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JULGAMENTO: ANÁLISES E PARALELOS



Há algumas formas de se pensar sobre o que foi a jornada de Jair Bolsonaro desde sua ascensão, dependendo de como você o enxerga. A ironia dessas duas perspectivas é como elas, em uma anedota, comprovam uma das máximas mais populares de Marx: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: ‘a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa’”. 


A primeira forma viria de alguém que possivelmente admira Bolsonaro, é sobre vê-lo como uma versão tropical de um Aníbal nos portões. Assim como o general cartaginês, Bolsonaro chocou todo o establishment político com sua eloquência e ganho meteórico de popularidade. Ninguém esperava que um político grosseiro e com capilaridade limitada fosse derrubar mais de 5 candidatos experientes e bem conectados na política nacional em todas as pesquisas e depois alcançar a Presidência da República. Descendo dos alpes da internet com seus elefantes, guiados pela massa de eleitores de classe média cuja qualidade de vida havia despencado na crise econômica de 2014, Bolsonaro recriou um movimento de direita entubado desde a redemocratização e chacoalhou a segurança do sistema entrincheirado. Mas a “velha política” não deixou barato e reagiu. Bolsonaro foi estrategicamente apunhalado nas costas por seus antigos aliados, tornando-se alvo de ataques pelas elites brasileiras e pôs à prova contra pandemias e crises, mas mesmo após quatro anos sem, surpreendentemente, sofrer um impeachment, ele foi usurpado por seus opositores. Quem entra no seu lugar eram as figurinhas carimbadas de outrora que se recusaram a largar o osso e não somente estavam felizes em enterrar um movimento trazido pelo povo até a rampa do Planalto, mas não estariam felizes até que ele e seu campeão fossem destruídos; Bolsonaro delenda est.


A outra forma é a visão de alguém que o despreza. Bolsonaro seria uma versão caricata e perversa de Júlio César. O capitão da reserva é um megalomaníaco personalista, que angariou suporte nas massas ao redor de seu nome com a finalidade única e exclusiva de chegar ao poder, custe o que custar. Entregou a lei aos inimigos, tudo aos amigos, e em sua presidência deixou um rastro de caos. Ao longo de quatro longos anos, quem se opôs embarcou na jornada inglória de trazer a um fim seu domínio e sua ameaça à democracia. O impeachment não era suficiente, ele precisava ser escorraçado da vida pública pelo bem geral da nação e da República. As instituições, em um ato de união pelo Estado Democrático de Direito, trabalharam arduamente até seu julgamento, e sua condenação será, no fim, a libertação que o Brasil precisa - afinal, sic semper tyrannis.   


A pergunta que sobra é: qual interpretação está mais próxima da realidade? O julgamento de Jair Bolsonaro está mais próximo da catástrofe injusta do Cerco de Cartago ou da investida virtuosa dos Idos de Março? E, assim como esses eventos, ele é o fim ou o começo de mais um ciclo? Talvez fosse melhor primeiro ter mais detalhes do que o julgamento se trata e encontrar um paralelo mais próximo de nós: em Lula.


Independentemente de qual visão se adote, dizer que Jair Bolsonaro não aceitou o resultado das eleições de 2022 é um eufemismo. Ele não somente questionou as urnas eletrônicas, como também chegou a afirmar categoricamente em algumas ocasiões que não aceitaria resultados que não o garantissem a reeleição. A ideia original por trás dessa retórica estava embasada em uma lógica contraditória de que as pesquisas estavam ao mesmo tempo certas e erradas, já que enquanto tudo apontava para uma vantagem razoável de Lula, nos bastidores Bolsonaro estava crente de que iria ganhar. Quando o resultado das urnas saiu, alguns setores mais próximos do presidente consideraram que a única saída, talvez temendo uma retaliação política catastrófica de seu adversário, era impedir que ele chegasse ao poder.


Após algumas conversas pouco produtivas e documentos, incluindo tanto uma minuta para declaração de estado de sítio quanto uma conspiração entre as forças especiais do exército em um grupo de WhatsApp, o plano foi descoberto pelas autoridades. O timing não foi nada oportuno, com a ocorrência dos atos do 8 de janeiro tornando mais publicamente justificável a caçada pelas verdadeiras intenções de Bolsonaro. Verdade seja dita, mesmo se o clima político não estivesse lá, é provável que em algum momento a porta giratória iria acertá-lo com tudo, não para um carguinho de pouca relevância, como outros ex-presidentes, mas sim para a cadeia logo de cara.


Bolsonaro terminou o mandato com muitas pontes queimadas. A direita estava dividida, seus ministros brigavam entre si e a comunicação com o Congresso era ruidosa. A bola de neve veio a acompanhá-lo desde depois da sua carreira e criou o clima perfeito para prendê-lo depois de discordar das regras do jogo. Foi simples assim, na verdade, e tanto já se sabia que a defesa dos acusados pela tentativa de golpe seria quase impossível, que réus como Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do presidente, optaram por delatar os colaboradores para pelo menos conseguir penas menores. O castelo de cartas do bolsonarismo desmoronou muito rapidamente, desorganizado e com uma ausência notável de lealdade real.


