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LAZER, DIREITO E EMANCIPAÇÃO



Por Maria Antonia Gouveia


A relação entre esporte e lazer existe e se faz presente na vida de muitos brasileiros. Por esse motivo, seria quase inevitável dar abertura a uma revista de esporte sem falar do quase santo futebol com Guaraná, sem lembrar das tardes no clube praticando natação ou das muitas voltas de bicicleta que ilustraram as páginas mais coloridas da nossa infância. Por aqui, o esporte é ferramenta de construção do cotidiano e vai além do alto rendimento. É nesse sentido que se orienta o trabalho da educadora Carolina Caldas, mestre em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais. Em sua dissertação Sentidos e Significados da Participação em Projetos Sociais de Lazer para a Juventude do Aglomerado da Serra: trajetórias e expectativas, Carolina analisa o provimento de políticas públicas de lazer no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, e o trabalho das iniciativas não-governamentais no estímulo à prática esportiva na região. Em entrevista à Gazeta Vargas, Carolina contou sobre a transformação proporcionada por esses projetos na vida de jovens e adultos e sobre o impacto que a garantia do direito ao lazer deve ter nas vidas dos cidadãos.


Historicamente, esse relacionamento entre lazer e prática esportiva se intensifica com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que inclui, em seu Artigo 6º, o lazer como direito social fundamental, ao lado de saúde, educação e alimentação. Em meio a esses outros direitos básicos, relacionados à subsistência dos indivíduos, parece nobre abrir espaço para garantir que as pessoas tenham um tempo para escolher o que fazer. Por esse motivo, o direito ao lazer chega a soar esquisito, parece enxerido entre tantos outros, por alguém, sabe se lá porque. E se ter acesso a esses direitos é, de alguma forma, indicativo de cidadania e pertencimento, ser negado o direito ao lazer ou ao controle do seu próprio tempo reforça as qualidades trabalhistas, operacionais e mecânicas que sustentam a sociedade pós-industrial. Em um país como o Brasil que, nas palavras de Carolina, possui um passado histórico latente que insiste em se fazer presente nas relações cotidianas e onde há uma barreira estrutural que divide claramente centro e periferia, zona norte e zona sul, seria natural que houvesse também impedimentos à humanização das pessoas e, por consequência, à prática de lazer em cada camada populacional.


Nas periferias, o que se observa é que o fornecimento de direitos fundamentais como esses depende ainda mais amplamente dos poderes executivos ou de outras instituições sociais. Em uma simples busca na internet por “clubes de lazer em São Paulo”, encontra-se uma lista dos principais — todos localizados em bairros nobres da capital paulista e com cotas vendidas por dezenas de milhares de reais. Em Belo Horizonte, cidade onde Carolina Caldas desenvolveu seu trabalho de campo, o cenário é equivalente: as opções de lazer ou práticas esportivas privadas são mais escassas nas regiões periféricas das capitais, nas quais geralmente reside a maior parte dos cidadãos de baixa renda. Mais distantes das políticas públicas, e, devido à falta de opções, mais dependentes delas, os jovens das periferias são os principais alvos de projetos sociais assistencialistas, que se desenvolvem com a intenção de suprir os vácuos de poder existentes nessas regiões.


Carolina analisa a atuação de muitas organizações no Aglomerado da Serra, dentre elas o Projeto Itamar, idealizado por um morador da comunidade que queria tornar a prática de Taekwondo acessível para seus vizinhos, os quais não teriam condição de pagar oitenta reais pela mensalidade da escola de artes marciais mais próxima da região. Na época do estudo, o projeto atendia cerca de 100 crianças que, segundo o idealizador Itamar, teriam se tornado mais próximas por causa das oportunidades proporcionadas pela atmosfera esportiva. O impacto da prática esportiva na vida dos jovens é direto, e para eles ainda mais fundamental. Caldas expôs, inclusive, que costuma haver por parte dos jovens uma dificuldade em discernir o agente da transformação social em suas vidas, sendo essas melhorias creditadas muitas vezes somente aos projetos, não à força de vontade e às características pessoais de cada um que se desenvolveram e permitiram que eles operassem mudança. Nesse sentido, é comum que o público dos projetos sociais se sinta privilegiado de tê-los, mesmo que eles representem a garantia de um direito que todos os brasileiros naturalmente possuem.


Esses projetos, ainda que fundamentais para a sobrevivência do direito ao lazer e do acesso ao esporte, estão sujeitos ao status quo, e podem se transformar num instrumento de auxílio à organização do sistema ao qual pertencem. Quando perguntamos sobre o impacto da atuação das organizações não-governamentais do ramo nas comunidades, Carolina menciona ter observado uma maior eficiência e significância dos projetos criados nelas próprias, como o de Itamar, em detrimento dos grandes e corporativos que também costumam marcar presença. Muitas vezes, esses projetos têm como objetivo final a promoção de uma “higienização” da juventude das comunidades por meio da prática esportiva e usam da oportunidade de construir ética profissional, técnica e autoconhecimento para promover um “controle de corpos” mais literal. Em vez de terem a melhoria da condição de vida da população como objetivo e a transformação das realidades como consequência paralela, muitos projetos têm como finalidade, por exemplo, “tirar os jovens das drogas”, problema estrutural que reverbera na sociedade como um todo. Dessa forma, acontecem sem pensar de fato na garantia da plenitude dos direitos desses cidadãos especificamente, e os jovens das periferias passam de sujeitos de direitos à massa de manobra para a concretização de um projeto amplo focado em outros receptores.


Dessa maneira, o projeto de garantia do direito ao lazer se ancora no esporte, um elemento de emancipação que se configura como parte da jornada de autoconhecimento e desenvolvimento de boa parte dos brasileiros. Tendo em vista que vários dos projetos de lazer desenvolvidos estão relacionados intimamente com o futebol, com a ginástica, com a dança e com o atletismo, é raro encontrar um cidadão que não se lembre fundamentalmente dos jogos e das brincadeiras que fizeram parte da sua formação pessoal. Carolina afirma, durante a entrevista, que o relacionamento com a prática esportiva é essencial para a validação do projeto de lazer. E se esse direito é assim tão importante, não erra quem acredita que seja fundamental também pensar na divulgação de seu significado inicial, para além de um instrumento de força, ordem e coerção. Para os pesquisadores da área, é preciso que o lazer esteja na mesma linha dos outros direitos e que a humanização dos cidadãos seja tão essencial quanto qualquer outro elemento básico de subsistência. Como afirmou o filósofo político Norberto Bobbio e Caldas reitera em sua dissertação, direitos como esses são sempre um “deve ser”, para que um dia, enfim, simplesmente sejam. Assim sendo, vale afirmar que no campo da promoção do esporte como direito ainda tem muita bola para rolar.


Revisão: Julia Rodrigues e Bruna Ballestero

Imagem de capa: Carolina Eguchi

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