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O PROJETO DE LEI 504 E A LGBTI+FOBIA

Em mais uma publicação da #ColunaDeEntidades da Gazeta Vargas, o Coletivo GVDelta escreve sobre o Projeto de Lei 504 de 2020, que objetiva a proibição de propagandas que façam alusão a "preferências sexuais e sobre movimentos de diversidade sexual relacionados a crianças" no estado de São Paulo, de autoria da deputada Marta Costa (PSD).

Apesar dos avanços recentes em matéria de diversidade no Brasil, a população LGBTI+ se vê inserida em um contexto de constante vigilância acerca de sua própria existência e liberdade de expressão nos mais variados âmbitos e meios de comunicação. Por diversas vezes, as forças sociais que visam reprimir os movimentos de diversidade sexual têm origens no conservadorismo e na religião, presentes em segmentos da sociedade imbuídos de poderes dentro da máquina do Estado. No entanto, tais poderes não devem se sobrepor ao disposto na Constituição Federal (CF), como é o caso do Projeto de Lei 504/20, de autoria da deputada Marta Costa (PSD), que tem como objetivo proibir a divulgação de propagandas que façam alusão a “preferências sexuais e sobre movimentos de diversidade sexual relacionados a crianças” no estado de São Paulo.


Entretanto, o PL apresenta argumentos obtusos e impeditivos constitucionais. A motivação da proposta cita “danos ao consumidor” e incentivo a práticas danosas, que divergem da matéria em que o PL pretende legislar (propaganda comercial). Adicionalmente, segundo o Art. 22 da CF, inciso XXIX, apenas a União tem competência para legislar sobre propaganda comercial, sendo permitido – conforme o parágrafo único desse mesmo Artigo – que estados também legislem sobre o tema mediante Lei Complementar, inexistente até a presente data. Vale ressaltar que os “danos ao consumidor” dispostos na legislação não podem ser provados, tampouco encontram amparo perante o Código de Defesa do Consumidor (CDC).


Ainda a respeito da inconstitucionalidade do PL, observa-se na jurisprudência que um caso similar do estado de Santa Catarina foi julgado pelo STF no ano 2000 por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2815 – SC). O caso obteve votação unânime da Corte em favor da ação, em que se observou a competência legislativa privativa da União no que tange à propaganda comercial. Assim, com jurisprudência firmada e evidente disposição constitucional ressaltando a incompetência da ALESP para legislar sobre a temática, se valer de “dano ao consumidor” de forma falaciosa tem como objetivo criminalizar a população LGBTI+, seguindo os passos de iniciativas similares que ocorrem ao redor do mundo, em especial no leste europeu¹.


Contudo, para além do conteúdo questionável e explicitamente preconceituoso, surpreende que os gritantes vícios de forma não tenham sido observados na tramitação do referido PL na Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da ALESP. Essa surpresa é dissipada ao verificarmos a composição da referida Comissão e o relator do PL na ocasião, o deputado Carlos Cezar (PSB), criador e membro sonoro da Frente Parlamentar Evangélica, da qual a proponente, Marta Costa (PSD), também faz parte. Além disso, o relator perante três comissões distintas dentro da ALESP, o deputado Gilmaci Santos (Republicanos), é pastor da Igreja Universal do Reino de Deus e votou a favor do projeto em todas as comissões.


Assinado por Gilmaci Santos, o parecer da CCJR não faz observação alguma sobre os evidentes obstáculos formais à aprovação do PL, destacados nos parágrafos anteriores. Também permanecem inobservadas as diversas manifestações contrárias ao PL, advindas de entidades e de instituições da sociedade civil e mobilizadas em grande parte pelo advocacy da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP, que também emitiu Parecer Técnico-Jurídico contrário ao projeto.


Ao longo de sua tramitação ainda inconclusiva, vale ressaltar que o projeto contou com duas emendas. No dia 12 de agosto de 2020, a emenda de nº 1, proposta pela deputada Janaína Paschoal (PSL), visou alterar o termo “preferências sexuais” por “orientação sexual”, além de adicionar “gênero” ao disposto no Art. 1º do PL. As justificativas utilizadas abarcaram o conhecimento amplo de que a terminologia correta e amplamente aceita na atualidade é “orientação sexual”, além de discorrer longamente sobre o processo de hormonização em pessoas trans e o diagnóstico de disforia de gênero em crianças e adolescentes. Entretanto, o PL em si apresenta pouca ou nenhuma relação com a justificativa da deputada, tendo em vista que versa sobre a influência da publicidade comercial sobre crianças e adolescentes.


Já no dia 13 de abril de 2021, o projeto foi proposto para tramitação em urgência, sendo aprovada na mesma data a alteração de regime, em Sessão Extraordinária em Ambiente Virtual da ALESP.


Conforme mencionado anteriormente, ao longo das últimas semanas, observamos a mobilização de empresas, ONGs, associações e entidades da sociedade civil² manifestando-se ao disposto no PL. Desse esforço político surge a emenda nº 2, proposta por uma série de deputados³ em coautoria, que altera a redação do Art. 1º de “gênero e orientação sexual” para “drogas, sexo e violências explícitas”, como forma de retirar o caráter discriminatório à população LGBTI+. A redação da proposta original e sua primeira emenda associam os LGBTI+ a “práticas danosas” e à “influência inadequada”, colocando a identidade de gênero ou orientação sexual dos indivíduos desse grupo sob suspeição ética e moral. Além de inconstitucional, tal concepção também agride a Constituição do Estado de São Paulo em seus Artigos 19 e 24 caput no que se refere às competências da ALESP, em adição à Lei Estadual 10.948/2001, e estabelece penas administrativas a atos de discriminação em decorrência da orientação sexual ou da identidade de gênero.


Por fim, cabe salientar que em âmbito nacional existem PLs similares em tramitação nos estados do Ceará, Paraíba e Espírito Santo. De maneira análoga, no cenário internacional podemos traçar um paralelo com uma lei russa que foi considerada uma afronta a direitos fundamentais pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos⁴. Além disso, há a crescente movimentação de grupos religiosos fundamentalistas no leste europeu, que tentam dar sustentação jurídica a práticas discriminatórias em países como Hungria e Polônia⁵.


Dentre todos os óbices que essa iniciativa já enfrenta graças à mobilização popular contra um retrocesso legislativo, o maior se materializa no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, sacralizado no artigo 1º, inciso III, bem como nos direitos fundamentais que versam os incisos do artigo 5º da Constituição Federal. Tais direitos são reflexos também de todos os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que repudia iniciativas legislativas de teor discriminatório.


Seguindo a máxima de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, frase atribuída a Thomas Jefferson, o Coletivo GV Delta conclama as comunidades geveniana, paulista e brasileira a nos mantermos alertas para o surgimento de dispositivos similares ao PL 504/20. Dessa forma, esperamos que nenhuma população veja elementos de discriminação em legislações nacionais, características contrárias aos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Nosso objetivo final reside na mobilização social em torno de iniciativas de informação, educação e cidadania, para que ações discriminatórias não voltem a ter espaço em um futuro próximo.


Revisão: Bruna Ballestero e Julia Rodrigues

Imagem de capa: Reprodução O Globo


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