Agora, não é preciso muito esforço para associar o clima atual ao de quando Lula foi preso. Sim, os dois são diametralmente opostos, mas o processo que levou até essa situação tem suas semelhanças consideráveis. Os dois são os maiores símbolos de seus respectivos movimentos, os dois foram presidentes particularmente controversos, os dois foram chamados de presos políticos por seus defensores e os dois foram alvos de uma delação premiada inesperada.


De todos os presidentes eleitos da Nova República, apenas Fernando Henrique e Dilma escaparam de serem condenados por qualquer crime que seja. Mas foi Lula que começou com a tendência, e foi uma experiência relativamente traumática, mesmo que o antipetista não queira admitir. O povo que vê um líder sendo preso, antes de qualquer coisa, se sente traído e desamparado. Tanto pela figura que deveria ser a representação da melhor e mais colaborativa parte da sociedade e agora mostrou-se suja e indigna, quanto pelo sistema que a julgou e executou sua sentença. Afinal, se eles tiveram a coragem de levar para a cadeia um representante do povo, ou de pelo menos uma parcela dele, fria e cinicamente, o que mais ele estaria disposto a fazer contra seus compatriotas? O resultado inevitável é que todo mundo que passou por isso entra na defensiva pelo seu político e trata opiniões discordantes como ataques, e esse sentimento paroquial é o primeiro bloco que fundamenta a famigerada polarização, cíclica e arsênica.


A comparação também não é perfeita, claro, mas é relativamente fácil dissecar o que se repetiu e o que não se repetiu entre essas múltiplas iterações da mesma história. A primeira coisa que está acontecendo de novo, mas com graus variados de sucesso, é a transformação do preso em mártir.


Na primeira vez, a narrativa de preso político colou relativamente mal. O PT criou acidentalmente uma câmara de eco ao redor de sua militância quando insistiu em emplacar Lula como candidato em seu momento mais baixo. Apesar desses entraves, a aura messiânica criada ao redor do ex-líder sindical reuniu a esquerda em torno de algumas de suas narrativas mais populares até hoje: a ideia de que a Lava-Jato foi uma conspiração contra Lula e o país, a ideia da “república de Curitiba” e a semente plantada para a desconfiança no Judiciário, além de claro, a criação de um símbolo de “nós contra eles”.


É curioso pensar o quão similarmente as pessoas agiram quanto ao processo contra Bolsonaro, mas podemos dizer que o efeito foi até mais forte que o gerado pelo atual presidente. Ele não precisou nem ser preso para começar a narrativa de perseguição, pois bastou ele não ganhar a eleição. Há uma discussão a ser feita de que o efeito foi mais uma intensificação da ansiedade acumulada desde a última vez que um presidente foi preso, e francamente, existe muita validade para essa tese. E, apesar dessas incertezas sociológicas no longo prazo, é inevitável que os próximos meses estejam abarrotados de menções ao capitão da reserva como um ícone traído, da mesma forma que Lula diversas vezes estreou nas propagandas de Haddad em 2018 como um líder que estaria transmitindo seu legado.


No entanto, existem diferenças marcantes nos ambientes da esquerda em 2018 e da direita em 2025, que podem ser explicadas pelas trajetórias políticas das duas figuras. Lula apareceu no cenário político no final dos anos 70 como um líder sindical. No início dos anos 80, participou da criação do Partido dos Trabalhadores junto de intelectuais e membros da igreja. Concorreu a governador em 1982 e foi uma das lideranças no movimento pelas Diretas Já. Foi eleito deputado federal em 1986 e disputou as eleições presidenciais de 89, 94, 98, até finalmente ganhar em 2002. Durante esses anos, Lula e o PT cresceram juntos, formando uma militância grande e ativa e estabelecendo bases sólidas que dominaram o campo da esquerda nas décadas seguintes de forma quase unânime. 


Já com Bolsonaro, as bases são bem mais frágeis. Apesar de ter sido deputado por 27 anos, ele só foi conquistar uma posição de liderança dentro da direita durante as manifestações pelo impeachment entre 2014 e 2016. Sua ascensão foi meteórica e muito impulsionada pelas redes sociais, nas quais Bolsonaro e sua equipe operaram com maestria e foram capazes de cultivar uma imagem messiânica em volta do então deputado. No entanto, as alianças construídas no campo bolsonarista são frágeis, fundadas por um oportunismo eleitoral e não por uma base partidária sólida, alinhamento ideológico ou admiração pela liderança de Jair Bolsonaro. Não à toa, ainda nos primeiros anos de mandato, vários setores da direita que se aliaram ao bolsonarismo durante as eleições de 2018 romperam com o movimento. Figuras como João Doria, Sérgio Moro e movimentos como o MBL, que foram grandes apoiadores durante as eleições, se tornaram inimigos políticos em poucos anos. 


