O RETRATO DE UM PAÍS QUE ESTÁ DEIXANDO DE LER
- Larissa Maria
- há 5 dias
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O primeiro livro com maior número de páginas que li inteiro, ainda criança, foi Meu pé de Laranja Lima, do autor brasileiro José Mauro de Vasconcelos. Li por influência de uma professora, quando estava na quarta série. Foi com ele que descobri que livros poderiam ser divertidos e interessantes, e, de quebra, que me ajudariam a aprender palavras novas que eu não sabia o significado. A leitura abriu caminhos para que eu enxergasse além do que era esperado de mim e adquirisse repertório. Foi por meio dessa experiência que descobri a importância da literatura na vida de um indivíduo.
Livros contêm, cada um à sua maneira, noções de mundo a partir de diferentes perspectivas, organizadas no que chamamos de gêneros literários. Alguns deles tentam, por meio de um trabalho minucioso de análise e pesquisa, explicar fenômenos do mundo; outros fogem de retratar a realidade como ela é. Alguns exploram nuances do mundo real; outros revelam a infinidade de possibilidades que surgem ao unir ficção e realidade. Todos, porém, contêm em si informações, ideias e narrativas que interessarão a um grupo de pessoas, em maior ou menor escala.
A literatura, como apontou Antonio Candido, sociólogo e um dos maiores críticos literários de nosso país, tem uma função humanizadora[1]. Ela proporciona a experiência de enxergar o mundo por lentes diversas e, retalho a retalho, permite-nos vestir a coragem para desempenhar um papel nele. Acompanhando jornadas alheias, por vezes enveredamos por caminhos da nossa própria e, com sorte, saímos transformados.
A leitura é um importante agente na formação da identidade e personalidade. Por isso, é tão preocupante o resultado da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, divulgada no ano passado pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria (IPEC), que demonstrou que, pela primeira vez, no Brasil, o número de pessoas que não leem livros ultrapassou o número de leitores.
A maioria dos não-leitores, segundo a pesquisa, afirma não ter o hábito de leitura por falta de tempo. No entanto, é interessante questionar se a falta de tempo – somada à falta de interesse e paciência para ler – não é, na verdade, um dos sintomas de fenômenos sociais contemporâneos, sobretudo relativos à era digital e à desigualdade socioeconômica em suas diferentes nuances, que envolvem desde o acesso à educação de qualidade até jornadas de trabalho previstas em lei, atualmente em discussão.
Os dados divulgados pela pesquisa demonstram que, quanto maior a escolaridade e a renda dos entrevistados, maior a frequência com que leem e estudam regularmente. Nesse sentido, uma das questões sobre as quais a sociedade brasileira tem se debruçado é a diminuição da qualidade de vida causada por jornadas de trabalho exaustivas, que dificultam a existência para além do trabalho — debate que, no momento, é representado pela escala 6x1.
Tem-se questionado se o discurso empreendedor e meritocrático tem efeitos práticos já que, ainda que haja esforço e dedicação integral ao trabalho por parte dos trabalhadores, na maioria dos casos, os frutos obtidos com a força de trabalho são suficientes apenas para a sobrevivência — ou sequer cobrem os custos necessários para que possam se dedicar a atividades ligadas ao bem-estar, aos estudos e ao desenvolvimento de hábitos ligados à cultura e ao lazer, como é o caso da leitura. Para as mulheres trabalhadoras, o cenário é ainda pior, tendo em vista a dupla jornada de trabalho que assumem: o trabalho formal e o trabalho de cuidado e doméstico, que não é remunerado nem socialmente reconhecido[2].
