Uma análise da participação feminina na filosofia
O início da filosofia data do século VI a.C e, em seus mais de dois mil anos de história, a disciplina amadureceu e passou a fomentar o estudo de fenômenos cada vez mais complexos, especialmente a partir do século XV com o início da filosofia moderna. Teorias filosóficas servem como base teórica para diversos campos de estudo, como as ciências sociais, a política e a economia, sendo discutidas até hoje dentro e fora do ambiente acadêmico, demonstrando a importância dos filósofos para a compreensão e evolução de tantas áreas intelectuais.
Entretanto, não é necessário ter um conhecimento muito aprofundado para perceber que a filosofia constitui um campo de estudo predominantemente masculino. As principais teorias que fundamentam a disciplina do jeito que ela está estruturada atualmente são atribuídas a pensadores masculinos, e tal aspecto é perceptível desde a filosofia antiga de Sócrates, Platão e Aristóteles, atravessando pensadores modernos como Thomas Hobbes, John Locke, Nicolau Maquiavel, Voltaire, Rousseau, Adam Smith e Immanuel Kant, até a filosofia contemporânea, marcada por nomes como Friedrich Hegel, Schopenhauer, Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre.
Durante grande parte da história, uma das justificativas mais comuns oferecidas para tamanha disparidade de gênero é o fato de as mulheres terem conquistado o direito à educação tardiamente. Na França, o berço do Iluminismo, as mulheres só garantiram o direito à educação em 1848; já no Reino Unido, elas só tiveram permissão para ingressar nas universidades em 1868. Assim, é plausível acreditar que haja uma relação entre a falta de acesso à educação feminina e a pouca participação de mulheres na filosofia. Entretanto, estudos recentes encabeçados por filósofas como Ruth Hagengruber, Eileen O'Neill e Sally Haslanger, que dedicaram suas carreiras para estudar a participação feminina na disciplina, descredibilizam tal explicação ao afirmarem que as mulheres tiveram um papel fundamental na construção do pensamento filosófico desde o início, mesmo sem possuírem total acesso às instituições de ensino.
Alguns expoentes da influência feminina para a construção das bases iniciais da filosofia remontam à Grécia Antiga, período em que mulheres como Temistocleia, Myia, Teano e Arignote se consolidaram como grandes responsáveis pelo desenvolvimento do que viria a ser conhecido como Escola Pitagórica. Ainda, Aspasia de Mileto, fundadora de um dos principais centros intelectuais de Atenas, e Esara de Lucânia, que possui textos preservados sobre as leis naturais e uma teoria própria sobre a alma humana, destacaram-se por sua contribuição expressiva à produção intelectual do período.
Com o início do pensamento moderno, as mulheres também marcaram grande presença no pensamento filosófico da época, mesmo antes de terem seus direitos educacionais garantidos. A francesa Marie de Gournay foi uma das primeiras pensadoras a produzir uma teoria sobre a igualdade de gênero em seu texto publicado em 1622. Na Inglaterra, Margaret Cavendish foi uma das principais autoras a desenvolver a filosofia natural, ao lado de Hobbes, e possui uma imensa bibliografia composta por mais de 20 obras. Já na virada do século, mulheres como Mary Astell — uma das principais críticas da teoria rousseauniana — e Damaris Cudworth Masham foram as primeiras filósofas a idealizar teorias a respeito da universalidade da educação, enquanto Judith Drake e Mary Chudleigh utilizaram as teorias de Locke para fundamentar sua própria linha de pensamento a respeito do papel social feminino, produzindo livros que continuam sendo impressos até hoje. Já no século XVIII, mulheres francesas como Émilie du Châtelet, que contribuiu para diversos avanços no campo da física e da Matemática, e pensadoras como Louise d’Épinay e Olympe de Gouges, responsáveis por textos importantes para o início da teoria feminista como a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” (1791), são apenas alguns exemplos da enorme colaboração feminina para a consolidação do pensamento filosófico moderno.
Mesmo sendo responsáveis por uma contribuição fundamental na construção das bases teóricas da filosofia, muitas vezes as mulheres tiveram sua participação apagada da história da disciplina, como se seus textos tivessem sido escritos por uma espécie de tinta que desapareceu ao longo do tempo, deixando suas ideias e pensamentos perdidos em meio a tantas produções masculinas. Apesar de não haver uma explicação única para tal fenômeno, essa gritante falta de paridade de gênero no meio filosófico vem sendo cada vez mais estudada no meio acadêmico. A discriminação social que as mulheres sofreram ao buscar seu espaço em um campo acadêmico dominado por homens, o que consequentemente levou a uma espécie de banalização de suas teorias e produções intelectuais, é um dos fatores citados para explicar a exclusão feminina. Tal rejeição impulsionou a utilização de pseudônimos, ou até mesmo a realização de publicações anônimas, para esconder a verdadeira identidade dessas mulheres, o que certamente também colaborou para o desaparecimento dos nomes femininos da história da filosofia.
Lembradas ou não, o fato é que as mulheres colaboraram imensamente para a solidificação de todo o conhecimento filosófico acumulado até os dias de hoje. Ao negligenciar a produção filosófica feminina, estamos negligenciando também uma parte fundamental da história através de análises incompletas que excluem o ponto de vista das mulheres, que possuíram um papel fundamental para a estruturação de inúmeros fenômenos históricos e socioculturais. Entretanto, é importante ressaltar aqui que a exclusão feminina não é imutável e muito menos inerente à filosofia, mas sim uma construção metodológica que prevaleceu em meio a uma sociedade que historicamente sustenta mecanismos favoráveis à desigualdade de gênero e à exclusão das mulheres de diversas áreas acadêmicas, especialmente da filosofia.
Autoria: Victorya Pimentel
Revisão: André Rhinow e Bruna Ballestero
Imagem de capa: Revista CULT
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Referências/fontes
RUTH HAGENGRUBER. Mulheres sempre existiram na Filosofia. Le Monde Diplomatique. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/as-mulheres-sempre-existiram-na-filosofia/>. Acesso em: 11 Oct. 2021.
O’NEILL, Eileen. HISTORY OF PHILOSOPHY. Philosophy in a Feminist Voice, p. 17–62, 1997.
PAXTON, FIGDOR, TIBERIUS. Quantifying the Gender Gap: An Empirical Study of the Underrepresentation of Women in Philosophy. Hypatia, p. 949–957, 2012.
NUNES, Jéssica. Émilie du Châtelet: a mulher que a ciência esqueceu. Universo Racionalista. Disponível em: <https://universoracionalista.org/emilie-du-chatelet-a-mulher-que-a-ciencia-esqueceu/>. Acesso em: 11 Oct. 2021.
WAITHE, Mary Ellen. A history of women philosophers. 2, Medieval, Renaissance and Enlightenment women philosophers. A.D. 500-1600. Dordrecht; Boston; London: Kluwer Academic Publishers, 1989.
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