MAS QUEM DISSE QUE NÓS QUEREMOS UMA DEMOCRACIA?
- Ornito Vargas
- há 3 dias
- 6 min de leitura
“Mas quem disse que nós queremos uma democracia?”
Uma investigação sobre como os chineses enxergam o seu próprio governo — e por que essa visão desafia as expectativas ocidentais.
I – Relato Pessoal
Em meio a tanta luta pela defesa dos nossos tão amados valores democráticos, conversando com dois chineses, me deparei com uma frase que deveria ser óbvia — mas que acabou me surpreendendo: “Mas quem disse que nós queremos uma democracia?”.
Passeando pelas ruas de Genebra, um bêbado gritando chama a atenção de todos na estação de Traim. Com uma aparência suja e roupas rasgadas, ele anda pela estação falando sozinho e esbarrando nas pessoas. Este autor esperava a chegada do vagão junto a dois amigos chineses. Mesmo juntos, um brasileiro como eu e dois chineses como eles tiveram reações muito diferentes: enquanto eu o ignorei, acostumado com a situação, os dois ficaram inquietos. Conversaram em chinês, se afastaram e procuraram algo no entorno, até que finalmente perguntaram: “Onde está a polícia?”.
Me ocorreu que, quando um bêbado cria desordem em um espaço público, essa é uma pergunta bastante razoável. Muitos minutos depois, os policiais chegaram e apenas afugentaram o bêbado. Os chineses, apesar de muito discretos e educados, visivelmente se indignaram enquanto me perguntavam: “Por que eles não fizeram nada?!”.
Mais tarde, voltamos do passeio e aproveitamos o dormitório de um deles para conversar à noite. Na ocasião, eles aproveitaram para me trazer algumas respostas às impressões que eles sabem que o Ocidente continua a ter do país deles. Não é como se eles não reconhecessem as limitações à liberdade que têm. Ao contrário, eles entendem a falta de liberdade como um custo baixo a se pagar pelo desenvolvimento econômico que têm e pela qualidade dos serviços públicos que recebem: “Nós nunca tínhamos passado por uma situação como aquela. Eu não tenho voto para decidir meu presidente, mas eu me sinto seguro em qualquer estação pública de trem na China”.
Foi aí que veio o choque. A expectativa daqueles chineses com a qualidade da segurança urbana era alta – especialmente quando comparada à de um brasileiro como eu. Além disso, a “democracia de partido único”, tão criticada no Ocidente, acabava por ser, na verdade, valorizada. A eficiência com que um Estado centralizado é capaz de administrar uma população tão numerosa, para eles, não poderia ser alcançada em uma democracia. Segundo eles, os Estados Unidos defendem um governo democrático para que a China se encaixe em um “molde ocidental”. A resposta foi imediata: “Mas quem disse que nós queremos uma democracia?”
II – A Autopercepção Chinesa (Xiudi Zhang)
A opinião daqueles chineses está longe de ser um caso isolado. A professora Xiudi Zhang, autora de China is Good Without Democracy, aponta que uma parte crescente da população – especialmente os jovens das grandes cidades – associam uma democracia menos à participação política e mais à capacidade de entregar crescimento econômico, serviços públicos e estabilidade.
Uma resposta que Xiudi Zhang obteve ao questionar Jie, uma estudante na China, ilustra como parte dos chineses entendem a sua situação política. Jie descreveu a relação indivíduo-Estado como uma elastic jail (“prisão elástica”). Para ela, o governo é elástico porque permite movimento na vida cotidiana quando provê resultados materiais (condições básicas, liberdade econômica, escolhas pessoais), mas continua uma prisão porque impõe quatro paredes firmes: você não pode ameaçar o regime do Partido.
Para essa entrevistada, movimentos sociais ocidentais como o “feminismo radical” e os “protestos ambientais” não fariam sentido na China. Segundo ela, não por falta de mérito das causas, mas porque a luta seria inútil: as instituições são como paredes rígidas, “então qual o ponto em fazer?”. Ou seja, a prisão é elástica para viver, mas rígida para quem tenta subverter a lógica do Estado.
Para a pesquisadora Zhang, existe um acordo implícito entre os chineses, no qual ceder liberdade política é um preço justo para alcançar estabilidade e sucesso econômico. Há, então, uma diferença de valores em relação ao Ocidente. Enquanto os ocidentais tendem a medir um governo justo pelo nível de transparência e de participação política, um chinês pode ver justiça na eficiência dos resultados.
Esses “resultados” se traduzem em três pilares: unidade, serviços públicos e sucesso econômico. A lógica é simples: se o Partido Comunista Chinês (PCC) alimentou 1,4 bilhão de pessoas, melhorou o padrão de vida e os manteve unidos como país, ele é democrático o suficiente porque atendeu às necessidades do povo, independentemente de seus processos eleitorais. O instituto Pew Research Center (2012) mostrou que 82% dos chineses estavam otimistas com o futuro mesmo sem urnas; um índice muito superior ao de democracias ocidentais.
