Quero que alguém me diga o que vestir todas as manhãs. Quero que alguém me diga o que comer. Do que gostar, do que odiar, pelo que se enfurecer. O que ouvir, de que banda gostar. Para o que comprar ingressos. Sobre o que brincar, sobre o que não brincar. Quero que alguém me diga em que acreditar. Em quem votar e a quem amar e como dizer a eles. Acho que só quero que alguém me diga como viver minha vida, padre, porque até agora acho que estou entendendo errado. (Fleabag, S02, E04)
Deitada no chão de vinílico, sinto o peso do mundo nas minhas costas. Parte da dor é física, resultado de horas dançando e pulando, e a outra é fruto de um vazio psicológico enorme. Repenso os eventos do dia, se me portei da melhor maneira, se deveria ter vencido a vergonha, se fiquei muito feia depois de um banho de Jurupinga ao som de ‘Ai ai ai' de Vanessa da Mata. Tudo parece tão pequeno. Lanço as perguntas em silêncio ao universo, que não me responde. Sinto a gravidade — e o açúcar — colando minha pele grudenta no piso liso, escuto o barulho dos carros e dos vizinhos, olho para o teto, para o sofá, para meu tênis sujo jogado no canto da sala. Contemplo minha situação. Deitada. Cansada. Sozinha.
Não sei em que momento me convenci que lido bem com a solidão. A verdade é que eu a odeio. Odeio tanto que me recuso a ir ao banheiro coletivo sozinha e, quando vou, faço tudo o mais rápido possível para evitar que qualquer pensamento ultrapasse minha cabeça. Mas sempre me rasgaram elogios por não pedir ajuda e por, supostamente, não precisar de ninguém para me virar. Fui aquela criança esperta que aos dois anos não tinha mais babá, já que a própria babá não via propósito no seu trabalho. Afinal, eu já fazia tudo sozinha. E isso bastava.
Penso que, em algum lugar, no âmago do meu subconsciente, eu sabia que não poderia depender dos outros para sempre. No auge dos meus dois anos, eu queria me preparar para a inevitabilidade da independência. Eu queria ser adulta. Cultivei essa intenção pelos próximos 15 anos, até esse futuro longínquo virar uma realidade. Não contava que nenhum preparo seria capaz de acalentar meu coração para um dia como hoje. Deitada. Cansada. Sozinha.
Aos dezessete, tive o primeiro gostinho da verdadeira vida adulta, ao sair da casa dos meus pais. Descobri o esforço que ser dono de si requer. Aprendi a fazer supermercado, cuidar das minhas próprias enfermidades, marcar idas ao Poupatempo, qual o melhor jeito de lavar toalhas. O que mais me incomoda não é a fila, as idas à farmácia, a sala de espera da ALESP, muito menos as toalhas: é a sensação de estar por si só.
Dizem que a parte assustadora da vida adulta é estar por conta própria, assim como a parte boa da vida adulta é estar por conta própria. Racionalmente, vejo alguma verdade nisso. Mas quando me encontro assim, completamente sozinha, perdida no meu próprio silêncio, só consigo pensar no quanto ela é solitária e um tanto cruel. Na maioria das vezes, a parte assustadora sobrepõe a parte boa. Não sei dizer quando, ou se, isso passa.
Assim que me dou conta, estou há mais de 40 minutos em completa inércia, na mesma superfície em que deitei tempo atrás. Eu deveria levantar, tomar um banho, preparar o jantar. Mas, se eu não fizer isso, não terá quem me obrigue ou me puna, além do tempo e das consequências das minhas ações. Ninguém, além de mim, será impactado se eu ficar 10 horas no mesmo lugar. Ninguém sequer saberá. Eu posso fazer o que quiser, quando quiser. Ironicamente, o que eu mais quero é alguém que me diga o que fazer.
Sinto falta de comandos certeiros, obrigações claras, pressões exógenas. Ainda mais, da antítese bem delimitada entre certo e errado, bom e mau, permitido e não permitido. Não sei a que deuses rezar, como amar, nem mesmo sei como criar uma persona característica e original. Por outro lado, sei a melhor maneira de desengordurar um tupperware, como identificar uma sinusite bacteriana e como escolher limões e maracujás. Me parece uma troca bem injusta.
Escuto de todos os lados que a década que sucede os vinte anos é experimental, marcada pela incerteza e pelo aprendizado. A questão é que estou cansada de aprender coisas inúteis e não chegar a conclusão filosófica alguma. Percebo a antítese irônica entre “filosofia” e “conclusão”, mas odeio o não saber. E não acredito que ele acabe aos trinta. Repasso a cena de Fleabag na minha cabeça repetidamente, “Acho que só quero que alguém me diga como viver minha vida, padre, porque até agora acho que estou entendendo errado”. É, definitivamente não acaba aos trinta. O pior? Ainda nem alcancei os vinte. E não quero lidar com o peso deles.
Quero que meus pais tenham medo de me perder, e não o contrário. Quero que cuidem de mim e quero não estar cada dia mais próxima de ter que cuidar deles. Quero não sentir que perco horas preciosas por causa da distância. Quero a inocência de que tudo é eterno. Quero voltar a ser criança, quando a autonomia era uma virtude e não um medo. Quero que a minha maior preocupação seja me perguntar se fiquei feia após o banho de Jurupinga. Quero que alguém acolha os sintomas da adolescência que ainda me assombram. Quero voltar o relógio. Quero adiantá-lo. Quero ser uma mulher madura que sabe o que está fazendo. Quero saber o que realmente quero, ou melhor, o que deveria querer. Acima de tudo, quero acreditar que a incerteza é temporária, mas, a cada dia, tenho mais a impressão de que estou em um labirinto sem saída, completamente perdida nos meus próprios quereres.
Talvez a esperança deveria estar na possibilidade de se acostumar com esse fato. Com a solidão, com a autonomia, com não saber nada sobre a vida e seus mistérios, com ter um corpo que abriga uma criança, uma adolescente e uma jovem adulta ao mesmo tempo. Talvez exista sim espaço para se aconchegar no silêncio, que hoje me parece ensurdecedor. Por enquanto, só posso afirmar que ainda estou no chão de vinílico. Deitada. Cansada. Sozinha. Sabe-se lá por quanto mais tempo.
Autoria: Fernanda Abdo
Revisão: Anna Cecília Serrano e Enrico Recco
Imagem de capa: Pinterest
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