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LUZ PELA DANÇA: A HISTÓRIA DE ALEX ARAÚJO



Alex Araújo é bailarino e membro do projeto Núcleo Luz - um projeto artístico-pedagógico gratuito que tem como instrumento de transformação social a linguagem da dança, voltando-se a jovens de baixa renda moradores da região metropolitana de São Paulo. Vindo de São Mateus, Alex narra, em entrevista, sua própria relação com a dança, com a qual teve seu primeiro contato após ser preso aos 16 anos por tráfico. A entrevista foi realizada por Clara Castelo Vieira para um trabalho de pesquisa sobre o papel da dança como instrumento de transformação social e individual.


O bailarino conta que entrou em contato com a arte através da dança em 2007. Estava saindo de uma situação difícil, tinha acabado ser preso, aos 16 anos de idade. O crime era tráfico, mas conta que ficou “apenas uma semana na Fundação Casa por não ter história de outras passagens”. Depois do julgamento, foi sentenciado a um ano de liberdade assistida, que cumpriu em uma ONG, que mantinha um projeto social do qual ele já fazia parte e era perto da casa dele. Lá, ganhava um auxílio de R$65,00, mas esse valor não supria suas necessidades daquela época, principalmente por conta das dificuldades que passava dentro de casa. Morava em São Mateus, na periferia - “bem longe do centro”.


“Em junho de 2007, conheci quatro adolescentes que foram fundamentais para o início da minha trajetória na dança. Na época, eles faziam parte da formação do Ivaldo Bertazzo no projeto social Cidadança. Seu tempo nesse projeto estava chegando ao fim e estavam iniciando um novo projeto, que hoje é o Núcleo Luz. E eu comecei a ter aula com eles, até que, em setembro, abriram audições para o primeiro espetáculo do projeto, e eu aceitei participar. Pensei, ‘eu quero, não tenho mais nada a perder’. Com 16 anos, já tinha sido preso, então queria conhecer uma coisa nova. Não tinha conhecimento nenhum do corpo ainda, só sabia jogar futebol, então se eu passasse era lucro, se não passasse, tudo bem”, conta Alex.


“Fui para a audição, no meio de um monte de gente que já dançava pelo menos danças urbanas, e sabia que não tinha chance”. Uma semana depois, ligaram-no contando que havia passado e perguntando se teria algum interesse de participar do projeto. Lembra que pensou: “já passei, então não tenho nada a perder, eu vou”. Pensando em tudo que viveu desde então, diz que “lá eu aprendi tudo o que sei de dança. Cheguei absolutamente cru e, em 2016, quando saí, minha vida estava transformada. Muitos dos jovens deixavam o Núcleo quando faziam 18 anos, pois suas famílias não concordavam com a carreira de artista, exigiam que seus filhos fossem alguém na vida, que trabalhassem, porque arte era coisa de vagabundo, e vi muitos dos meus amigos indo embora.”


Em 2010, começou a fazer capoeira, que sempre sonhou em aprender, e faz até hoje. Isso permitiu que conhecesse outras formas de arte. Uma delas foi o ballet clássico, que, antes, era objeto de seu preconceito. “Achava que ballet era coisa de menina. As aulas e as pessoas com as quais tive contato, professores e mestres, tudo isso modificou muito minha forma de pensar, meu jeito de enxergar as coisas. Estar em um lugar onde a maioria dos homens era gay, por exemplo, foi me ajudando a entender e enxergar as pessoas como pessoas, e não as rotular.”


Alex mostra que aprender a dançar mudou sua forma de olhar o mundo: “venho até hoje me trabalhando nesse sentido, de olhar as pessoas como elas são de verdade. É uma construção. E uma coisa que levo para vida é que estamos em uma eterna desconstrução de algumas coisas e uma eterna construção de outras. Por mais que eu esteja em um contexto no qual a questão racial, questão de machismo e feminismo estejam muito fortes, se eu disser que eu não sou machista eu estou mentindo. Porque uma hora ou outra os hábitos que já estão introjetados em mim acabam saindo e falo coisas que não deveria falar. Mas quando eu paro para pensar que aquilo que eu falei foi errado, eu tenho consciência daquilo que eu falei. E assim começa a desconstrução de tudo, você mesmo percebe que errou, e se desculpa, e muda, as coisas já estão sendo transformadas. E foram as influências que eu tive que me fizeram mudar minha maneira de olhar o mundo e as pessoas, e eu preciso levar isso para as pessoas que estão próximas a mim que não tiveram essa oportunidade”. Conta que hoje se sente uma pessoa muito responsável para levar essa desconstrução a essas pessoas, “porque eu aprendi, eu tive o privilégio de poder sair de São Mateus e ir para o Centro, atravessar essa ponte. E hoje eu tenho que atravessar essa ponte de volta para poder entender como nós periféricos somos vistos, o que existe lá fora que não chega nas periferias. E como eu posso ajudar os meus?”