Segundo Zhang, os chineses são expostos, tanto na escola quanto em discursos de propaganda política, à ideia de que um governo “ocidentalizado” (com mais deliberações, transparência e participação) impossibilitaria o Estado de governar 1,4 bilhão de pessoas. Isso porque a centralização do governo provê a velocidade de decisão, a assertividade e a coordenação necessária para isso, segundo os entrevistados. Por isso, muitos não rejeitam a democracia ocidental; só a consideram ineficiente no contexto chinês. Para constatação, ambos os posicionamentos dos chineses entrevistados nesta reportagem e do grupo amostral estudado por Zhang convergiram nesse ponto.
O importante aqui é perceber que a política chinesa per se não é o motivo do “choque cultural”. A questão aqui é que essa autopercepção desafia as expectativas, em parte, pela forma como o Ocidente constrói a China...
III – A percepção do Ocidente sobre a China
A China definida pela Falta
O autor de Orientalismo, Edward Said, explicou que a Europa sempre definiu as sociedades não ocidentais, sobretudo árabes, não pelo que eram, mas pelo que lhes faltava em comparação à Europa (a mesma história, ciência, cultura…). Para os americanos, os chineses assumiram o papel de “Outro”. Em ambos os casos, o chamado “orientalismo” define o estereótipo de diferença e atraso na figura desse “Outro”.
Confucionismo
Arif Dirlik, autor de Chinese History and the Question of Orientalism, revisita Said para falar da China. Segundo ele, esse atraso é associado à ideia errada que os orientalistas construíram ao redor da cultura chinesa e do confucionismo. De forma simples, o confucionismo é uma doutrina milenar que valoriza disciplina, ordem, estudo e respeito hierárquico. Dirlik identificou que o Ocidente passou a tratar esse pilar da cultura chinesa como uma explicação fixa para a China. Os orientalistas, então, ignoram outros fatores (históricos, geográficos...) para diminuir os orientais a “atrasados” confucisionistas. Auto-Orientalização, Novo Confucionismo e o Capitalismo Global
Dirlik também fala que os orientais não foram passivos nesse processo. Há uma “zona de contato” em que chineses assumem essas narrativas, o que ele chamou de auto-orientalização.
Parte da lógica orientalista aparece no discurso nacionalista chinês: alguns negam a democracia ocidental porque “não funcionaria para a China”; ao contrário, dizem que o PCC está tendo sucesso. Quando colocam a China como diferente, mas igualmente bem-sucedida no capitalismo global, o orientalismo assume uma forma ambígua.
Em primeiro lugar, quando essa diferença é ressignificada de motivo do atraso para razão do sucesso, ela passa a servir como mecanismo de resistência à lógica orientalista do Ocidente. Se antes o discurso Ocidental era de que o capitalismo produziria democracias, como explicar a China? O sucesso da China no capitalismo os força a aceitar que o país não pode mais ser julgado atrasado por causa de seus valores.
Então, a China se tornou uma alternativa mal-compreendida à democracia por obter sucesso econômico. Se antes o confucionismo causava atraso, agora o “novo confucionismo” é a explicação limitante para a modernidade. Afinal, o discurso “as coisas dão certo na Ásia porque eles valorizam a educação e respeitam os mais velhos” chegou até ao falatório popular brasileiro, como se a China mal tivesse história ou interesses, apenas valores estáticos milenares.
Em segundo lugar, no entanto, Dirlik observou que tal ressignificação ainda é orientalista. Isso porque ela não contradiz o discurso Ocidental, apenas insere a cultura chinesa como um caminho alternativo para o mesmo fim: o capitalismo global.
A persistência do Orientalismo no pensamento Ocidental
Mesmo com ressignificações (limitantes), a figura do chinês como “outro” persiste no imaginário Ocidental. Talvez seja por isso, em parte, que um brasileiro constantemente exposto a valores ocidentais (eu) tenha fascínio, curiosidade e dificuldade em entender os valores que levam um chinês a ser diferente do Ocidente.
V - Finalização
Mesmo assim, para mim, a conversa com meus amigos chineses revelou que a distância entre as duas visões não está apenas nos regimes políticos, mas nas limitações que meu pensamento ocidentalizado impôs ao entrar em contato com um “outro”. Eu os ouvi com respeito e curiosidade; quando voltei ao Brasil, li Dirlik e Zhang como quem vê algo pela primeira vez. Percebi que a noção de que a China — e o resto do mundo — anseia pelo modelo político ocidental diz mais sobre o Ocidente do que sobre os chineses.
FONTES CONSULTADAS
DIRLIK, A. Chinese history and the question of Orientalism. History and Theory, v. 35, n. 4, p. 96–118, 1996.
SAID, E. W. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ZHANG, X. China is Good Without Democracy. In: ZHANG, X. Chinese International Students and Citizenship: A Case Study in New Zealand. Singapore: Springer, 2020. p. 79–89.



