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BRASIL PELOS OLHOS DO BRAZIL



Quando nos perguntamos “o que define o povo brasileiro?”, inevitavelmente, todos nós pensamos nos mesmos símbolos socioculturais. Futebol, samba, carnaval e, por que não, o famoso “jeitinho brasileiro”? Esses signos parecem inexoráveis, já que, sem hesitação, eles nos vêm à cabeça ao tratarmos da nossa cultura. Inegavelmente, as características mais imediatas são um reflexo da visão de um povo sobre si próprio e não podemos nos privar de questionar as origens dessas simbologias.


Pode aparentar, leitor, que essa reflexão é fruto de um devaneio despropositado, o que, em parte, é verdade. Tais perguntas me surgiram em meio às habituais (ao menos para mim) procrastinações da semana de provas. No entanto, garanto que isso não desvirtua o mérito da discussão. Devo admitir que ouvir “semana de provas” me dá calafrios e, para lidar com a angústia inevitável desse período, me presenteio com pequenos momentos de descontração — aqueles em que fingimos que está tudo bem e merecemos um descanso. Foi justamente em uma ocasião como essa, que, sem um grande motivo, comecei a assistir Alô, Amigos, filme que despertou em mim o seguinte questionamento: “Será que enxergamos nossos elementos culturais por uma ótica que nos pertence?”.


Antes de tentar responder a essa pergunta, gostaria de discorrer um pouco sobre o filme. Talvez o leitor não o reconheça de imediato, mas Alô, Amigos, lançado pela Disney em 1943, é extremamente relevante para compreendermos nossa nação, pois o longa-metragem marca o surgimento do Zé Carioca, personagem que sintetiza todos os signos da “brasilidade”. Ele é a representação imagética do jeitinho brasileiro: o carisma, a malandragem e o gingado. O lançamento da obra é seguido por Você já foi à Bahia?, filme que, em 1945, retoma o famoso papagaio brasileiro. Ambas as animações são ambientadas no Brasil e compõem uma empreitada estadunidense de aproximação entre os países por meio de uma ideia forjada de pan-americanismo. Se observarmos criticamente, vemos que a pretensa cooperação internacional se traduz, sobretudo, em uma manobra retórica que assegura a hegemonia ideológica estadunidense e que também reafirma o “Destino Manifesto” por uma vertente cultural.


Acredito, leitor, que Alô Amigos sintetiza perfeitamente a “política da boa vizinhança” instaurada pelo governo dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Essa prática sinalizou, certamente, uma mudança de paradigma: ao invés de uma abordagem belicista, foi possível encabrestar as nações com a introdução de novos hábitos e elementos culturais, os quais, implicitamente, reafirmam a superioridade estadunidense. A entrada cultural norte-americana foi, desde sua origem, um projeto hegemônico. De fato, a efetividade desse projeto é confirmada à medida que retratações imagéticas do Brasil feitas por veículos norte-americanos foram sucessivamente reproduzidas e obtiveram uma infiltração implacável no imaginário popular.


É preciso reiterar que a veiculação de expoentes da “brasilidade” na indústria cinematográfica norte-americana não se limitou à Zé Carioca. Outros símbolos culturais também foram fabricados para aproximar, ao menos aparentemente, as duas nações. Por meio dos veículos de mídia estadunidenses, divulgou-se uma imagem idealizada do Brasil, o que corroborou com a sensação de reconhecimento e prosperidade do país. A cantora e atriz Carmen Miranda, por exemplo, representou a entrada de elementos culturais brasileiros em filmes de Hollywood. Apesar do sucesso na mídia nacional, a construção da cantora enquanto um “ícone brasileiro” só se efetivou em terras estrangeiras. Decerto, as tradições culturais e étnicas representadas pela persona artística de Carmen eram apresentadas de maneira simplista e imprecisa – o que bastava para atender aos anseios político-culturais estadunidenses. Não me parece um exagero afirmar que a “Pequena Notável” foi moldada pela indústria cultural estadunidense para sintetizar imageticamente o povo brasileiro. Do ponto de vista semiótico, tanto a caracterização de Carmen Miranda como a de Zé Carioca contribuíram para a construção de um determinado ideal de “brasilidade”.Não quero que o leitor imagine que estou deixando de reconhecer qualquer mérito na hibridização cultural entre diferentes países. No entanto, não consigo deixar de reconhecer – e espero que o leitor também reconheça – o quão prejudicial interações alicerçadas em projetos de poder externos foram para o modo como nos entendem e, principalmente, como nos entendemos enquanto sociedade brasileira. O problema fulcral é que aceitamos e reproduzimos as imagens que são criadas a nosso respeito. Parte significativa de antigos ícones da cultura brasileira – que ainda permanecem – foram forjados externamente, baseados em ideias simplistas sobre nós. Ao reproduzi-los, estamos confirmando seu caráter único e exclusivo para representar e simbolizar nossa cultura.