Sobre questão racial, Alex faz uma relação direta com a vida em São Mateus: “ela vai estar sempre muito mais forte para o povo preto periférico, é a pessoa de pele mais clara, o homem branco, entender isso. O racismo existe e eu sei que eu não vou sofrê-lo. Por mais que eu sofra algum preconceito por vir de onde eu venho, por conta do meu jeito de andar, jeito de me vestir, jeito de falar, o meu amigo preto vai sofrer muito mais que eu.”


Ainda sobre formas de discriminação, conta sempre ter sido visto como “o bandido”, que “as pessoas sempre me falavam que eu tinha cara de ladrão, de traficante, e hoje eu entendo o porquê e questiono isso”. Usando como exemplo suas aulas de ballet, conta que, “na época, a gente levava como brincadeira, mas na sala de ballet clássico de um projeto social, os meninos da periferia eram separados e colocados em uma barra diferente, apelidada de Barra da Jamaica. Foi uma brincadeira que nós fizemos no começo, exatamente porque não gostávamos de estar lá, e eu não fui colocado nessa barra porque eu descobri um gosto pelo ballet e me propus a aprender a dançar. Hoje eu olho para trás e vejo que tinha uma questão social e racial naquele lugar mesmo, era uma ‘brincadeira’ pra gente, não falávamos nada, mas não acho correto. Mas somos um grupo de amigos até hoje, e eu faço parte. Depois de um tempo, vamos percebendo todos os lugares onde essas coisas acontecem.”


Quando conta sobre sua relação com o trabalho corporal, Alex é enfático: “se você não tem a cara de príncipe, não tem o físico ideal do ballet clássico, não tem espaço”. “Como estávamos em um projeto social no início, a gente era a galera que ‘segurava a bronca’, era o pessoal da capoeira, das danças urbanas, e éramos, em maioria, pretos e periféricos. A não ser que o preto fosse alto, tivesse um corpo alongado e uma linha de corpo bonita... aí ele era aceito no padrão, mas era raro.” Alex foi vendo isso em outros ambientes e se perguntando: “onde está a igualdade dentro de um lugar que deveria ser de inclusão?”.


Acerca dos diálogos sobre cultura e arte, o bailarino coloca uma série de outras perguntas pertinentes: “onde tá esse povo todo que fala de estar junto, de se aproximar e dar as mãos se quando precisa de um bailarino vai atrás de um bailarino padrão? De um físico e uma estética que agradam? E isso mesmo que o bailarino negro seja tão talentoso quanto. A dança ainda é muito presa à estática e ao padrão físico. São coisas que não só dentro da dança, mas de outros tantos ambientes eu me questiono, como na política por exemplo. Quando os políticos falam que vão discutir a questão racial, onde está a questão racial? No centro ou nas periferias? Vamos falar de feminismo, mas esse feminismo está onde? Onde essas pessoas moram ou também no centro? Vamos falar de machismo, mas o machismo está onde? Tá só no centro? Como que eu vou fazer para que essas meninas, que estão nas comunidades e que sofrem abuso e muita violência, como eu faço esse discurso chegar nelas? O difícil é você se colocar dentro de uma favela onde o machismo é muito mais forte, o feminicídio é muito grande, assim como a homofobia que é mais forte ainda. E quem são as pessoas que levam essa discussão para lá? Afinal, discutir tudo isso no centro é fácil, difícil é levar tudo isso para dentro das favelas.”


Ao abordar os aparelhos da cultura na cidade, conta que “tem pouquíssimas casas de cultura nas comunidades, uma é muito distante da outra. E morando 13 anos em São Mateus eu fui descobrir uma casa de cultura há dois anos atrás. Mas isso só porque fizeram um movimento do ZL Sem Registro no qual pegaram todos os artistas ou fazedores de cultura da Zona Leste e a história de 100 desses agentes culturais. E eu pensei, ‘eu não tive contato com essa cultura e com esse espaço a minha infância inteira’”. Mesmo assim, sabe-se que o acesso à cultura nas periferias ainda é extremamente limitado. “Nas escolas mal tem aula de artes. Não se fala de dança, não se fala de cultura popular brasileira, não se fala de nada disso! Eu vim conhecer tudo isso quando eu saí da escola, e porque tive a chance; muitos não têm. Dentro das periferias, aprendemos o que o governo quer que a gente aprenda, diferente de quem estuda em escola particular.” Alex vai além, pois a falta dessa abordagem cultural também gera uma lacuna nos conhecimentos históricos e políticos dos estudantes: “quem foram os heróis brasileiros? E as heroínas brasileiras? Eu não ouço falar de Dandara, de nenhuma dessas pessoas que foram essenciais para a história brasileira.”


