Em 2023, na Escola de Direito de São Paulo (EDESP) da FGV, foi criado um projeto multidisciplinar intitulado: “Quando o Estado é o algoz: um raio-x da responsabilidade estatal por violações de direitos humanos”. Sob a orientação das professoras Maíra Machado e Renata Steiner, o objetivo do projeto era a produção de um trabalho acadêmico a respeito de alguma violação de direitos humanos, praticada pelo próprio Estado em face de um grupo discriminado. Nesse contexto, um grupo de alunos elaborou um estudo sobre as condições das pessoas T [Transsexuais, Travestis, Mulheres Trans, Transmasculinas e outras identidades] no cárcere paulista, com base nos relatórios da Defensoria Pública do estado sobre o tema. São co-autores desse trabalho Alexia Dias, Fernando Teixeira, Maria Cecília Moreira e eu, Linneo Adorno, que escrevo esse curto artigo a fim de propagar alguns dos nossos achados e, com isso, suscitar naqueles que o lerem – se é que alguém o lerá – ao menos um pouco do incômodo e da perplexidade que nós quatro sentimos durante o processo de pesquisa e escrita dos nossos produtos.
Muito se ouve sobre as condições do cárcere brasileiro, no entanto, mesmo nos ambientes mais intelectualizados a discussão sobre nossos presídios se dá em um nível raso. Pouquíssimas pessoas efetivamente entendem as condições às quais os presos são submetidos, o que, por sua vez, dá lugar a um discurso generalizado no país de que “bandido bom é bandido morto”, ou que para estar preso a pessoa precisa ter feito algo ruim, então ela merece o sofrimento pelo qual passa ali dentro[1]. Na tentativa de ir contra a maré, o trabalho consistiu em uma leitura, sistematização e análise de fontes primárias sobre o cárcere, utilizando relatórios da própria Defensoria Pública do Estado de São Paulo sobre os presídios.
Nesse sentido, a Defensoria possui diversas atribuições legais estabelecidas na legislação, como por meio do art. 5º, LXXIV da Constituição Federal, pela Lei Complementar nº 80/1994[2] e, no estado de São Paulo, pela Lei Complementar n° 988/2006[3], dentre outros dispositivos. Talvez a função mais conhecida da Defensoria seja a de oferecer assistência jurídica gratuita aos vulneráveis econômica e socialmente, todavia, sua competência é muito mais ampla, objetivando garantir os direitos dos cidadãos de maneira geral. Nesse contexto, surge o trabalho do NESC (Núcleo Especializado em Situação Carcerária)[4], que é um braço da Defensoria do estado para questões carcerárias e possui uma ampla gama de atribuições, sendo uma delas a fiscalização dos presídios paulistas. Isso se dá principalmente mediante visitas de inspeção que produzem relatórios descritivos em primeira mão de como está a situação em cada unidade prisional.
Os defensores foram capazes de produzir e disponibilizar 28 relatórios em um intervalo de 9 anos, de 2014 a 2022[5]. Aliás, é necessário ressaltar: a escolha do termo “capacidade” aqui é totalmente intencional, uma vez que em um estado com 181 presídios[6], só existem 25 defensores no Núcleo de Situação Carcerária, e todas as vistorias são feitas de maneira colegiada, reduzindo ainda mais sua frequência. Isto é, demora anos para os defensores poderem voltar e vistoriar o mesmo presídio de novo. Nesse intervalo de tempo a situação pode ter se agravado ainda mais. Portanto, não é exagero dizer que, na realidade, o que o estudo por nós realizado constatou é somente uma fração da realidade de barbárie experienciada no cárcere paulista. Isso porque sequer a própria Defensoria, ou o Estado de maneira mais geral, efetivamente sabe a realidade dentro dos presídios.
Ainda assim, o trabalho realizado por nós objetivou compilar dados e explicá-los de maneira clara. Foram feitas, também, entrevistas com três dos defensores públicos que realizam essas vistorias – Leonardo Lima, Mateus Moro e Thiago Cury – e produzimos, ainda, um relatório escrito que condensa e analisa as informações coletadas. Quanto ao relatório, este ainda aguarda reescrita para publicação, mas aos mais interessados vale a pena a leitura na íntegra, tanto da base[7] quanto do relatório[8]. Entretanto, é meu desafio auto-imposto sintetizá-los aqui.
