A Propriedade Intelectual é uma categoria caracterizada pela intangibilidade. Ela está inserida no ordenamento jurídico brasileiro e na esfera mundial de proteção de direitos por meio de leis, tratados e convenções. Seu conceito é subdividido em direitos autorais e propriedade industrial. A história dos direitos relacionados à criação é extensa, mas os primeiros movimentos formais de proteção jurídica de invenções surgiram entre os séculos XVIII e XIX. No Brasil, esse intuito de resguardo do autor surgiu e foi intensificado a partir do direito de imprensa e, depois, a partir do direito penal, criando-se indiretamente um direito autoral, com uma lógica punitiva para o uso não autorizado ou para a apropriação de obra alheia. Mais tarde, no âmbito global e no final do referido século, surgiram tratados como a Convenção de Paris para Proteção da Propriedade Intelectual e a Convenção de Berna relativa à Proteção das Obras Literárias e Artísticas. Anos mais tarde, os avanços no tema prosseguiram, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual foi criada em 1967 e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio foi ratificado em 1995. Assim, firmou-se um arcabouço jurídico de proteção intelectual e artística.
Os direitos autorais estão positivados no direito brasileiro a partir da Lei 9.610/98, Lei de Direitos Autorais de 1998 (LDA), e são definidos – a despeito de críticas sobre a incompletude e qualidade da lei – como o direito sobre as obras intelectuais de “criação do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”. Tais obras estão listadas no artigo 7 da LDA, não exaustivamente, como sugere a expressão “que se invente no futuro”, vislumbrando-se um cenário de inovações. Já a propriedade industrial, regida pela Lei 9.279/96, em contraponto, é uma vertente sobre a qual reside a proteção de desenhos industriais, patentes, marcas e indicação geográfica. Este campo surge do desenvolvimento da indústria e visa, primordialmente, reprimir a concorrência desleal no mercado com o uso de invenções ou modelos desenvolvidos na atividade produtiva de uma indústria. Portanto, diante desse breve contexto, propõe-se uma questão: como se situa a criação na moda? Para responder a essa indagação, retoma-se historicamente, primeiro, o que é moda.
A partir de uma análise antropológica, as vestimentas surgiram por uma razão utilitária: cobrir a nudez e proteger os corpos humanos do clima e dos demais elementos da natureza. Com o passar do tempo, as roupas e os ornamentos utilizados pelos povos foram ganhando significado e se tornando símbolos, seja de autoridade, de poder e de status, seja de culturas e de expressões artísticas e identitárias. Nesse sentido, desde os primórdios, da Mesopotâmia e Egito Antigo à Idade Média, roupas e acessórios possuíram papéis tanto utilitários como subjetivos e artísticos. Assim, quando se chega à época das Revoluções Industriais e à subsequente procura por mecanismos jurídicos vinculantes capazes de proteger a criação na lógica industrial, pode-se enxergar, na criação de “moda”, um caráter mercadológico. Sobre o produto originado da criação, há técnica e, especialmente em termos de propriedade intelectual, há o desenvolvimento de um design. Essa “planta” de uma peça é o molde para a confecção de uma leva de produtos. Por essa lógica, pode-se defender que, na moda, o design deve ser protegido pelos mecanismos de propriedade industrial, uma vez que o seu desenho é usado para a produção em escala e contém os detalhes técnicos desenvolvidos para atingir determinados resultados.
Além disso, quando nos voltamos à elaboração de uma peça, um desenho pode derivar diferentes produtos a depender do material e da técnica utilizados para a sua fabricação. Nesse sentido, resultados como caimento, cor, textura e até a estética geral da obra podem variar. É nessa nuance que uma mera calça jeans se difere da outra em termos de inovação, tecnologia e originalidade. No entanto, ainda mais no contexto massificado de mercado que existe hoje, é extremamente raro que esses fatores de criação prevaleçam no processo da maioria das marcas. Por isso, conforme a distribuição do setor de mercado da moda, alguns dos pontos-chave de diferenciação de valor são a criatividade, a originalidade e a exclusividade agregadas à marca. Mediante esse esforço, o mercado da moda se estrutura em segmentos que vão da alta costura, prêt-à-porter, difusão, à ponte ao mercado de massa.
