top of page

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, UMA ANÁLISE




José Saramago elabora, com proeminência, uma realidade simulada em que pessoas de um universo congruente — no sentido da estrutura geral, funcionalidade, institucionalismo, burocracia e o que mais houver — com o de nossa sociedade moderna desenvolvem uma cegueira repentina. O “mal branco” é a condição que, de súbito e sem causa conhecida, embranquece a visão de seus portadores e os priva de ver qualquer outra coisa que não o puro branco em todo lugar. Por essa premissa, o governo local e, talvez geral do país, estabelece frustradas e programáticas profilaxias para conter a qualquer modo a nova “doença”. Quarentenas, diretrizes, proibições, condições especiais e rotinas de remediação são rapidamente postas em prática. O problema é, a princípio, que nada se sabe sobre o contágio, como evitar, como lidar com os doentes, como proteger-se dos doentes de quem se trata e daí em diante. Para quem quer ler e ainda não o fez, minha análise não descreve nem desnuda narrativamente a obra, apenas trata do panorama geral antecedente à produção, ou que a circunda.


O que mais chama minha atenção entre todas essas medidas é o que Saramago exaustivamente se dedica a descerrar ao longo da narrativa: a quarentena. Curiosa a ideia de que, num esparso monólito de concreto, arquitetado com largos corredores e escadas, dividido em câmaras e dormitórios em geral, os militares responsáveis por chefiar a estrutura — e a administravam do lado de fora de imponentes portões metálicos, bem como de outras contenções espaciais de mesma natureza — exibiam, periodicamente por meio de auto falantes, instruções obrigatórias, orientações e comunicados repetitivos que nada expunham sobre a situação do mundo lá fora para os cegos internados no que parecia ser, cada vez mais, uma instituição às ruínas. Mesmo por isso, nem tanto mais parecia uma instituição com qualquer finalidade, mas talvez apenas a situação das pessoas ali dentro. Sempre inflexíveis, esses mesmos militares recusavam a cessão a qualquer tipo de solicitação ou demanda que de dentro viesse, tudo em prol da retificação da continência do contágio, e assim foi por tempos, até que sua presença cada vez mais se atenuasse, e até que eles mesmos começassem a cegar.


Importante a descrição do ambiente interno de convívio dos cegos que Saramago faz de forma tão vívida e visceral. A exposição nada mais parecia e era sobre nada além opinada do que a nudez da condição humana; o mais animalesco mosaico do desespero de seres inteligentes e dotados de lógica reduzidos aos seus mais primitivos sensores de realidade. É como uma caricatural e neutra narrativa de uma morte personificada — como a narradora da obra “A Menina que Roubava Livros” — que põe-se a escoltar suas crianças pelas progressivas alas de sua ignorância. 


A sujeira acumulava-se nos corredores, condimentos humanos espalhados por aqui e ali e, em falta da visão, a despreocupação geral com o julgamento alheio quando ninguém saberia identificar-se, ninguém se perceberia e todos ali conviviam, era exposta por todos e para todos, e mesmo sem ver, sabiam. É interessantíssimo o lançamento da invisibilidade escancarada dos seres, feita de nada além do que a ausência do mais óbvio sentido de todos. É como presenciar diversos “príncipes” imbuídos em nojeira, vergonhas de que nenhum deles poderiam se envergonhar, desejos imediatistas e exigências cada vez mais mínimas que se davam pela aquisição do costume de se viver com pouco. Ainda assim, penso que Maquiavel não se orgulharia.


