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FORREST GUMP, PING-PONG, GUERRA FRIA E OLIMPÍADAS


Por Beatriz Bernardi


Cresci assistindo Forrest Gump e, desde que entrou no catálogo da Netflix, eu vejo o longa todo ano. Não sei dizer ao certo o quanto eu entendia desse filme com dez anos de idade, mas sei que ele sempre me tocou. Conforme os anos se passaram e fui aprendendo História na escola, eu comecei a compreender as referências e a conectar os pontos. No meu mais recente contato com O Contador de Histórias, após um mês assistindo a aulas e analisando fontes primárias e textos sobre as dinâmicas da Guerra Fria e rodeada das várias notícias sobre a chegada das olimpíadas de Tóquio, o que mais me chamou a atenção dessa vez foi o trecho sobre a diplomacia do ping-pong entre os Estados Unidos e a China e a inclusão de Forrest como um dos protagonistas desse fato histórico.


No fim da década de 1950 e ao longo da década de 1960, as distintas percepções entre líderes soviéticos e o líder chinês Mao Tsé-Tung acerca do comunismo e do caminho pelo qual ele deveria ser espalhado pelo mundo, somadas às tensões por disputas territoriais, provocaram a ruptura política entre a China e a União Soviética. Esse processo criou as bases para a reaproximação sino-americana, e a marcante visita do presidente norte-americano Richard Nixon à China, em 1972, demonstrou a disposição de ambos os países à normalização de suas relações políticas. Em Forrest Gump, a reaproximação é retratada pelos jogos de ping-pong e pela visita do personagem à China. Após se recuperar de um ferimento que sofreu ao servir na Guerra do Vietnã, o protagonista aprende a jogar tênis de mesa e se torna um dos melhores jogadores do país. Gump então é convocado para o que chama de “all American ping-pong team”: o time de mesa-tenistas estadunidenses que viaja à China. Como muito do enredo do longa, esse trecho é mais uma situação baseada em fatos reais. Após o Campeonato Mundial de tênis de mesa no Japão em 1971, um grupo de jogadores de ping-pong foram os primeiros estadunidenses a visitarem a China comunista, e o sucesso da viagem beneficiou o que havia se tornado o início de uma relação diplomática entre a República Popular da China e os Estados Unidos, abrindo espaço para a visita de Nixon à China de Mao Tsé-Tung que ocorreu no ano seguinte.


Cena do Filme em que Forrest joga ping-pong contra um mesa-tenista chinês na China (Créditos: Cheatsheet)


Em mais um de seus clássicos exageros, Gump afirma que sua visita foi marcante porque foi “a primeira visita de americanos à China em um milhão de anos ou algo assim”. Os jogadores foram a primeira delegação a pisar em solo chinês em 22 anos. É bem menos do que um milhão, mas realmente é bastante tempo. A relevância do evento não veio só pela linha temporal, mas porque, após duas décadas de relações fragilizadas pela Guerra da Coréia e pelas ideologias mutuamente excludentes, a visita dos jogadores representou uma oportunidade de fortalecer vínculos entre estadunidenses e chineses. Para a China, o interesse na reaproximação estava em proteger suas fronteiras da União Soviética e na possibilidade de negociar a retirada das bases militares e tropas norte-americanas de Taiwan. Para os Estados Unidos, a viagem bem-sucedida e a reconciliação representaram uma oportunidade de tirar o foco da Guerra do Vietnã e de construir uma aliança que ameaçasse a União Soviética.


Imagem real do time de jogadores de ping-pong dos Estados Unidos na Muralha da China em 1971 (Créditos: Global Times)


Nesse período, os Estados Unidos e a União Soviética ao mesmo tempo que competiam, também cooperavam no que ficou conhecido como a política da détente (relaxamento, em francês). Interessadas em reduzir os custos com o aparato militar para focarem em seu crescimento econômico, as duas superpotências passaram a se aproximar diplomaticamente com as negociações e os acordos SALT I que, dentre outras coisas, limitou a produção de armamentos (mais especificamente, de mísseis balísticos de longo alcance) de ambos os países. O contexto que antecedeu a détente dentro dos Estados Unidos é demonstrado no filme quando Forrest, no mesmo dia em que recebe sua medalha de honra do então presidente Lyndon Johnson, é acidentalmente convocado por uma protestante hippie em meio à marcha de 1967 do movimento da contracultura em Washington em oposição à Guerra do Vietnã e acaba discursando para milhares de pessoas. A contracultura influenciou a mudança de perspectiva do governo Nixon que, com a détente, almejava priorizar a política doméstica e reduzir gastos externos.


