BARULHO
- Daniel Rocha
- há 5 dias
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Estou ficando surdo. Não digo isso nem como brincadeira ou para atrair o caro leitor logo no começo do texto, estou realmente ficando surdo. Há algum tempo conversas se tornaram murmúrios, não ouço direito a atendente do mercado, meus amigos numa festa, e a minha namorada que está ao meu lado. Descobri recentemente que não se trata de um problema unicamente meu. Ouço, na medida do possível, a mesma reclamação e conversando com amigos, na medida do possível, decidimos coletivamente fazer um exame de audiometria. A surdez virou pop. Por quê? Acho a resposta bastante simples: olhe para sua janela e se concentre.
Acho que falamos muito pouco sobre barulho na nossa cidade. Entendemos que é um problema dos centros urbanos e não há nada que se possa fazer além de calar a boca e aceitar que para conversar é necessário gritar. Mas queria que o leitor fizesse um exercício comigo. Preste bastante atenção. Eu sei que você está ouvindo um barulho agora. Uma massaroca indistinguível que arruina seus ouvidos desde a sua saída da barriga da sua mãe. Preste atenção. Que barulho é esse? De onde vem? Como vem? O que causa? Ele está do seu lado? Ele está se aproximando? Indo embora? Preste atenção. Combustão? Pneu? Avião? Moto? Makita? Martelo? Gritos? Que barulho te incomoda? Que barulho não para? Que barulho corta? É como se eu tivesse acabado de falar para você começar a respirar pelo nariz. Desculpa, aliás, porque agora espero que você esteja ouvindo todos os barulhos—incomodado—e inspirando, bem profundamente. Não à toa nos sentimos exaustos, olhe todos os trabalhos feitos no fundo da sua cabeça. Perceba a chatice que se tornou ouvir, respirar, piscar. Desculpa, ainda não havia falado para você piscar! Mas imaginei que seus olhos estavam secos, você passou o dia inteiro no computador trabalhando! Lembre-se, pisque, ouça, respire—é para o seu bem.
Meu corpo não foi feito para isso e acho que o seu também não. Mas depois do exercício que acabamos de fazer, você percebeu alguma coisa? Tirando os privilegiados que estão encarcerados em edifícios com janelas antirruído, chuto que provavelmente o que você mais ouviu foram motores. Estou ouvindo agora mesmo uma moto, um ônibus, um carro acelerando e expelindo carbono, água e energia, aquela fórmula de combustão que deveríamos ter aprendido na escola. Pequenas explosões incendiadas a gasolina, etanol ou diesel geram o movimento de pistões que transferem energia para as rodas—fonte de algo com um nome muito autoexplicativo: o motor de combustão. A invenção que marcou um século como revolucionária mas que, agora no outro, se tornou inimiga do ar e do som. Não à toa te pedi para respirar (inclusive, você ainda está controlando seu fluxo de ar?), o mesmo inimigo culpado pela sua rinite prejudica minha audição. Não sei quem considerou uma boa ideia pegar uma máquina de explodir e colocar várias delas em fila na frente da minha casa.
E, caro leitor, peço que me permitam um breve relato pessoal que limitarei a esse parágrafo. Meu quarto dá de frente com uma das melhores padarias do bairro da Lapa, ou melhor, dá de frente ao estacionamento de uma das melhores padarias do bairro da Lapa. Todo dia sou acordado aos barulhos dos valets gritando por um HB20 branco ou coisa pior. Se tornou meu inferno. Isso para não falar das buzinas frequentes enraizadas no conceito de fila dupla numa rua apertada vinda da necessidade de que os ricaços tenham a oportunidade de dirigir um carro de mais de duas toneladas para comprar seu pão fresquinho todo dia de manhã. Mas o pior de todos é o filho da puta daquele corno manso desgraçado que deve ter sido abandonado pela família e dirige aquele carro velho fudido, estragado, fumacento, barulhento pra um caralho que todo sábado de manhã inventa de acelerar aquela buzunfã em ponto morto em frente à janela do meu quarto. Incontáveis as vezes que fui acordado de ressaca pelo equivalente mecânico da tosse de um velho fumante que invade meu ouvido como o som agradável de um foguete saindo dum Panzerschreck. E eu nem mencionei o risco iminente de atropelamento andando na calçada em frente ao estabelecimento. Me pergunto: por que uma padaria precisa de um estacionamento tão grande? Por que tantas pessoas precisam vir de carro para uma padaria de bairro? Elas não têm pernas? Por que, especificamente, aquele senhor escolhe vir com um carro tão barulhento às oito da manhã (quase) todo sábado?
Se a gente polui o ambiente sonoro com uma base tão barulhenta, é natural que toda ação tomada em que você queira ser ouvido trabalhe para superar essa base. Isso quer dizer que qualquer conversa se torne um grito. Assim como estamos constantemente respirando, estamos berrando, já percebeu? Vivemos em um espaço tão desconfortável que abstraímos o que nos preocupa do corpo. Às vezes lembro de tomar a decisão voluntária de falar baixo, sabendo que talvez nem eu mesmo me ouça. Uma forma de protesto pacífico e silencioso tão eficaz como um boicote.
Mas isso não cura o barulho branco que me persegue. Infelizmente ainda não posso sistematicamente devolver no estilo Hamurabi o incômodo dessas máquinas as explodindo. Urge que eu ponha um fone de ouvido e escolha o próprio barulho que quero ouvir. Para minha tristeza, se realmente quiser ouvir o meu barulho de preferência, ele precisa superar o volume dos barulhos que repudio, o que talvez tenha sido o principal responsável pela piora do meu quadro crônico de surdez. É uma dinâmica, estamos constantemente querendo escolher os barulhos que nos cercam e, como é quase impossível abafar o barulho do outro, o nosso precisa ser maior. É a disputa das caixinhas de som na praia ou dos motores micropenísticos na rua. É uma droga, literalmente. Cada vez queremos mais som porque já não basta 100 decibéis para o seu ouvido já quase falecido, sofrido—principalmente depois de você achar que ficar ao lado de um paredão explodindo trava-noia naquela festa seria uma boa ideia.
Restam poucas alternativas para nos curarmos disso. Carros elétricos certamente ajudariam, mas o som do pneu é impressionantemente alto também. Ouça com atenção os carros e tente passar do barulho extremo do motor, você vai concordar comigo. Protetores auditivos e fones com supressão de ruído estão se tornando cada vez mais comuns, mas não são uma solução caso você ainda queira ouvir certas coisas—como o horrível cantar de um sabiá ou as opiniões daquele seu amigo que trabalha na prefeitura. Perderíamos esses pequenos prazeres. Resta uma solução que ainda não existe mas que tenho fé será um dia implementada: uma cirurgia de reativação de tímpanos. Imagine que legal, por exemplo, seria receber um tímpano artificial que funciona melhor que o seu? Poderíamos até ter a opção de desligar caso você queira a experiência da surdez. É certo que algo parecido virá nos próximos 10 anos e, até lá, vou aguardar sorrindo e concordando com qualquer coisa que me falam.
Autoria: Daniel Rocha
Imagem de capa: Library of Congress, Washington, D.C. (Número digital do arquivo: cph 3c10411). 1896
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