“A mulher do médico”, como assim era descrita, e agora chegando em um importante ponto da análise, era a única figura ali presente, não somente ali como ao longo de toda a obra, que poderia dizer que via. Do princípio, já antes mesmo que seu marido, qual seja, o “Médico”, fosse encaminhado à quarentena, ela resolveu passar-se por cega para que pudesse acompanhá-lo. Bem ela sucedeu quando enganou a todos e, em todo o tempo que passou naquele lugar, jamais cegou. Presenciou seu marido deitando-se com uma jovem em sua frente, e uns tantos cegos deitando-se uns com os outros em outros lugares. Viu alguns escondendo, sob o colchão ou em alguns cantos, suas poucas pertenças, jamais valiosas em um lugar como esse, e pendurou, ela mesma, uma lâmina numa parte alta da parede, onde seus colegas de estada não poderiam adivinhar conter uma arma. Como vimos, o adultério, a ganância, a desconfiança, a “sem-vergonhice”, a sujeira das almas das pessoas não passou a existir do momento em que essas terríveis circunstâncias se afixaram, e talvez essa seja uma das prerrogativas para a existência dessa obra. Indiferentes e mais reais que as instituições, aos mocassins e vestidos elaborados, aos belos discursos e rótulos de águas com gás em belas garrafas de vidro, aos caros e inebriantes perfumes, aos caros e nada práticos veículos, aos cargos e às posições, aos nomes e aos títulos, são a fome, a libido, o desespero, a animosidade, o egoísmo e qualquer outra coisa que nos faça bichos. O Médico, unicamente ciente de que sua esposa poderia ver e na esperança de que ela estivesse em profundo sono, arriscou deitar-se com outra mulher, ou menina, no mesmo ambiente. Quanto as condições de conforto do homem precisariam se suprimir para que não mais as pessoas se incomodassem com as conformidades humanas, os contratos invisíveis, os padrões comportamentais e os que os antecedem, quais sejam, os de pensamento, e com as demais diretrizes sociais de existência? Tenho a singela impressão de que as regras sociais são naturais, mas nem por isso deixam de ser, também, situacionais.


Vi, em diversas ocasiões ao longo da vida, seres humanos em condições miseráveis de existência. Poucas economias, pouca higiene, pouco ou nenhum abastecimento de alimentos e, consequentemente, impossibilidade de saciedade imediata. Dessas pessoas, não somente esses elementos foram se privando, como também o que banalmente chamamos de dignidade. A “humanidade” ganha um sentido distinto desde o princípio do sedentarismo. Quando se passa a conhecer a normalidade da condição humana a partir de um certo aspecto, esse aspecto faz-se natural como respirar porque se estabelece, ao menos para as gerações que nele são concebidas, como principais; mínimos para o desenvolvimento humano; naturais, se me perdoam a repetição do termo. Pessoas nuas em áreas urbanas, mal cheirosas, expondo seu sexo, tanto literal quando conotativamente. Que julgamento há que dá-las os governos humanos quando, de terno e gravata, compartilham com essas pessoas os mesmos princípios e desejos, mas que, pelo próprio terno e pela própria gravata, exibem para si mesmas e para os outros que seu sexo é mais “sofisticado”, e os saciam proporcionalmente? Bem sabemos que nada mais é a sofisticação do que uma camisa feita de folhas de plástico que fingimos não termos feito a partir da natureza.


Num dado ponto da obra, o autor elabora uma situação em que uma gangue de cegos retém dos demais a comida, privando-os de seu sustento, e condicionando esse mesmo sustento à voluntária submissão das mulheres da quarentena ao estupro coletivo por esse(s) grupo(s). Incomum na natureza é o controle de desejos pelas criaturas desprovidas de pensamento lógico, mas comum é, na natureza, a reatividade das criaturas providas de pensamento lógico, com base na lesão individual ou grupal a essa mesma condição lesiva, a qual comumente apelidamos de injustiça. Justiça não existe em qualquer outro lugar, curioso. Por mais que nos pareça por mero espanto, não é injusto o leão abater uma zebra, e não é injusto uma zebra abater as plantas das quais ela se alimenta. Não é injusto a planta “abater” o gás carbônico, para dele fazer gás oxigênio puro, e não é injusto o gás oxigênio se desenvolver em ozônio puxando mais um átomo semelhante. Curioso também é pensar que o papel da planta nos parece imediatamente menos injusto que dos antecedentes pelo fato de que ela nos ajuda, e pelo fato de que o CO² se afasta da nossa convencional ideia de “vida”. Como se percebe, o egoísmo não parece vir da precariedade da situação humana, mas sim, torna-se mais aparente nela.