"Podemos tentar entender esse lugar da arte, arte para quem? Até onde? Porque arte não deveria ser privilégio, deveria ser algo para todos. É um lugar onde existe liberdade de conhecer outras coisas, de questionar..., mas infelizmente para isso precisamos de pessoas que trabalhem com arte, e aqui no Brasil, arte não remunera ninguém. Quando alguém me fala que quer viver da dança, e falo que é sobreviver da dança, porque isso não é viver. E eu falo isso pois estou cada vez sobrevivendo mais, e vivendo menos. Hoje, no meio da pandemia, estou trabalhando como entregador. Eu saio de casa de manhã, pego a bicicleta e vou pro centro entregar almoço. Fico fazendo entrega até as 15h para ganhar um dinheiro extra, R$40,00 o dia. E dando aula virtual no projeto social para as crianças, eu preciso de quatro semanas para ganhar a mesma coisa, porque é o que podem me pagar. "


Segundo Alex, no início de sua carreira, as maiores referências de dança estavam nas companhias europeias. “Não tenho nada contra quem quer ir para essas companhias, porque é o desejo de cada um. Durante muito tempo, fiquei olhando também o Balé da Cidade de São Paulo e outras companhias de dança contemporânea no Brasil, e pensava que um dia eu poderia estar nesses lugares.” Então, percebeu que não queria se inserir nesse ambiente, pois isso o afastaria da periferia onde morava. “Acho que por isso hoje eu trabalho em um grupo o qual eu ajudei a criar. Nós falamos principalmente das questões periféricas e raciais, e o grupo tem em maior parte pessoas negras. Trabalhamos com a base da capoeira, e a partir disso criamos nossos espetáculos trazendo também um pouco da dança contemporânea. Sempre dançamos, tanto no centro quanto na periferia, para levar esse olhar para todos. E é isso que eu quero fazer. Não quero estar no Balé da Cidade, na São Paulo Companhia de Dança, na Débora Colker. Não quero. Eu quero estar em um grupo onde se fala sobre questões que estão próximas a mim. E que eu também vou conseguir levar para a plateia de uma maneira que todos entendam, de maneira que possamos conversar depois.”


O seu maior desejo é levar as oportunidades que teve para a periferia, “poder abrir esse espaço para as pessoas. Eu preciso estar nesse lugar de fazer pelos outros o que fizeram por mim. Essa é a fala dos mestres: um professor só é um professor quando tem seus alunos; e um mestre só é um mestre quando tem seus discípulos. Um mestre precisa que seus alunos passem seu conhecimento à diante. O que adianta eu ter toda essa bagagem que agora eu tenho e não atravessar de volta a ponte?” É esse o trabalho que Alex faz com as crianças, agora, nas aulas online, mas principalmente nas aulas presenciais. “Eu levo as questões periféricas, raciais e sociais. Porque é isso que a gente precisa entender. E essas crianças precisam entender tudo isso. Precisam entender o machismo, o racismo, o feminismo. Claro que eu não posso falar por elas, mas eu entrego as ferramentas que elas precisam para ir atrás desse conhecimento”.


Alex e seus companheiros, ao final de suas intervenções artísticas na periferia, tentam sempre fazer uma roda de conversa. “As pessoas sempre dizem como os espetáculos são fortes, como é incrível o grupo fazer um espetáculo sobre o lugar de onde eles vêm e sobre os sofrimentos que passaram. É sobre o sofrimento, e estamos acostumados com isso. Mas é errado, não podemos nos acostumar. Estamos acostumados com esse ciclo de sofrimento dentro da periferia. São jovens negros sofrendo, mulheres pretas e até mesmo brancas morrendo, sem falar das pessoas da comunidade LGBT que sofrem e morrem também. O ciclo não acaba. Mas por que não acaba? É isso que tentamos levar e discutir com as pessoas. Até mesmo falar do amor nos espetáculos é importante lá dentro. No meio de tanto caos vem alguém e fala sobre amor. Olha a necessidade de se falar sobre isso! Vivemos em um lugar de tanta violência, gente morrendo, gente apanhando, gente sofrendo, que parar para assistir um espetáculo que fala de amor, que entrega um chocolate ou uma flor, vira um gesto muito grande. Uma poesia, já é muita coisa.”


O bailarino conclui que o que mais gosta em seu trabalho é ter contato e fazer trocas com outras pessoas. “Eu me encontro cada vez mais sendo um artista que trabalha na rua. É chamar as pessoas para participarem e se sentirem parte. Eu tiro as pessoas por um segundo daquele mundo louco para que elas possam dançar comigo, e esse um segundo pode fazer a diferença. E são todos esses questionamentos, questões e oportunidades que eu quero levar para as periferias. A gente pode apanhar muito no meio do caminho, mas se a gente apanhar e conseguir ficar de pé para continuar, acho que, no fim, conseguiremos olhar para um lugar diferente, talvez não ideal, mas melhor”.


Foto da capa: Acervo Fábricas de Cultura

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