No julgamento da ADPF 347[9], (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que nos presídios brasileiros reina um “estado de coisas inconstitucional”, adotando uma terminologia criada pela Suprema Corte da Colômbia[10]. Por mais forte que o termo seja, ele não passa de um eufemismo perto da realidade posta: os relatórios estudados denunciam uma lotação média das celas de 232,58%, ao passo em que muitas unidades não possuem médicos. Em Pinheiros II, por exemplo, uma prisão com 1.478 presos, haviam somente três enfermeiros, um auxiliar de enfermagem, um dentista, uma psicóloga para cuidar da saúde dos presos que, vale ressaltar, eram portadores de HIV em quantidades desconhecidas. Nesse contexto, na maioria dos presídios quando o assunto era acesso à saúde e medicamentos, os relatórios descreviam os tratamentos das unidades da seguinte forma: “Entrega somente de dipirona”[11].
Enquanto somente dipirona era oferecida, ocorriam relatos de tuberculose[12], bronquite, escabiose, HAS, HIV[13], sífilis e furunculose[14], dentre outras. Aliás, problemas com furúnculos e outras doenças de pele são generalizados, o que não é tão retratado na mídia. Isso porque, com lotações de cerca de 232,58%, os ambientes ficam quentes e sem ventilação, ao passo em que os colchões fornecidos são, na realidade, colchonetes feitos de uma espuma propensa à propagação dessas doenças e insetos. A quantidade de colchões, por sua vez, é insuficiente em 78,6% dos presídios, o que é uma estimativa modesta, pois em muitos casos pedaços de colchonetes já são considerados colchões, enquanto mesmo em celas onde supostamente os números seriam suficientes, eles simplesmente não são utilizados por falta de espaço. Sendo assim, a presença de doenças e pestes não são surpreendentes, com a Penitenciária de Florínea relatando “Infestação de insetos e ratos nas celas”[15] e, paralelamente a isso, não eram fornecidos materiais de limpeza aos presos. Em geral, os relatos de ratos não são tão comuns, ao menos não nos relatórios, mas os de insetos, tais como percevejos, são universais.
Ainda, a alimentação é precária, com refeições insuficientes. Em Guareí II, por exemplo, os presos relatam que, em adição a isso, “[o] Tempo de jejum entre a janta e o café da manhã é de 14 horas”[16]. Em 82,1% dos presídios há racionamento de água, como por exemplo em Pinheiros II: “Segundo relatado, a água é aberta das 6h às 7h, das 11h às 11h30, das 16h às 17h, das 19h:30 às 20h30”[17], enquanto em Guarulhos I “alguns presos estocam água em baldes e garrafas dentro da cela”[18], como forma de mitigar o racionamento. Por fim, produtos de higiene e vestuário muitas vezes não são fornecidos, ou são dados de maneira irregular e insuficiente.
Conforme exposto, o objetivo do trabalho era avaliar a situação das pessoas T no cárcere mediante o estudo dessa fonte primária – os relatórios da Defensoria. Com isso, foram encontrados em 18 dos 28 relatórios menções à população LGBT dentro dos presídios. Suas condições eram ainda piores do que as da maioria dos presos, pois, submetidos às mesmas violações, ainda sofriam violência por serem da comunidade LGBT, ocasionando o que o defensor Mateus Moro definiu em entrevista a nós como uma “interseccionalidade de violências”. Além disso, no intuito de proteger essa comunidade, algumas unidades prisionais estabeleciam uma divisão de celas e seções baseadas em sexualidade, como na Penitenciária Masculina de Itirapina I. No entanto, o que se descobre a partir dos relatos dos presos e presas é que isso, em muitos casos, ocasionava uma segregação, privação de banho de sol e alocação em seções ainda mais precárias e lotadas.
Nesse cenário caótico, para manter a ordem, os presídios fazem uso das intervenções do GRI (Grupo de Intervenção Rápida), responsável por diversas violações em incontáveis relatos de violência, como exemplifica o descrito em Guarulhos I, onde ocorrerem intervenções "extremamente violentas e desrespeitosas". Nesses intervenções, os presos são obrigados a ficarem nus, têm seus objetos pessoais danificados e são xingados durante toda a ação, enquanto "Os agentes do GIR urinam nos potes usados para armazenar comida, disparam tiros de borracha, usam gás de pimenta, agridem com cassetetes e escudos"[19]. Nesse contexto, a demonstração de força não passa de um sintoma da fraqueza crônica do Estado, que não consegue controlar o que ocorre dentro dos seus presídios. Conforme afirmou Luhmann, “Exercer violência física não é uma prática comum do poder, pois expressa sua falência (...)”[20] e Byung-Chul Han, “O poder não se baseia na repressão”[21]. Assim, amedrontados por serem incapazes de controlar presídios lotados em médias de 232,58%, o uso da força se torna o último recurso do Estado.
Este medo, por sua vez, não é infundado: Quem não se rebelaria sob essas condições? Ainda, os relatórios sistematizados revelam que em ao menos 12 dos 28 presídios havia facções criminosas, na maioria dos casos o PCC (Primeiro Comando da Capital). Todavia, mais uma vez, esse dado é otimista e, provavelmente, defasado e irreal.