Brézhnev e Ford assinam o SALT I em Moscou, 1974 (Créditos: History UOL)


Os estadunidenses e os soviéticos perceberam que possuíam expectativas distintas com essa política e, por isso, com desentendimentos evidenciados em conflitos no Terceiro Mundo, a détente acabou em 1979, com o marco da falha do SALT II. Nesse meio tempo, ocorreu o escândalo de Watergate, de 1974, que culminou na renúncia de Nixon, do Partido Republicano. No filme, Forrest foi o responsável por denunciar o esquema da cópia de documentos e da instalação de escutas no escritório do Partido Democrata no Complexo Watergate, simplesmente por estar incomodado com as luzes das lanternas em sua janela. Ironicamente, no longa, quem custeou e recomendou a hospedagem de Gump no Hotel Watergate foi o próprio Nixon, pessoalmente, durante a visita do time de tênis de mesa à Casa Branca.


Concomitante à essas dinâmicas, os Estados Unidos e a União Soviética competiam na capacidade de suas ideologias promoverem prosperidade. No entanto, pelo caráter secreto das corridas armamentista e espacial e das disputas no Terceiro Mundo, a forma como as populações podiam observar e mensurar de fato a competição era através da transmissão das olimpíadas, por exemplo. As duas nações projetavam sua competição para o esporte na busca do maior número de medalhas de ouro e essa era mais uma forma de os países demonstrarem a capacidade de suas respectivas ideologias. As vitórias no esporte transmitiam uma mensagem de superioridade relativa das superpotências. Quando Gump disse: “(...) decidiram que a melhor maneira de eu combater os comunistas seria jogando ping-pong.”, ele não se referia às olimpíadas, e os Estados Unidos não planejavam mostrar superioridade em relação à China, mas a mensagem é válida em relação à União Soviética, já que, na perspectiva estadunidense, a reaproximação com a China seria uma forma de ameaçar e enfraquecer os soviéticos. A fala sinaliza uma projeção da política no esporte que foi real: dentro ou fora das olimpíadas e antes, durante ou depois do período de “trégua” entre as superpotências.


As olimpíadas não somente demonstravam uma possível percepção do poder dos estadunidenses e dos soviéticos, mas podiam sinalizar conflitos e tensões entre nações. Em 1952, com sua primeira participação nas olimpíadas, a União Soviética já demonstrou sua força conquistando o segundo lugar no número de medalhas de ouro e de medalhas no total. Já nas olimpíadas de Melbourne, de 1956, houve a primeira reflexão real de um dos conflitos da Guerra Fria no esporte com o “banho de sangue de Melbourne”. As políticas impostas pelos governos húngaro e soviético fomentaram a revolta popular que se iniciou em Budapeste e ficou conhecida como Revolução Húngara. No esporte, essas tensões foram projetadas para o jogo de polo aquático entre a União Soviética e a Hungria, que terminou com vitória da equipe húngara por 4x0, cinco jogadores expulsos e o jogador húngaro Ervin Zador ensanguentado depois de ser agredido por um oponente soviético.


Imagem real de Zador depois de ser agredido (Créditos: BBC)


A maior demonstração da projeção da Guerra Fria para as olimpíadas foram os boicotes de 1980 e 1984. Em 1979, com a invasão soviética ao Afeganistão e o fim da détente, o boicote estadunidense às olimpíadas de Moscou de 1980 foi um sinal de crise e distanciamento das relações diplomáticas entre os países, que havia passado por um período de relativa melhora com o SALT I. A superpotência ocidental recebeu o apoio de mais de sessenta países capitalistas em sua decisão. Os atletas estadunidenses, por outro lado, se organizaram em uma luta legal contra o boicote que foi liderada por Anita DeFrantz, remadora e medalhista de bronze em 1976. O nadador e recordista pelos 200m borboleta por três anos consecutivos Craig Beardsley resumiu o sentimento do grupo de esportistas quando afirmou logo após o início das competições olímpicas em 1980: “fomos apenas peões em um jogo político”. Ao contrário de Forrest, que não se via como uma peça do governo e, como em todo o longa, apenas fez o que lhe pediram. Isso às vezes lhe rendia maus frutos, como na Guerra do Vietnã, onde foi ferido e perdeu seu melhor amigo. Ou bons frutos, como no ping-pong com a China, que lhe rendeu um bom patrocínio que possibilitou que comprasse Jenny, seu barco de pesca que o tornou milionário e permitiu que ajudasse financeiramente a sua família e a do seu falecido melhor amigo, com sua bem-sucedida franquia de camarões Bubba-Gump e seus 12 “Jennys”.


