[...] e sobre esta pedra edificarei a minha igreja...
Mateus 16:18
"O Deserto dos Tártaros" é um romance publicado pelo escritor italiano Dino Buzzati em 1940. A obra, contudo, só foi lançada no Brasil em 1984. Aurora Bernardini, professora da USP e responsável pela primeira publicação da obra no país, conta que na época foi uma verdadeira luta encontrar uma editora com interesse em publicá-la. O argumento decisivo que convenceu os editores foi o de que, segundo a professora, "é o livro que Antonio Candido lê todo ano."
Trata-se da história de Giovanni Drogo, um oficial recém formado na Academia Militar que após a graduação foi designado a compor os quadros do forte Bastiani. O forte é uma antiga edificação localizada no norte da província, estabelecendo a fronteira entre o país de Drogo e o Reino do Norte, território dos tártaros. Diante do forte, há um extenso e inóspito deserto rodeado por cadeias de montanhas.
Os soldados com quem Drogo convive alimentam a expectativa de que um dia os tártaros atravessarão o deserto para invadir o país. Esta é a razão que justifica o forte Bastiani: ele é o primeiro bastião na linha de defesa do país. Em síntese, a história do romance é a maneira pela qual Drogo, que inicialmente não queria permanecer no forte, decide por ficar na expectativa de um dia enfrentar os invasores.
Descritas, então, as linhas gerais do romance, gostaria de articular a partir dele algumas reflexões sobre o sentido da vida. Nenhum de nós vive nossas vidas gratuitamente. Todos nós, de algum modo ou de outro, sentimos a necessidade de nos justificarmos enquanto indivíduos: sobre o que fundamos nossas crenças e em nome do que tomamos nossas mais importantes decisões? Justificar nesse sentido se distingue de explicar, que seria apenas a simples descrição dos eventos da minha vida que me levaram onde estou hoje. Já a justificação, além de ter um aspecto prospectivo, confere unidade e sentido às nossas escolhas pregressas. Dessa forma, minha reflexão se concentra na perspectiva de Giovanni Drogo, personagem principal do romance.
Drogo estabeleceu como sentido para sua vida a realização da expectativa de que os tártaros virão e ele estará lá para enfrentá-los: aqui, o sentido da vida é a realização das aspirações do sujeito.
Ao lado do romance, terei como suporte para minhas reflexões a parte I (Identity and the Good) do livro "Sources of the Self" de Charles Taylor. Nessa parte, Taylor argumenta que, entre os elementos que constituem um sujeito (self), há um quadro de sentido (framework) que dará significado às suas aspirações e possibilitará a posição deste sujeito em relação ao que ele considera ser o bem (Good), isto é, o ponto para o qual o sujeito marcha – o que dá sentido a sua vida.
A questão do sentido da vida faz parte daquele conjunto de grandes angústias de que sofre a humanidade. Sofre porque são talvez irrespondíveis, ou porque as respostas que surgem nem sempre são suficientes. No entanto, ninguém é capaz de entregar-se ao acaso e passar a viver sua vida gratuitamente – há em nós a necessidade de preencher esse sentido, há a necessidade de responder essa pergunta. Ou, ao menos, viver como se ela estivesse respondida.
Nesse sentido é que a investigação de Taylor sobre a identidade moderna serve de grande ajuda, pois conseguimos compreender melhor o sujeito na medida em que o autor explora e elucida os elementos que o compõe. Diz o filósofo que para que esse entendimento não seja superficial, é impossível ignorar a ideia de bem (Good), isto é, a concepção da natureza do que é o bem viver. Ele diz preliminarmente que seu trabalho não se conforma em rigor com aquele feito pela filosofia moral nos últimos tempos:
"This moral philosophy has tended to focus on what it is right to do rather than what it is good to be, on defining the content of obligation rather than the nature of the good life¹"
É importante deixar claro que o sentido da vida não é uma questão que Taylor aborda diretamente nessa parte de seu trabalho, mas é possível observá-la em algumas passagens.
Embora não seja a resposta definitiva para essa questão (penso que uma resposta dessa natureza seja impossível), acredito que o romance de Buzzati nos oferece uma ilustração capaz de demonstrar como esse questionamento pode ser satisfeito e apresenta uma resposta com a qual muitos de nós podemos nos identificar. Ela não emerge, portanto, como uma resposta universal, mas sim como um fenômeno subjetivo. Ao analisar a vida de Giovanni Drogo, é possível constatar qual é o sentido da vida que o personagem criou para si mesmo.
Criar aparenta ser um verbo capcioso, pois num primeiro momento a impressão é de que esse sentido foi produzido deliberadamente, como se fosse um processo cuidadoso em que o personagem de plena consciência "escolhe" o que para ele tem valor e quais objetivos perseguir. Na verdade, pretendo usar esse verbo significando que o sentido da vida que o personagem assume não decorre de imposição ou determinação externa, ao menos em sua totalidade: ele emerge do subconsciente de Giovanni Drogo a medida em que permanece no forte Bastiani.