Além disso, a educação é um fator fundamental para analisar a frequência de leitura no Brasil, uma vez que, ainda segundo a pesquisa, tanto leitores quanto não leitores têm na escola, com os professores, seu primeiro contato e incentivo à prática da leitura. Apesar da importância da educação para o exercício da leitura, os indicadores educacionais demonstram que a educação básica no país continua deficitária, com profissionais desvalorizados, reféns do desmonte em curso que mantém os baixos salários para educadores[3] e o insuficiente investimento em educação[4]. Com a pandemia, esse cenário foi potencializado, o que dificultou significativamente o papel da escola como espaço de desenvolvimento de habilidades de leitura e alfabetização[5].
Sob a perspectiva da tecnologia, a pandemia e o isolamento social fizeram com que a internet passasse a ter papel informativo e de contato com o mundo, o que ocasionou uma perda de espaço da leitura[6]. Ainda que tenha proporcionado uma sensação de proximidade com outras pessoas e o acesso a um conhecimento disponível em milhares de páginas de pesquisa, a conexão constante e urgente ao celular e à internet afetou a capacidade de concentração e de conexão a um conteúdo que dure mais que um vídeo curto ou que tenha mais que 200 caracteres.
Ao unir a precarização do trabalho e da educação a um cenário em que as redes sociais exercem papel formador da personalidade de grande parte das massas, os meios digitais passam a simbolizar um escape dos desafios enfrentados diariamente —, uma maneira fácil, rápida e viciante de fugir de um contexto em que o transporte público é sucateado em regiões periféricas, o salário não cobre uma vida de qualidade, as condições urbanísticas e de habitação não são adequadas e grandes influenciadores digitais passam a ser mediadores das noções que se têm sobre política e sociedade.
O resultado divulgado pela pesquisa é um alerta para os desafios enfrentados em relação ao uso de tecnologias digitais e ao pleno acesso à educação, à cultura, à arte e ao conhecimento. Ignorar esse dado é contribuir para a normalização da existência de uma população que desconhece a riqueza contida nos livros, que foi tão importante para a formação do ser humano e para o exercício da cidadania ao longo da história.
Autoria: Larissa Maria
Revisão: Giovana Rodrigues e Pedro Anelli
Imagem da capa: Pinterest
Referências
[1] CÂNDIDO, Antônio. A literatura e a formação do homem. Remate de Males: Revista do Departamento de Teoria Literária, n. esp., p. 81-89, 1999. Acesso em: 02 jul. 2025.
[2] PINHEIRO, Luana; MEDEIROS, Marcelo; COSTA, Joana; BARBOSA, Ana de Holanda. Gênero é o que importa: determinantes do trabalho doméstico não remunerado no Brasil. Brasília, DF: Ipea, set. 2023.44 p. ISSN 1415-4765. (Texto para Discussão, n. 2920). DOI: http:// dx.doi.org/10.38116/td2920-port.
[3] GOMES, Tamiris. Professores brasileiros têm salário 47% abaixo da média de países desenvolvidos. CNN Brasil, 11 set. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/educacao/professores-brasileiros-tem-salario-47-abaixo-da-media-de-paises-desenvolvidos/. Acesso em: 02 jul. 2025.
[4] ROBICHEZ,Adele Robichez; BOHRER, Larissa. ‘Educação brasileira funciona com metade dos recursos necessários’, diz Daniel Cara. Brasil de Fato, 30 jul. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/06/30/educacao-brasileira-funciona-com-metade-dos-recursos-necessarios-diz-daniel-ca/. Acesso em: 04 jul. 2025.
[5] UENO, Alessandra. Pandemia foi um marco no contexto da alfabetização de crianças no Brasil. Jornal da USP, 15 abr. 2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/pandemia-foi-um-marco-no-contexto-da-alfabetizacao-de-criancas-no-brasil/. Acesso em: 04 jul. 2025.
[6] LOPES. Isabella. Hábito de leitura no Brasil perde espaço para redes sociais e para o ritmo da vida moderna. Jornal da USP, 05 jun. 2025. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/habito-de-leitura-no-brasil-perde-espaco-para-redes-sociais-e-para-o-ritmo-da-vida-moderna/. Acesso em: 04 jul. 2025.