HORA DE SUBIR A RAMPA, LULA
- Erick Martins Rosario
- há 14 minutos
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“É inadmissível que continuem a receber salários inferiores a dos homens, quando no exercício de uma mesma função elas precisam conquistar cada vez mais espaço nas instâncias decisórias deste país, na política, na economia, em todas áreas estratégicas. As mulheres devem ser o que elas quiserem ser, devem estar onde quiserem estar. [...] Foi para combater a desigualdade e suas sequelas que nós vencemos a eleição. E esta será a grande marca do nosso governo, dessa luta fundamental surgirá um país transformado, um país grande e próspero, forte e justo, um país de todos por todos e para todos, um país generoso e solidário que não deixará ninguém para trás”, Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discurso de posse da Presidência da República em 1º de janeiro de 2022.
No último dia 9, o ministro Luís Roberto Barroso anunciou sua aposentadoria do Supremo Tribunal Federal (STF), abrindo espaço para que Lula faça mais uma indicação ao Supremo. Marcado por uma trajetória progressista nas pautas sociais, Barroso deixa a Corte num cenário muito diferente daquele de quando foi empossado em 2013. O STF não mais se posiciona somente no centro da política nacional, mas também como um dos primeiros tópicos da política internacional, em decorrência dos ataques diretos da Casa Branca aos seus integrantes.
Uma coisa, entretanto, não mudou: a baixíssima presença feminina nas cadeiras do Plenário da mais alta corte brasileira. Desde a sua fundação em 1891, o Supremo já teve 172 ministros – somente 3 mulheres. Ou seja, em toda história do Tribunal apenas aproximadamente 1,7% de seus membros foram mulheres. Sob a perspectiva racial esse indíce se agrava ainda mais: tivemos 3 ministros negros, sendo nenhum deles mulher. Esses números contrastam fortemente com a realidade brasileira. Isso porque, de acordo com o Censo de 2022, as mulheres são 51,5% de nossa população; enquanto as mulheres negras representam 28,5%.
Para muitos, a discrepância entre esses dados, contudo, pode não representar um problema. Afinal, a prática do Direito estaria melhor atrelada a uma capacidade cognitiva do julgador que indifere de suas características fenotípicas. Um ministro do Supremo nada mais faria do que aplicar uma lei definida pelos congressistas e sancionada pelo presidente da República. Seu exercício em nada envolveria seus atributos pessoais e a forma pela qual ele transita, apresenta-se e se relaciona socialmente. Sua tarefa seria meramente a aplicação de uma fórmula pronta a um novo problema. Com o devido respeito às opiniões contrárias, essa não é a realidade.
Fosse o Direito uma ciência exata, como aqueles que defendem essa posição pensam, não presenciaríamos tantas posições divergentes sobre um mesmo dilema constitucional. Olhemos para a ADPF 472 como exemplo. O Código Penal expressamente criminaliza a prática de aborto, impondo uma pena de detenção de um a três anos àqueles que provoquem aborto em si mesmos ou consintam que um terceiro lhes provoque. A Constituição, no entanto, orienta todo o ordenamento jurídico brasileiro no sentido das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral. É possível dizer nesse sentido que a restrição de procedimentos de interrupção à gravidez é compatível com esse princípios? Alguns dirão que sim, outros que não.
A questão fica ainda mais complicada quando se considera o debate presente na ADPF 54. A proibição de aborto em caso de fetos anencéfalos é compatível com a dignidade da pessoa humana? Menos afirmarão que sim, mas essa permanece como uma resposta possível. E a discussão não se encerra por aí. A própria Constituição estabelece a inviolabilidade do direito à vida a todos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. Mas o que é “vida”? Um zigoto pode ser considerado vivo? Um embrião que se desenvolve com a ausência total ou parcial de seu encéfalo pode ser considerado vivo? Todas essas são perguntas cujas respostas não são encontradas nos textos legais citados, mas que dependem de um exercício daqueles que o leem.
É por esse motivo que a prática do Direito não pode ser apresentada meramente como uma ação de aplicação de uma fórmula pronta. Incumbe ao aplicador do Direito ainda uma grande tarefa que não pode ser menosprezada: a interpretação da legislação é central no processo de resolução de casos, dependendo de fatores que extrapolam a alfabetização dos ministros. Ainda que precise ser lastreada na redação legal, a forma pela qual um julgador interpreta é construída ao longo de seus anos de formação acadêmica e profissional por meio de seus valores éticos, morais e políticos. Essa é a razão pela qual Lula deve indicar uma mulher ao Supremo – mas isso não significa que deva ser qualquer mulher.
