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O TIRO QUE NUNCA FOI

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(Música para leitura: 

“House of the Risin’ Sun” – Bob Dylan)


Era quase meio-dia. O calor e a secura rasgavam a paisagem árida. O Pistoleiro, montado em seu cavalo Jeremias, caminhava a passos curtos em direção ao centro da cidade. À sua esquerda, a Igreja Nossa Senhora das Dores, logo em frente ao prédio da prefeitura. Fiéis faziam procissões quilométricas, vindos de todos os cantos da região para poder rezar em seus bancos. Pressionando fortemente as portas giratórias, o Pistoleiro adentra o bar, que também ficava no centro.


Como de costume, ele pendura o cinto com suas armas em um cabide ao lado da porta. “De Beatriz, com amor”—era o que estava escrito na coronha de uma de suas pistolas. Ele nunca foi capaz de esquecê-la, especialmente depois de quase tê-la matado. Mas, afinal de contas, estava aqui.


Todos o encaram de cima a baixo. Olhares franzidos e expressões de curiosidade dominam o bar, até então pacato. O Pistoleiro se senta no balcão:


– Um copo de cajuína, por favor. – diz o Pistoleiro.

– E isso é lá bebida de macho? – retruca o dono do bar, cada vez mais incomodado com a presença do Pistoleiro.


O Pistoleiro, então, retira lentamente de dentro de seu casaco um pequeno frasco com um olho de vidro em seu interior e o coloca sobre a mesa. O dono do bar sente um arrepio:


– Calma lá, rapaz. Também não precisa disso. Aqui é um bar pacífico. – diz o dono, aflito, puxando imediatamente uma garrafa de cajuína debaixo do balcão e a servindo ao Pistoleiro.

– Foi o que imaginei...– disse o Pistoleiro, tomando um primeiro gole de sua bebida.


O bar retoma ao seu ritmo usual. De um lado, alguns locais entornando garrafas de cachaça como se não houvesse um amanhã, rostos cansados de tanto trabalharem em um sol desumano. Poderia até ser cedo para beber, mas não seria possível prever o sofrimento que estes pobres diabos enfrentariam nas próximas horas.


De um outro lado do bar, alguns homens se sentavam em uma mesa e jogavam cartas. Não há dinheiro sobre ela, como se as apostas fossem tão somente mentais. Homens de palavra não precisam de lastros físicos e tangíveis como o papel-moeda para honrarem suas promessas. Um deles se vira e encara o Pistoleiro. Seus olhos se alargam um por um instante, como se tivesse encontrado um antigo conhecido. Ele dá um leve sinal com seu chapéu, e o Pistoleiro o responde no mesmo tom.


Então, descendo as escadas do mezanino, uma mulher em roupas chamativas, com penas em seu cabelo, adentra o salão principal e anda em direção ao Pistoleiro. Ele nunca achou que a veria novamente, mas aqui ela estava:


– Adélia, que pena é essa no seu cabelo?

– Eu respondo só quando me disser o que você está fazendo bebendo cajuína. – disse Adélia, provocando o pistoleiro.

– Eu não bebo mais, Adélia. Não depois da minha mãe…

– É verdade – diz Adélia, arrependida – Desculpa.

– Eu até gostei da sua pena. O roxo é uma linda cor. – diz o Pistoleiro, como se aceitando as desculpas.

– Ela é falsa. Troquei-a por uma tiara fajuta que tinha. Pensando melhor, acho que sofri um golpe. – O Pistoleiro dá uma sutil risada ao comentário de Adélia, e faz sinal para que ela se sente ao seu lado.

– O que faz por essas bandas? Achei que já tinha desistido da sua busca.

– Vim ver o Milagre. – disse o Pistoleiro, tomando mais um gole da sua cajuína.

– Você se tornou mais religioso desde a última vez que nos vimos. Aquele padre está te fazendo mal, estou te dizendo... E você já perdeu. Hoje ele foi mais cedo: 11h30 – o Pistoleiro olha com frustração para Adélia e retira de seu bolso um pequeno relógio.

– Droga de relógio! Só me mostra a hora errada. Se não fosse o José, eu nem trazia ele comigo.


O relógio tinha uma aparência delicada, folheado a ouro e com um rosto de porcelana, já visivelmente gasto com o passar dos anos. Dentro, havia uma inscrição:  “Para que você saiba que sempre há tempo.”


– Bom… já que está aqui, poderia me levar até a pedreira. Faz tempo que não vamos lá.

– E isso não acontece por um motivo, Adélia.

– Mas já faz tantos anos… Eu nunca vou conseguir seu perdão?

– Talvez um dia, Adélia. Mas não hoje.


Adélia achava que ele, então, já estaria de saída, mas quando o Pistoleiro se levanta, ele sente uma presença indesejada entrar naquele momento no bar. No mesmo instante, as portas giratórias balançam novamente. Um rapaz alto e de cabeça baixa adentra o salão principal, a passos tão profundos que pareciam fincar suas botas no assoalho, arrastando-o com seu andar:


– Tchekhov, seu frouxo! Eu te encontrei agora.

– Quem é esse? – diz Adélia ao Pistoleiro, com uma expressão de preocupação nítida em seu rosto.

– Já te explico, querida – retruca o Pistoleiro, entornando seu último gole de cajuína.

– Você sempre faz isso! Fala um monte e nunca explica nada! – responde Adélia, irritada.


O Pistoleiro coloca sua mão no bolso e se vira ao encontro do sujeito que o chamava. Mas então, subitamente, ele sente uma dor profunda em seu estômago. Uma dor aguda, ardente, quente e árida como a paisagem. Ele sucumbe e vai de encontro ao assoalho, deixando cair sua segunda arma, uma que mantinha consigo a todos os momentos, desde o incidente na ferrovia. Ela continha um só tiro.


Ele morreu. Foi a cirrose.


Nota do autor:

A “Arma de Tchekhov”, termo em homenagem ao dramaturgo russo Anton Tchekhov, que apreciava histórias concisas e coesas, é um princípio que estabelece que todos os elementos presentes em uma história devem ser necessários e elementos irrelevantes devem ser removidos. Portanto, se um elemento é introduzido (como uma arma, por exemplo), ele necessariamente deverá ser utilizado ou ter alguma relevância ao longo da narrativa (a arma terá de ser disparada por alguém em algum momento). Até porque, encher uma história de elementos irrelevantes para ela ou para seu desfecho é só uma história muito mal escrita, não é mesmo?



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Autoria: Enrico Romariz Recco

Revisão: Giovana Rodrigues e Pedro Anelli


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