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O BRASIL PELAS LENTES DAS NOVELAS: DO APOGEU AO DECLÍNIO DE UMA NAÇÃO (E DE UMA ARTE)





Sou fã de telenovelas. Fã não, acredito que posso dizer que sou obcecado por elas. A novela brasileira, produto cultural nacional, é de longe uma das peças de maior riqueza do nosso país, que há décadas vem contando sobre essa terra, sobre as pessoas que a formam, os problemas que a rodeiam e as histórias imaginadas aqui. As obras possuem o poder de encantar, entreter, informar e, claro, retratar nossa sociedade, seja para o bem ou para o mal. 


Como disse, sou noveleiro assumido. Daqueles que, no horário da novela, grudam a bunda no sofá e pedem silêncio para quem está em volta. Que apreciam um bom romance de época das seis, um humor pastelão das sete e um drama das nove. Dos que podem citar abertura, elenco e diretor de inúmeras produções diferentes, que conhecem a cenografia de uma obra e decoram o texto de outras. Já era hora, na minha opinião, de alguém falar sobre a novela brasileira nessa revista. Isso nunca aconteceu, então tive que encarar a missão.


Encarar? Se soar para você como algo negativo, não está errado. Encaro a missão de escrever um texto sobre uma das minhas grandes paixões porque ele, como tudo que circunda o Brasil moderno, não será de todo positivo. Aqui, trago uma triste análise, que revela como nosso país e como esse rico produto cultural decaíram e definham frente a tantos problemas, seja no mundo real ou no mundo das ideias. Neste tópico, minha tese máxima, de que novelas são instrumentos perfeitos para se compreender a história do Brasil, aqui se posiciona para escancarar como nosso país tem regredido no quesito qualidade, e como as produções da teledramaturgia são exemplo disso. 


Para os que não se interessam muito, ou nunca buscaram saber, é importante contextualizar: novela, no Brasil, é coisa séria. Faz parte da identidade do povo brasileiro desde sua criação, há 70 anos. Em 1951, Sua vida me pertence estreou na extinta Rede Tupi. De lá para cá, centenas de produções diferentes, feitas de forma contínua e simultânea, invadiram as telas de todas as casas pelo país, contando histórias (mais ou menos) verossímeis, mas todas com o toque de Brasil que só a novela conseguiu captar. Essa história vai muito além de Avenida Brasil, fenômeno que pegou a virada de gerações e cativou o país, das mães quarentonas aos filhos adolescentes. Muito boa, muito bem lembrada e, claro, excelente produto sociológico para se entender o país daquela época. Mas não é a única. Antes dela vieram outras que cumpriram essa missão de forma primorosa. E depois? Bem, depois vieram algumas que conseguiram obter êxito na missão de retratar o Brasil, que fervilhava em problemáticas sociais, instabilidade política e transformações econômicas. Mas foram cada vez menos. Cada vez menos histórias e produções capazes de  prender o público na frente da televisão, de gerar conversas na rua no dia seguinte ou de nos fazer dizer: “é esse o nosso país”. De 2012 para cá, o Brasil é outro. As novelas, também. 


Falar sobre o declínio da sociedade brasileira, seja nos direitos sociais e humanos, no respeito às diferenças, nas instituições políticas ou nas relações econômicas, não é novidade para mim. Estou, sempre que posso, escrevendo algo que tangencia essa frente, mas nunca topei o desafio de conectá-lo às novelas porque isso significa mexer em algo que tem um apelo profundamente sentimental para mim. Reconhecer um potencial fracasso do Brasil através das telas que o captam é admitir o fracasso de uma arte antiga, que me comove - assim como a milhões de pessoas - todos os dias. Mas é necessário. Em meio ao Cambalacho que toma conta deste país, sobrou para a teledramaturgia também.


Nos últimos anos, as produções, reconhecidas internacionalmente por sua qualidade e riqueza, foram tomadas pelas questões que assolam também a população brasileira. A precarização do trabalho não poupou nem o Projac. Nos últimos anos, a Globo, maior produtora de telenovelas do mundo, rescindiu contrato com seus maiores nomes, atores e atrizes de décadas e de enorme talento interpretativo. Priorizou trabalho por cada obra, extinguindo contratos longos e cortando vínculos trabalhistas com autores renomados, diretores competentes e produtores talentosos em nome de uma suposta economia em tempos de crises. Desde então, influencers e publis tomam conta das telas da Vênus Platinada, que há muito perdeu seu esplendor ao promover um sucateamento da arte genuinamente brasileira que é a novela. Nesta Cama de Gato, bolada pela emissora, a Rainha da Sucata foi a influencer com mais seguidores da vez, cotada para assumir nomão em novela das nove com base no engajamento que pode trazer ou não para as novas obras. 