Contudo, a discussão sobre propriedade intelectual e moda não é tão simples. Há uma enorme dificuldade de aplicação dessa proteção jurídica na prática no mundo fashion, além da controvérsia entre o uso dela por meio da propriedade industrial (mais especificamente o conceito de desenho industrial para proteção de designs) ou por meio dos direitos autorais, apesar destes, na legislação brasileira, não englobarem taxativamente a criação de moda no art. 7º da LDA. No sentido de distinção dos dois eixos de direitos, resta a dualidade entre função produtiva e industrial, perante os requisitos de originalidade do desenho, e a face artística de uma peça, que pode não estar envolvida em um processo industrial. Há alguns casos jurídicos que delineiam essas duas camadas. Um exemplo envolve a Maison Hèrmes, que, com base nos direitos autorais, ganhou proteção para a bolsa Birkin por meio de uma argumentação que a caracteriza como arte em uma disputa frente à brasileira Village 284, em decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. No outro sentido, há o caso em que a Louboutin, marca de sapatos conhecida por suas solas vermelhas, processou a Yves Saint Laurent (YSL) por violação de propriedade intelectual, quando esta relançou um modelo próprio de salto monocromático vermelho (incluindo a sola) da década de 70, alegando possuir a trademark dessa estética. No final, a Corte Federal dos Estados Unidos reconheceu o registro da cor de sola de sapato realizado em 2008, mas autorizou, no caso da YSL, a venda dos sapatos com sola vermelha contanto que fossem monocromáticos e não se valessem da reconhecida estética da Loubotin que destaca a cor da sola.
No final das contas, vê-se movimentações significativas entre as grandes empresas do mercado em busca de seus direitos de propriedade intelectual, mas não se vê na mesma proporção tais mecanismos sendo utilizados por empresas autorais menores e, muito menos, por artesãos e pequenos produtores. Isso nos leva a alguns questionamentos: na lógica de mercado atual, a favor de quem essas garantias trabalham? As companhias que se valem de atores menores do ramo e que têm seus direitos infringidos são devidamente acionadas? Exemplos de abuso não faltam, como a apropriação de estampas étnicas tradicionais no caso da Carolina Herrera — com o uso de desenhos de tribos indígenas mexicanas — e como a apropriação cultural de elementos regionais no caso da produção de sandálias de couro típicas do Nordeste brasileiro pela Prada. Não faltam exemplos de violações: desde cópia e apropriação à discriminação envolvendo grandes e renomadas empresas de moda, que lucram exorbitantemente às custas do aproveitamento alheio de culturas e grupos marginalizados da sociedade. Essa discussão é extensa, mas a sua menção é válida para se apurar uma visão crítica e menos ingênua do debate.
É importante e desafiador compreender as dinâmicas do mercado e da indústria da moda para a aplicação de regulações jurídicas ao setor. Esse é só um dos temas com os quais temos contato a partir da Liga de Negócios de Moda da FGV (LNM), uma entidade que surgiu da inquietude do alunato da Fundação interessado no campo dos negócios de moda, mas que ainda não via um espaço para se aprofundar no tema. Diante do intuito de formar e capacitar profissionais dos diferentes cursos oferecidos pela FGV, seja Administração, Relações Internacionais, Direito ou Economia, a LNM foi criada para ser um espaço de especialização e imersão interdisciplinar no mundo dos negócios de moda.
Autoria: Maria Eduarda Neuburger Freire
Revisão: Bruna Ballestero
Imagem de capa: por Neha Penmetsa
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Referências:
Apropriação cultural: Prada é acusada de copiar sandálias nordestinas. Metrópoles. Disponível em: <https://www.metropoles.com/colunas/ilca-maria-estevao/apropriacao-cultural-prada-e-acusada-de-copiar-sandalias-nordestinas>. Acesso em: 5 maio 2022.
LIMA, Jade. Intellectual property and fashion: the rise of Fashion Law. IRIS-BH. Disponível em: <https://irisbh.com.br/en/intellectual-property-and-fashion-the-rise-of-fashion-law/>. Acesso em: 5 maio 2022.
CEPI - FGV DIREITO SP. Módulo I - Iniciando os estudos | Direito Autoral Online 101. Medium. Disponível em: <https://medium.com/direito-autoral-101/direito-autoral-iniciando-os-estudos-1d152984ce03>. Acesso em: 5 maio 2022.
CEPI - FGV DIREITO SP. Módulo 2: um panorama internacional e brasileiro | Direito Autoral Online 101. Medium. Disponível em: <https://medium.com/direito-autoral-101/direito-autoral-um-panorama-internacional-e-brasileiro-c7275a02f978>. Acesso em: 5 maio 2022.
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MARTIN. Um giro pela fascinante história da moda - Etiqueta Unica. Etiqueta Unica. Disponível em: <https://www.etiquetaunica.com.br/blog/um-giro-pela-historia-da-moda/>. Acesso em: 5 maio 2022.
TFL. Amid a Flurry of “Cultural Appropriation” Claims Aimed at Carolina Herrera, What is Going on (Legally)? - The Fashion Law. The Fashion Law. Disponível em: <https://www.thefashionlaw.com/in-a-swathe-of-cultural-appropriation-claims-against-carolina-herrera-what-is-really-going-on/>. Acesso em: 5 maio 2022.
VIEIRA, A. O. Direito Autoral na Sociedade Digital. 2018.
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