiretamente? E por que as pessoas continuam a moralizar o ato, dado que, se os papeis fossem trocados, seu discurso moralista cairia por terra, como pura hipocrisia? 



Autoria: Julia Santos

Revisão: Pedro Anelli e Sarah Barros

Imagem de capa: O Globo



Referências: 

Documentário “Clandestinas”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AXuKe0W3ZOU&t=1116s

Aborto no Brasil: linha do tempo mostra lei praticamente inalterada desde 1940. CNN Brasil, 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/aborto-no-brasil-linha-do-tempo-mostra-lei-praticamente-inalterada-desde-1940/

Aborto - o que diz a lei. Jusbrasil, 2016. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/aborto-o-que-diz-a-lei/414535657

Estupro - o que diz a lei. Jusbrasil, 2015. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/estupro-o-que-diz-a-lei/362991835

Você o que diz o projeto de lei que equipara o aborto legal a homicídio no Brasil?. O Globo, 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/06/14/entenda-em-3-pontos-o-projeto-de-lei-que-equipara-aborto-legal-a-homicidio-no-brasil.ghtml

PL 1904/2024. Portal da Câmara dos Deputados, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2434493

Estudo "Custo da ilegalidade: impacto da criminalização do aborto para as mulheres e para o Sistema Único de Saúde no Brasil". Anis - Instituto de Bioética, 2022. Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/biblioteca/custo-da-ilegalidade-impacto-da-criminalizacao-do-aborto-para-as-mulheres-e-para/

Justiça suspende liminar que autorizava aborto em casos de retirada de camisinha sem consentimento. Folha de S. Paulo, 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2025/10/justica-suspende-liminar-que-autorizava-aborto-em-casos-de-retirada-de-camisinha-sem-consentimento.shtml


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