Fora do Esplendor artístico, a coisa é igual: reforma trabalhista, pejotização e subempregos crescendo. É mais entregador que advogado, é mais diplomado no Uber do que no mercado formal. Nem quando o trabalhador cansado chega em casa, após um longo dia, ele consegue esquecer o caos social que esse país mergulha. Ligando a TV, dá de cara com as mesmas problemáticas, mas não expostas de forma que o incentive a se questionar, pensar e refletir. Elas são expostas de forma implícita, nos detalhes, para não mexer no vespeiro. As Plumas e Paetês que davam o tom glamuroso das produções, agora saem de cena  para dar espaço aos frangalhos que comprometem a qualidade do entretenimento.


Em uma nação cada vez mais iletrada, onde a educação séria deu espaço ao sucateamento do ensino, com IAs e apps de dancinha fazendo o trabalho de professores pela metade, os textos perdem seu valor. Ninguém mais quer pensar, ninguém mais quer refletir. Diálogos inteligentes, os longos monólogos que marcaram as produções em seus tempos áureos, não existem mais. Agora é meme, é diálogo raso e bobo, para virar reels no Insta. Quem quer ouvir uma cinquentona falando sem parar? Não dá mais. Agora é galã inexpressivo goela abaixo e já está ótimo. Uma sensação agridoce entre o apego à nostalgia do que a novela já foi e o temor do que ela pode ser nos próximos anos. Nestes sentimentos de Chocolate com Pimenta, o público é que sai perdendo, recorrendo ao antigo para não ter que lidar com o futuro. 


É necessário repensar, mudar a rota. A Vida da Gente merece ser melhor representada na tela. Obras que ficaram conhecidas por sua caracterização ímpar, cenários impressionantes e externas que mobilizaram um país se tornam raras. Do tiroteio em Copacabana à viagem de balão em Istambul, fomos parar na chuva feita de CGI e na casa com parede de papelão. O Império construído pela Globo está ruindo, assim como o Brasil. Nada mais tem qualidade. Nos acostumamos com o básico, do alimento na prateleira ao verde que nos rodeia: o mínimo está bom, não precisa de tanto. Se eu não vejo natureza ao meu redor, não preciso ver na televisão. Planta soja que está bom. Se ando comendo mal no dia a dia, porque diabos quero ver mocinha rica numa mesa de café da manhã?


Se as telenovelas vão mal, é sinal de que o Brasil vai mal, eles pensam. Mas nem sempre foi assim. Em um jogo que Vale Tudo, o Brasil foi lindamente retratado em seus piores momentos. Se em 1988 foi possível criar uma obra tão contemporânea, que ainda dialoga  com a sociedade de hoje, criticando as mazelas sem perder a elegância e a qualidade, por que não se pode fazer isso hoje? Acredito que a sociedade mudou para pior. O zeitgeist contemporâneo brasileiro se apoia numa nação que assiste todas as instituições se fragilizarem. Nossa democracia vai mal, nossas florestas, nosso trabalho e nossa cabeça, também. Os ideais que revolucionaram um país fervendo após ditadura e constituinte, que viu o boom da classe média e projeção internacional, não existem mais. Por isso, as obras tomam cuidado com o que abordam e como abordam, se tornando um tedioso retrato de uma tediosa nação, preso às ideias assustadoras de uma classe dominante e atrasada. 


Mas eu ainda quero ver essa Pátria Minha despontar na tela, como sempre fez. Quero que a violência, a desigualdade e a corrupção sejam bem mostradas para que possamos pensar sobre, ter apelo para mobilizar e, quem sabe, mudar. A novela sempre movimentou o país. Não só nos cortes de cabelos das protagonistas, ela realmente trouxe impactos gigantes para a sociedade. Do aumento da doação de medula ao advocacy pelo Estatuto do Idoso. Da luta antiarmamentista à denúncia da violência contra a mulher, tudo isso foi propagado pela novela. Nasceu no Leblon de Maneco, mas reverberou no Brasil comum.