Eu poderia expor mais uma infinidade de dados por páginas e páginas a fio, mas gostaria de concluir esse raciocínio com uma reflexão lógica a respeito dessa realidade posta pelo defensor público Mateus Moro, em entrevista concedida ao grupo de pesquisa. Dos 181 presídios paulistas, a maioria deles encontra-se no interior do estado[22], ao passo em que cerca de metade dos mais de 44 milhões de paulistas[23] habita a região metropolitana da capital. Ou seja, os presos estão sendo encarcerados longe de suas famílias, que não podem os visitar com facilidade ou frequência, até mesmo por uma questão financeira. Paralelamente a isso, em muitos casos a administração dos presídios proíbe visitação e a entrada de produtos e entregas. Isso, por sua vez, muitas vezes é apresentado como uma tentativa de evitar o tráfico e a entrada de demais produtos ou utensílios indesejados nos presídios.
Contudo, conforme exposto, em um cenário em que roupas, medicamentos, produtos de higiene e limpeza, comida e água são insuficientes, é simplesmente impossível viver. Ninguém passa sequer um mês em uma prisão paulista sem receber esses mantimentos básicos. Se a família do preso não pode oferecer tais recursos, alguém o fará, ou o detento sairá da prisão antes do fim de sua pena – em um saco preto do IML. Portanto, quem está ofertando esses suprimentos? Quem está sendo essa rede de apoio? Justamente o PCC, ou alguma outra facção criminosa. Com isso, os presos são forçados a se filiarem e a prestar lealdade ao crime organizado e, após sua saída, quase certamente serão reincidentes – cerca de 70% dos presos são[24]. Ainda, muitas vezes reincidem em crimes piores dos que aqueles que os levaram para o presídio em primeiro lugar. Por exemplo, um preso por furto, ao sair, começa a traficar drogas. Portanto, a máxima do senso comum de que “prisão é escola de bandido” é, de alguma forma, verdade.
Todavia, é necessário olhar para essa realidade de forma crítica: Foi justamente o show de senso comum a respeito da segurança pública que nos trouxe até aqui; Com quase 650 mil pessoas cumprindo pena privativa de liberdade, e com a terceira maior população carcerária do mundo[25], o Brasil não só é uma catástrofe em segurança, como também um apocalipse dos direitos humanos. O encarceramento em massa, vendido como a solução mágica para os problemas de criminalidade, não passa de um barril de querosene jogado sobre o incêndio para apagá-lo como se fosse água. Encarcerar, portanto, não é solução, e sim parte do problema. Ainda, frente a esse cenário muitos defendem o fim das prisões e da pena privativa de liberdade, como o próprio Mateus Moro.
Por outro lado, eu não iria tão longe – ainda que minha opinião de pouco importe –, mas certamente uma transformação profunda no sistema carcerário é necessária e esta, por sua vez, não se dará mediante o aumento do encarceramento ou do GRI, mas sim pela ressocialização. A base de dados demonstra que a maioria dos presídios não possuía assistência social, escola, biblioteca ou trabalho. Mas poderia. Assim, esses recursos, aliados ao fornecimento de meios materiais básicos aos detentos, ao desencarceramento e desconstrução do cenário de superlotação podem transformar a realidade dentro dos presídios. Para tanto, é urgente cessar o encarceramento em massa e fazer prosperar a aplicação de penas alternativas, o que, por sua vez, passa por uma mudança de paradigma social e de política pública. É necessário mudarmos a mentalidade da população, dos legisladores e juízes acerca do tema. O punitivismo é a barbárie. O sistema carcerário – ao menos como está posto atualmente – é a materialização dessa barbárie, e essa violência precisa cessar!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[11] Penitenciária de Florínea, 22/02/2022, Relatório da Defensoria
[14] Pinheiros II, 17/10/2014, Relatório da Defensoria, p. 19
[15] Penitenciária de Florínea, 22/02/2022, Relatório da Defensoria, p. 11
[16] Penitenciária de Guareí II, 29/04/2019, Relatório da Defensoria, p. 8
[17] Pinheiros II, 17/10/2014, Relatório da Defensoria, p. 12
[18] Guarulhos I, 28/09/2018, Relatório da Defensoria, p. 7
[19] Guarulhos I, 30/01/2015, Relatório da Defensoria, p. 10
[20] LUHMANN, N. Soziologische Aufklärung 4… Op. cit., p. 119
[21] HAN, Byung-Chul. O que é o Poder?. p. 20
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Autoria: Linneo Adorno
Revisão: Laura Freitas e Andrew Rhinow
Imagem de capa: Revista Veja
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