Assim como diz o jurista Adilson Moreira, que se reconhece não apenas como um jurista negro, mas como um jurista negro que pensa como um negro, não basta que Lula indique uma mulher ao STF; o País necessita de uma ministra que pense o Direito fora da lógica patriarcal. Nesse sentido, uma analogia pode ser feita com a lição do professor Adilson em “Pensar como um Negro”: “Para atingir esse objetivo, eu preciso demonstrar o que significa pensar como um jurista negro. Não estou afirmando que compreendo o sentido das palavras escritas no nosso texto constitucional de forma inteiramente diferente da maneira como juristas brancos as concebem. Estou dizendo que minha experiência social privilegia uma forma de interpretação delas, principalmente a do princípio da igualdade. Sou membro de um grupo minoritário e isso faz com que eu perceba a realidade e fale a partir de uma posição distinta de juristas que são brancos. A raça também define a forma como eles interpretam normas constitucionais, porque ela os situa em uma posição social específica”. Dessa forma, a experiência social de juristas mulheres também as privilegia a ter uma forma de interpretação do texto constitucional que os juristas homens não costumariam ter.
Entender isso é fundamental para a construção de um “país de todos, por todos e para todos, um país generoso e solidário que não deixará ninguém para trás”, como pretendia o presidente em sua posse. O Direito, como ensina Moreira, é “interpretado como um sistema que pode ser manipulado para manter a exclusão, mas que também pode promover transformação social”. Isso acontece especialmente diante do cenário atual em que, desde a promulgação da Constituição Cidadã, houve a constitucionalização quase integral dos direitos da mulher, de modo que a promoção de uma transformação social positiva às mulheres perpassa diretamente uma das funções do Supremo Tribunal Federal.
Prova disso é que parcela considerável dos direitos conquistados por grupos minoritários nas últimas décadas dependeu da atuação do STF. São os casos de, por exemplo, o direito ao casamento homoafetivo (ADI 4277 e ADPF 132), a criminalização da homofobia (ADO 26), o reconhecimento da constitucionalidade das cotas raciais (ADPF 186), descriminalização do aborto de fetos anencéfalos (ADPF 54) e a inconstitucionalidade do marco temporal para terras indígenas (RE 1.017.365). Avanços que, no entanto, podem ser ameaçados a qualquer tempo. É o que ocorre nos Estados Unidos, em que, com a formação de uma Suprema Corte de maioria conservadora, tem regredido profundamente nos direitos de minorias. Apenas nos últimos anos, o direito ao aborto e às ações afirmativas foram derrubados, além da atual ameça ao direito ao casamento homofeativo com a tramitação de um recurso que pede a anulação da decisão do caso Obergefell v. Hodges.
Lula, desse modo, se quiser construir um país melhor e assegurar que todas e todos sejam tratados com igualdade no Brasil, precisará fazer mais do que subir a rampa do Palácio do Planalto acompanhado de mulheres, pessoas com deficiência, negros, LGBT+ e crianças. O presidente da República deverá utilizar de seu poder para promover a transformação social. Se as “mulheres devem ser o que elas quiserem ser, devem estar onde quiserem estar”, por que o presidente não permite que elas cheguem ao Supremo? Por que considera que suas únicas pessoas de confiança para o STF são homens? Juristas mulheres competentes não são o que faltam. Como bem ressaltado em nota publicada pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, Vera Lúcia, Karoline Bezerra, Maria Paula Dallari, Sheila de Carvalho, Antonella Galindo e Edilene Lobo são só alguns dos nomes possíveis para a indicação.
O presidente da República, portanto, precisa honrar seu compromisso eleitoral. Se foi para combater a desigualdade e suas consequências o motivo pelo qual foi eleito, que cumpra sua palavra. Ainda se sentindo traído com os votos de ministros indicados em governos do PT nos julgamentos da Lava Jato, a confiança se tornou o critério norteador de suas últimas duas indicações ao Supremo. Com isso, após nomear o seu advogado pessoal, Cristiano Zanin, e o seu aliado político, Flávio Dino, é dada a hora de Lula pensar no País e não só no seu ressentimento com o passado.
Autoria: Erick Martins Rosario
Revisão: Pedro Anelli
Imagem da capa: Hermes de Paula / Agencia O Globo
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Referências
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