A par da grotesca realidade retratada na obra, o leitor pode vir a questionar se ela é exagero e acho que não há resposta certa. A situação elaborada no universo do texto é propositalmente horrenda porque, claro, a escrita é um ato voluntário, consciente. E dessa situação, atitudes, eventos e descrições igualmente horrendas tomam forma. E do exagero ou não, vem seguida a questão: será que as pessoas são assim tão horríveis? O que é que Saramago efetivamente critica? Para mim, não é tão simples quanto o testemunho do “veja a brutalidade e animalidade do ser humano”, mas sim o “veja o que podemos nos tornar com certo ânimo quando somos jogados aos porcos e tratados como porcos”; “veja como nunca você pode afirmar categoricamente que conhece ao outro ou a ti mesmo”; “veja como o remédio para a hipocrisia é a humildade, o reconhecimento de sua ignorância”.


Muito é dito, por exemplo, com certa convicção, que somente damos valor às coisas quando as perdemos, mas não acredito fielmente nisso. O ganhar algo pode ser interessante, mas o perder também. Daí porque ricaços fazem esportes de alto risco, daí porque pessoas felizes de vida boa consomem substâncias fatais como cigarro, gordura saturada, açúcar, álcool e outros catalisadores da impulsividade infantil que parece que pertence a todos nós, ao menos em algum nível. É a variedade, a experiência, a mudança, o tesão que move as pessoas. Está nos cegos saqueadores e está em você, leitor. Testemunho agressivo, pode-se dizer, mas não estou comparando dois lados de uma mesma moeda. Comparo duas moedas de materiais diferentes, mas que são moedas em si. Alguns de nós vão a ponto de tecer princípios, preâmbulos intimistas que respeitamos mais do que respeitamos ao próximo, para fingirmos no senso de moralidade que construímos ou em que acreditamos, e como é confortável esse senso.


Há, no livro, uma cena em que mulheres cegas se despem para molharem-se na chuva, gratas e felizes por terem a oportunidade de se limpar em meio àquela imundície que acostumaram-se a tolerar e conhecer. Porque é que estavam felizes com a água da chuva de pronto, mas jamais o fizeram antes da condição da cegueira alastrar-se mundo afora? É variabilidade. Talvez, de fato, seja ignorância, “mal agradecimento”, mesquinharia, quem sabe. Talvez não mais agora porque, frente à nova realidade, aprenderam a humildade por força bruta. Ou talvez nenhuma das hipóteses se verifica e apenas deixei de considerar algo a mais, uma outra visão, uma nova abordagem, e sempre há essa possibilidade, para tudo. Penso que Saramago tem uma forte inclinação ao ceticismo e vê o quanto o mundo é cheio de si quando as pessoas se fazem impacientes ante à falta de certeza. Exigem o sim como exigem que um mais um seja dois, e sinceramente… não sei se é, só me parece ser.


Ensaio sobre a cegueira é uma obra incrível e, assim como alguns filmes “cabeça”, suscitam prolongadas e exaustivas discussões — é comum achar gente que, ao invés de participar por interesse numa deliciosa discussão sobre algo inteligente, faz da própria circunstância uma competição de inteligência. Quem sabe o próprio Saramago não tenha antecipado isso. Quando me dei por mim, finalizei o livro com um sorriso no rosto, me sentindo ludibriado e talvez um pouco mais astuto. Talvez mesmo por achar que tive esse pequeno ganho de astúcia é que me senti ludibriado. Acho que Saramago daria uma risadinha se pudesse ler minha cabeça nesse momento, e sentiria que acertou nas letras.



Autoria: Rodrigo Ferreira

Revisão: Enrico Recco e Artur Santili

Imagem de Capa: Ensaio Sobre a Cegueira, Capa

bottom of page