Outra diferença marcante é que, quando Lula foi preso, a estrutura poderosa que o PT construiu durante décadas impediu uma divisão no campo da esquerda. Não houve a ascensão de outras figuras que desafiassem o protagonismo de Lula. O que se viu foi o contrário, uma construção de um campo político em torno de Lula com o foco em 2022, que uniu figuras do centrão e antigos inimigos políticos, como Geraldo Alckmin, sob a bandeira de uma frente ampla para derrubar o bolsonarismo. 


Mas enquanto a prisão do Lula unificou a esquerda, a queda de Bolsonaro parece estar precipitando um processo de divisão na direita. A força de Bolsonaro sempre esteve em sua mitologia, em seu prestígio messiânico entre seus apoiadores. O que atraía os aliados era justamente a oportunidade de surfar essa onda, de serem vistos pelas massas como um de seus apóstolos e receber a bênção em forma de votos. Não houve um esforço por parte do bolsonarismo de criar um aparato político e intelectual que institucionalizasse o movimento, como há com o PT na esquerda. Por isso, à medida que a figura de Jair Bolsonaro vai se desgastando, o seu apoio enfraquece rapidamente.


O bolsonarismo começa a mostrar sinais de que está ruindo. Vemos figuras como Tarcísio de Freitas, que faz um jogo perigoso em que tenta se provar fiel aliado de Bolsonaro para o eleitorado mais radical, ao mesmo tempo em que busca sinalizar um distanciamento e uma diferenciação para o eleitorado mais moderado. O governador de São Paulo foi duramente criticado por bolsonaristas mais fervorosos, como Silas Malafaia, por não ter comparecido a atos pró-anistia em abril e no início de agosto. Em resposta, Tarcísio participou ativamente dos atos de Sete de Setembro. Atos esses que reuniram cerca de 40 mil manifestantes na Avenida Paulista. Em fevereiro de 2024, cerca de 180 mil pessoas se reuniram no mesmo local em apoio a Jair Bolsonaro. 


Eduardo Bolsonaro também criticou fortemente o governador de São Paulo. Em mensagens vazadas do celular de seu pai, Eduardo disse que Tarcísio nunca ajudou em nada e estava de “braços cruzados esperando 2026”. No mesmo vazamento de mensagens, Malafaia aparece chamando Eduardo de “babaca”, “inexperiente” e “estúpido de marca maior”, o que gerou uma briga pública entre os dois.


Outro que parece buscar um distanciamento é Nikolas Ferreira. Aliado importante do bolsonarismo, o deputado já deu sinais de que estava buscando um caminho próprio durante as eleições municipais de 2024, em que apoiou e participou ativamente da campanha de Pablo Marçal para prefeitura de São Paulo, indo contra a orientação de Bolsonaro que apoiava Ricardo Nunes e havia brigado com o coach


É difícil prever o futuro da direita. Para as eleições presidenciais do ano que vem, o nome que surge com mais força é o de Tarcísio, mas um conflito com os líderes bolsonaristas mais radicais parece inevitável. Esse grupo não enxerga o governador como um dos seus, mas também tem grandes dificuldades em apresentar um nome com chances reais que os represente. Com Bolsonaro inelegível e seus filhos com alta rejeição e sem chances concretas de derrotar Lula, é possível que no final Tarcísio seja visto como a opção menos pior. Outros nomes como Ratinho Junior, Romeu Zema e Ronaldo Caiado podem pintar como opções, mas correm por fora. 


No longo prazo, algumas figuras devem ganhar força nos próximos anos. Nikolas Ferreira já é uma realidade e seu poder só crescerá à medida que ele constrói uma identidade política independente do bolsonarismo e se aproxima da idade de disputa de cargos executivos. Outro movimento que deve ganhar força é o MBL. Escanteado por romper cedo com o bolsonarismo, o movimento passou por anos de vacas magras. Entretanto, construiu nesse período uma identidade própria e uma militância organizada, o que culminou na criação do próprio partido, Missão, que estreará nas eleições do ano que vem. 


Já, na esquerda, se em momentos a união em torno do presidente foi benéfica, quando se pensa no futuro desse campo político, a unanimidade de Lula parece atrapalhar. O PT não conseguiu definir e formar um sucessor político de seu líder. Haddad tentou, Boulos tenta, mas nenhum foi abraçado pelo eleitorado da mesma maneira. No curto prazo, a solução segue sendo Lula. Tudo indica que o presidente disputará a reeleição, mesmo que isso signifique ficar até os 85 anos na presidência. 




Autoria: Bernardo Albernaz e Guilherme Neto

Revisão: Arthur Santilli e Pedro Anelli

Arte: Nicolas Floriano






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