o culto à câmera e como criar significado ao caos
- Julia Santos
- 21 de mai.
- 6 min de leitura

Acredito que todo mundo morre de medo de vagar pela vida na apatia. Ser apenas uma das infinitas luzes acesas nas janelas de apartamentos minúsculos em uma cidade grande e opressiva. Acabar consumido pela rotina, esquecer e ser esquecido.
Ainda que você nunca tenha lido ou nem mesmo ouvido falar sobre o absurdismo de Albert Camus, se prestar uma atenção excessiva aos detalhes provavelmente chegará à mesma conclusão do filósofo francês: de que nada faz sentido ou tem razão para existir.
É difícil digerir que os sentimentos mais profundos e as experiências mais marcantes — como o amor e a morte — são completamente aleatórios. A aleatoriedade de tudo é tão absurda que a vida parece um jogo de sorte ou azar. Para Camus, a solução é confrontar o absurdo, ou seja, lidar com a irrelevância da própria existência ao criar um significado particular para o caos. Mas não existe uma solução definitiva. O sentimento de vazio não desaparece simplesmente; ele pode se tornar latente diante do êxtase ou da plenitude — sob as luzes fluorescentes da madrugada ouvindo uma música no talo, ou debaixo do sol depois de um banho de mar.
Alguns afogam o incômodo existencial com trabalho, álcool, drogas, religião, relacionamentos casuais ou um pouco de tudo ao mesmo tempo. São infinitas as possibilidades. Nesse sentido, a arte é um coringa: pode ser o melhor escapismo, ao provocar risadas ou lágrimas no espectador de um filme que, tão compenetrado com o enredo, esquece dos seus próprios motivos para rir ou chorar. Mas também fomenta um exercício de reflexão. O impossível, escultura de bronze da brasileira Maria Martins, é para mim a melhor representação da tensão entre o desejo dos seres humanos de estabelecer uma conexão profunda uns com os outros e o medo violento da vulnerabilidade. De um jeito ou de outro, mesmo que momentaneamente, a arte preenche parte do vazio e torna a vida mais tragável.
A fotografia, principalmente, me provoca uma mistura de crueza e nostalgia diferente de qualquer outro tipo de arte. Ao mesmo tempo que me faz sentir na pele que estou viva, como se uma foto fosse a prova definitiva da minha existência e de tudo aquilo que habita à minha volta, sinto uma saudade estranha do tempo que já passou e continua a passar fora do meu controle. Sabe a sensação de abrir um álbum de família, ver a fachada da casa onde você morava quando era criança e seus amigos de infância de quem você já nem lembra mais o sobrenome?
Além disso, há algo fascinante na perspectiva de congelar o tempo. Percebemos que estamos vivendo os melhores momentos das nossas vidas quando desejamos que os instantes se alonguem até o limite só para observarmos mais um pouco, nem que seja por um milésimo de segundo, antes que o sentimento escape. A foto nos permite eternizar essa sensação fugaz de viver o presente ao máximo. E a câmera é prática. É mais fácil andar por aí com o celular ou uma cybershot do que com um cavalete, uma tela em branco, uma paleta, pincéis e potinhos de tinta, como os impressionistas faziam no século XIX para capturar a “fugacidade da natureza à plein air”.
Mas esse refúgio tem suas armadilhas: com o intuito de eternizar as sensações, podemos nos deparar com o hábito de tirar fotos compulsivamente. Logo na primeira página, Susan Sontag no seu livro Sobre Fotografia escreveu: “[…] o resultado mais extraordinário da arte fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça”. Eu acredito que colecionar o mundo todo dentro da cabeça seja, ao mesmo tempo, o sonho e o pesadelo de um ansioso. Atualmente, talvez o sonho e o pesadelo de todo mundo.
Somos viciados em estímulos, e o ato de tirar fotos só alimenta o nosso consumismo estético. Como resultado, acumulamos uma quantidade exorbitante de poluição mental. As mudanças constantes com as quais nos deparamos no dia a dia — as novas tecnologias, filmes e séries, músicas, guerras, subcelebridades, fofocas, notícias etc. — enlouquecem qualquer um. É mais provável que sejamos consumidos pelo tempo do que capazes de consumir todas as novidades a tempo. Então tiramos fotos do nosso almoço, tiramos fotos na academia, e até quando estamos sozinhos, sem fazer absolutamente nada, porque precisamos congelar o tempo de vez em quando. Precisamos capturar o caos. Eu acredito que seja por conta desse nosso desejo inconsciente de controlar a realidade que tiramos fotos patologicamente. Não estamos todos ansiosos?