O Brasil cafona, conservador e frustrado tomou conta. Na disputa do Brega e Chique, quem venceu foi o pior. Decisões da alta cúpula da maior emissora do país promovem uma agenda neopentecostal que afasta qualquer resquício de progresso. Sem sexo, sem casal ou beijo LGBTQIA+, sem violência. Tudo vetado, velado, sem sal. O que vende agora é o tradicional, o correto, a moral e os bons costumes. Para agradar um público que não sabe nada além de pregar ódio, leiloou-se a arte. É sempre um TiTiTi ao menor sinal de mudança. Em um país que viu Tieta voltar com seu derrière, ter trama de exaltação ao  agro, com medalhões da arte se submetendo ao tosco, é sinal de retrocesso. Até o bem contra o mal, maior base das produções, se tornou chato, quando um público bobo perdeu a capacidade de compreender dubiedade, camadas de personagens que revelam o cerne da natureza humana. Não se perdoam mais os Sete Pecados. Tudo é chato, polido e, como você deve imaginar, brega. 


Que Rei Sou Eu? Devem se perguntar aqueles no controle das produções. A mercantilização da arte promovida por eles coloca em xeque a nossa cultura e patrimônio. Em um país como o Brasil, onde as problemáticas crescem cada vez mais e de forma mais latente, é necessário compreender ainda mais a função social da novela, que sempre foi não só o entretenimento diário do povo, mas também o canal de entendimento do nosso país. Se acontecia na rua, acontecia na novela; as coisas andavam Lado a Lado. Sem papas na língua e sem medo de escancarar as mazelas do país. A Viagem promovida pelas produções sempre encantou o público. E é justamente isso que não pode ser perdido. 


As obras da teledramaturgia devem seguir a modernidade, tratar de temas atuais, promover a diversidade, mas sem deixar de lado seu cerne como produto social. Não dá mais para ver retrocesso no que deveria avançar. Não é adaptando o que é nosso aos moldes das produções americanas que se conquista mais público. Não funciona, não dá liga. É preciso saber o que deve ser atualizado, revisado e o que deve, de fato, ser mantido para garantir que as obras conversem com os novos tempos, com esse novo Brasil. 


Recentemente, preciso reconhecer, felizmente, um marco histórico: todas as protagonistas das grandes produções são mulheres negras. Finalmente, um pouco mais de verossimilhança. Mas onde elas estão inseridas? Quais histórias elas estão contando? Queremos, sim, mais pessoas pretas assumindo seu papel de destaque, que sempre lhes foi negado na televisão. Afinal, isso é o Brasil. Mas queremos isso em produções que as respeitem, respeitem o público e a história das telenovelas. Chega de Sinhá Moça na tela; é preciso mudar, sim, mas sem esquecer do que faz a novela brasileira ser a novela brasileira: textos bem escritos, cenas bem feitas, que espelham um país de gente que luta cotidianamente frente aos problemas que aqui brotam. Isso é Brasil, isso é novela.


O que não dá, acredito, é pra ficar de Morde e Assopra, promovendo rupturas históricas de um lado e maneirando o tom de outro. A televisão ainda é poderosa no Brasil, as novelas também. Está na hora de usar de novo esse instrumento para combater um país que se afoga em seus problemas e que parece estar longe de encontrar sua Esperança de mudança. Ligar a TV para ver os Laços de Família que nos unem ou as Mulheres Apaixonadas que movem o mundo ainda faz sentido para uma sociedade tão presa na monotonia de um sistema que não nos permite sonhar ou sentir. Sempre foi nisso que a teledramaturgia insistiu: ser, para além de um entretenimento fácil, uma porta para sonhar e pensar de um outro jeito.


Eu não escondi de você, leitor, meu amor pelas novelas. Muito menos a dificuldade que tive para escrever esse texto. Difícil, pois se trata de encarar o Brasil como ele é, entender que estamos chegando a um ponto de não retorno em tantos aspectos da nossa sociedade. Difícil, por assumir o declínio de uma arte que conta tão bem nosso país. Este é um manifesto mais do que uma crítica. É um pedaço de muito pensamento e debate com outros amigos aficionados pela rica história da televisão brasileira. Se você chegou até aqui, te convido a pensar também os rumos que nosso país está tomando. Pensar em como contornar isso, como de fato promover mudança, seja através da velha arte de contar histórias ou de qualquer outra maneira. Afinal, se não conseguirmos fazer isso, será um Deus nos Acuda para essa grande novela que chamamos de Brasil.




Texto: Arthur Quinello Revisão: André Rhinow, Giovana Rodrigues e Laura Freitas Foto de capa: Roque Santeiro- O Globo, divulgação. 



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