Capa do jornal Daily News informando a insistência do presidente norte-americano Jimmy Carter em boicotar as olimpíadas de Moscou (Créditos: NY Daily News)


Previsivelmente, em resposta ao boicote estadunidense, em 1984 a União Soviética e mais treze aliados boicotaram os jogos olímpicos de Los Angeles. Apesar disso, esse evento bateu o recorde à época de países participantes com 140 delegações, marcando a estreia da República Popular da China. Em 1986, o empresário e fundador da CNN Ted Turner organizou a primeira edição dos Jogos da Boa Vontade, em Moscou, ocasião na qual Estados Unidos e União Soviética voltaram a se enfrentar no esporte pela primeira vez em 10 anos. Os soviéticos conquistaram o maior número de medalhas, com mais que o triplo de medalhas de ouro que o segundo colocado, a delegação estadunidense.


Nos jogos olímpicos de Seul, em 1988, o ping-pong de Gump enfim foi reconhecido como esporte olímpico. O esporte estreou com a China sendo a maior medalhista, com cinco conquistas. Esse reconhecimento foi muito importante para os chineses, já que, desde o início da década de 1950, o tênis de mesa era instituído como o esporte nacional da China por Mao Tsé-Tung. No filme, Forrest recebe e aceita uma oferta de 25 mil dólares para usar uma raquete com o rosto de Mao estampado de um lado e o seu de outro. Essa raquete de fato existiu, mas no lugar do rosto de Gump estava Richard Nixon.


Uma mulher segura as raquetes de Nixon e Mao em Dortmund, Alemanha, 1971 (Créditos: ABC7 News)


A diplomacia do ping-pong marcou o início do processo que resultou na abertura econômica da China para os Estados Unidos na era de Deng Xiaoping, que produziu uma série de benefícios econômicos para ambos os países. Ao passo que o boicote estadunidense e a resposta soviética na década de 1980 sinalizaram a retomada da corrida armamentista que, somada à custosa e malsucedida invasão soviética ao Afeganistão, contribuiu para a dissolução do bloco socialista em 1991. Assim, o esporte na Guerra Fria representou não só uma projeção da competição entre as superpotências, mas também uma sinalização para a população do rumo das dinâmicas diplomáticas que moldaram o curso do embate bipolar.


Já para Forrest, o esporte representou uma grande abertura de portas. Por gostar de correr desde pequeno, Gump era um bom corredor e foi convocado para jogar futebol americano pelo Greenbow Braves, o que lhe garantiu uma vaga na Universidade do Alabama. Por ter se tornado incrivelmente rápido correndo, Forrest pôde salvar a si mesmo e mais cinco soldados durante um bombardeio no Vietnã. Por ter sido um exímio jogador de ping-pong e ter conseguido patrocínios, o esporte também foi o que possibilitou que ele realizasse seu sonho de ter um barco de pesca, de se tornar um pescador de camarão e de ajudar a família do seu falecido amigo, Bubba.


Não vou dizer que fui capaz de estabelecer essas conexões apenas enquanto assistia ao filme, porque fui construindo elas, uma após a outra, inclusive conforme escrevia esse texto. Talvez por isso, o parágrafo inicial tenha sido como uma lente divergente, parti de uma coisa só, que virou um milhão de outras coisas no caminho. Mas a ideia de buscar possíveis relações partiu depois de simplesmente sentar e assistir a Forrest Gump mais uma vez.


No fim, isso foi mais uma “epifania forrestiana”.

Como diria Forrest:

And that’s all I have to say about that.

(E isso é tudo o que tenho a dizer sobre isso).



Autoria: Beatriz Bernardi

Revisão: Guilherme Caruso

Imagem de Capa: Giselle Linhares


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Fontes:

















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