Pessoalmente, andar por aí com uma câmera me ajuda a não enlouquecer com a rapidez das coisas, que me causam um sentimento constante de estar ficando para trás. Também me sinto mais sensível aos detalhes — aquelas pequenas coisas que tornam as pessoas humanas e o absurdo, suportável. Recentemente, caminhando com uma amiga pela Avenida Paulista, vimos um buldogue sendo levado pela dona em um carrinho de bebê, um homem de chapéu cantando Céu Azul no violão, um casal andando no mesmo ritmo, colados um no outro como se fossem uma coisa só. Acho que a mera presença da câmera na minha bolsa me fez prestar atenção, estar mais presente, pensando: isso daria uma boa foto?
Ainda em Sobre Fotografia: “Um modo de atestar a experiência, tirar fotos é também uma forma de recusá-la — ao limitar a experiência a uma busca do fotogênico, ao converter a experiência em uma imagem, um suvenir.” Paradoxalmente, se estamos muito preocupados em capturar o instante perfeito, acabamos por esvaziar a experiência. Se acumulamos milhares de fotos no celular sem revisitá-las, essa nuvem de imagens se torna um caleidoscópio ilógico que a nossa memória não consegue reter. Aquelas capturas ficam esquecidas no nosso cartão de memória mental, ocupando o espaço de armazenamento no celular que, ocasionalmente, temos que ampliar para tirar ainda mais fotos — que também não vamos revisitar. É um ciclo vicioso e sem sentido. Se no final tudo vira lixo digital, qual é o significado? E então voltamos a crise existencialista de Camus: agora, a fotografia como alegoria do absurdo.
Camus constrói uma analogia em torno do mito de Sísifo para elucidar sua teoria do absurdo da vida. Sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, apenas para vê-la rolar morro abaixo. Esse trabalho árduo e insignificante era repetido eternamente, simbolizando a irrelevância das ações humanas diante de uma força maior. No caso de Sísifo, o poder dos deuses; no nosso caso, a indiferença do universo quanto à nossa vontade de atribuir um significado à existência. O ato de tirar fotos repetitivamente reflete o nosso esforço constante de eclipsar o vazio inerente à vida — como se milhares de fotos espalhadas pela nuvem pudessem preencher o oco do esquecimento provocado pela passagem do tempo. Produzimos repetitivamente imaginando que, assim como Sísifo, podemos encontrar a felicidade no esforço sem fim.
E podemos. Nos alienamos, nos apaixonamos — a vida tem sentido de vez em quando. Caso contrário, seríamos todos suicidas iminentes. Mas todos passamos por momentos de burnouts e crises existenciais, e às vezes tudo parece demais, ou muito pouco. Nos sentimos saturados da vida, ou simplesmente perdidos, como se deixados à deriva. Por isso é preciso encontrar um equilíbrio. É preciso também observar sem registrar, tolerar o ócio, escutar o silêncio barulhento da cidade mesmo quando todas as luzes já foram apagadas. De vez em quando é importante não ter nada nas mãos. Assim como é essencial compartilhar o silêncio com um amigo, diante do burburinho constante de lugares públicos.
Às vezes sentimos que estamos performando o tempo todo, que não somos pessoas, mas personagens, e que sempre tem alguém assistindo e julgando cada vez que cometemos um erro. Esse “olho mágico” é a nossa consciência, fruto da ansiedade. A câmera é uma lente que expande o olhar da nossa consciência para o invisível: o passado. O objetivo é não esquecer. A memória constrói nosso caráter; é parte intrínseca de quem somos e de quem vamos nos tornar. Ela estreita a nossa conexão com o mundo.
Queremos lembrar dos traços mais específicos no rosto de uma pessoa especial, mesmo muito tempo depois dela estar morta. Guardar um pôr do sol bonito no rolo da câmera do celular, porque a nuance exata das cores do céu naquele final de tarde nunca mais será a mesma. Gostamos de olhar para nossas fotos de bebê, quando ainda não tínhamos consciência nem medo. Queremos lembrar das viagens para a praia, para outros países, para a casa de familiares em datas comemorativas.
Tiramos fotos porque precisamos materializar a realidade para sentirmos que estamos vivos. Mas, mais importante do que isso, tiramos fotos para transformar o amor em memória. É assim que criamos significado para o caos. É assim que toleramos o absurdo. Tentar confrontar a irracionalidade de tudo é fascinante — exatamente porque é assustador.
Autora: Julia Santos
Revisão: Giovana Rodrigues e Isabelle Moreira
Imagem: Pinterest