Quero voltar à pergunta que propus no início: “A lente que utilizamos para analisar a cultura brasileira é realmente nossa?”. Acredito que não, caro leitor. As influências em gostos, hábitos e costumes são inevitáveis em um mundo cada vez mais globalizado. Contudo, frente a projetos culturais hegemônicos, é essencial que continuemos a preservar algum grau de autenticidade e que neguemos representações estereotipadas sobre nosso país.


Como o leitor deve imaginar, a aceitação das influências estrangeiras nunca foi consensual. Mesmo nas décadas de 1940 e 1950, em meio às constantes investidas de dominação cultural, já havia movimentações artísticas – sobretudo literárias – que entabulavam uma oposição. Décio Pignatari e outros poetas concretos, por exemplo, abordaram criticamente a entrada avassaladora de símbolos culturais estrangeiros por vias econômicas e culturais. Décio satiriza a naturalização de costumes e mercadorias estrangeiras que nos são impostas e, involuntariamente, eliminam nossa essência cultural. No poema abaixo, o autor transfigura, criticamente, um texto publicitário. Com o emprego da linguagem apelativa, típica de propagandas, o autor cria um verdadeiro anti-anúncio.


Definitivamente, o poema desconstrói o otimismo com a entrada de produtos estrangeiros. Até mesmo as transformações de termos (como “coca” e “caco”) marcam uma transgressão da linguagem estrangeira para aproximá-la da realidade nacional.



Por outra abordagem, temos Guimarães Rosa, que, em coletâneas como Sagarana e Corpo de Baile, traz luz ao “Brasil profundo”, o qual representa nossas raízes culturais ainda intactas. A ideia de Guimarães é preservar o que é autêntico: em entrevista para Günter Lorenz, o autor afirmou “eu escrevo na língua brasileira, que é uma língua em estado nascente”. Observe, nessa frase, que até mesmo os neologismos e as onomatopeias típicas da linguagem rosiana são frutos de uma autenticidade linguística. Ainda que indiretamente, Guimarães confronta a hegemonia cultural-linguística que invadiu o país na década de 40.



É imprescindível, leitor, que destaquemos a existência de novas movimentações de oposição à cultura massificada e hegemônica. A inclusão e, principalmente, o protagonismo de grupos minoritários na arte marca uma mudança de paradigma. Para a Dra. Alessandra Simões Paiva, há, atualmente, um destaque e uma releitura decolonial nas diversas manifestações culturais espalhadas pelo país. Me parece que a oposição feita por Guimarães Rosa e Décio Pignatari permanece viva, mas com propostas e métodos diferentes. Ainda que reconheçamos a importância do sincretismo cultural, não podemos permitir que haja a eliminação da nossa diversidade. Por isso, espero que o leitor entenda a necessidade de combater, constantemente, as simplificações e as dominações de nossa cultura por diversos Zés Cariocas. Reitero: tentemos preservar uma lente própria, para que assim possamos, de fato, enxergar nosso país.

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Autoria: Giovanni Tortorella

Revisão: André Rhinow, Artur Santilli e Anna Cecília Serrano

Imagem da capa: Cartaz do filme “Alô, Amigos”, dos Estúdios Walt Disney -------------------------------------------------------------------------------------------------------

Referências:


MACHADO, Sandra. A origem do “malandro carioca”. Portal MultiRio, 23 Agosto 2016. Disponível em: http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/reportagens/10417-a-origem-do-%E2%80%9Cmalandro-carioca%E2%80%9D#:~:text=A%20origem%20do%20malandro%20est%C3%A1,for%C3%A7a%20de%20trabalho%20ao%20aviltamento.


OLIVEIRA, Renata Couto de Azevedo de. Carmen Miranda: um Ícone de Mercado Incorporado. Jornal Organizações & Sociedade. Disponível em: https://www.scielo.br/j/osoc/a/RDKLhNH5sBM74Fyd8NW8tsk/?format=pdf&lang=pt


DE MACEDO, Káritha Bernardo. A Noção de “Superioridade” Estadunidense na Política da Boa Vizinhança. Revista NEIBA, volume II, nº 1, novembro 2013. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/neiba/article/view/8378/6171.


VIEIRA, H. J.; HOISEL, E. A signagem de Décio Pignatari. Estudos Semióticos, [S. l.], v. 12, n. 2, p. 82-88, 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/esse/article/view/127626. Acesso em: 9 maio. 2023.


https://dasartes.com.br/livros/a-virada-decolonial-na-arte-brasileira-alessandra-simoes-paiva/


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