Isto posto, esse sentido não foi criado logo quando Drogo chegou ao forte. O jovem recém-formado, ao passar seus primeiros dias no local, sentiu-se melancólico e decepcionado com o que encontrara. Na verdade, Drogo revela que, inicialmente, gostaria de voltar para casa ou que ao menos fosse designado para outro lugar. Quando escreve uma carta para sua mãe, Drogo não teve coragem de dizer a ela o que realmente sentia.
A verdade era o cansaço da viagem, a opressão dos muros sombrios, o sentir-se completamente só. 'Cheguei esgotado após dois dias de viagem', era o que escreveria, 'e ao chegar soube que, se quisesse, poderia voltar a cidade. O forte é triste, não há povoados por perto, não há nenhuma diversão e nenhuma alegria'. Era o que iria escrever. [...] Ah, fazê-la entender a esqualidez daqueles muros, aquele vago ar de punição e exílio, aqueles homens desconhecidos e absurdos… [...] Não, nem mesmo com a mãe podia ser sincero, nem mesmo a ela podia confessar os obscuros temores que não o deixavam em paz².
Como o personagem foi capaz de tolerar sua permanência no forte por longos anos se sua primeira impressão foi essa descrita acima? Acredito que isso só foi possível graças a ideia de sentido criada por Drogo que justificaria todo seu sacrifício. Ora, numa perspectiva universal³, esta é a forma pela qual os seres humanos enfrentam suas vidas: ninguém efetivamente considera que tudo o que ocorre em sua vida é prazeroso ou satisfatório, pois sempre há aquilo que consideramos ruim, indesejável, enfadonho. Contudo, e é possível observar isso ao longo da história, os seres humanos sempre conceberam quadros de sentido capazes de justificar o sofrimento pelo qual passavam no decorrer de suas vidas. Isto é que permite às pessoas continuarem a viver razoavelmente sem mergulhar em profunda anomia. No contexto em que Drogo se encontra não foi diferente.
De fato é isto o que fez Drogo permanecer no forte: um evento específico, uma experiência futura que no momento em que ocorrer preencherá a totalidade daquilo que criou como sentido para sua existência – a chegada dos tártaros. O que define esse sentido é a característica de expectativa, isto é, de um vir a ser, uma mudança futura de tal magnitude que irá justificar e legitimar todo o sacrifício e renúncia que fizeram Drogo sofrer. E de fato ele sofreu, já que a vida no forte Bastiani era determinada pela ascética disciplina militar:
"Todos lá dentro pareciam ter-se esquecido de que em algum lugar do mundo existiam flores, mulheres sorridentes, casas alegres e hospitaleiras. Tudo ali dentro era uma renúncia, mas para quem, para quê misterioso bem?⁴"
A experiência de Drogo nos primeiros meses no forte foi determinante para o modo em que ele passou a conceber o sentido de sua estadia lá. De alguma maneira, a rotina militar, a preparação das sentinelas e o serviço da guarda alimentaram a expectativa de que os tártaros viriam. Influenciou a ponto de, quando teve a oportunidade de deixar o forte para voltar a cidade, no último momento se recusou a fazê-lo:
Drogo decidiu permanecer, retido por um desejo, mas não apenas por isso: o pensamento heroico talvez não fosse suficiente para tanto. Por ora ele acredita ter feito algo nobre, e de boa-fé se orgulha disso, descobrindo-se melhor do que supunha. [...] Mesmo que tivessem tocado clarins, que fossem ouvidas as canções de guerra, que do Norte chegassem mensagens inquietantes, se fosse somente por isso, Drogo teria igualmente ido embora; mas já havia nele o torpor dos hábitos, a vaidade militar, o amor doméstico pelos muros cotidianos. Quatro meses haviam bastado para amalgamá-lo ao monótono ritmo do serviço⁵.
Um evento específico, a busca pela realização de um projeto individual ou até mesmo transcendente muitas vezes caracteriza a maneira pela qual justificamos nossas vidas. São lugares comuns que essa justificativa seja, por exemplo, conquistar o emprego dos sonhos, a busca pelo poder, pelo conhecimento ou progresso da história ou da sociedade, a revolução, a luta contra determinada forma de opressão, a realização do plano de Deus e assim por diante. Esse tipo de anseio por sentido é reconhecido por Taylor como parte dos elementos que formam um sujeito moderno:
Typically, for contemporaries, the question can arise of the 'worthwhileness' or 'meaningfulness' of one's life, of whether it is (or has been) rich and substantial, or empty and trivial. [...] The aspiration to fullness can be met by building something into one's life, some pattern of higher action, or some meaning; or it can be met by connecting one's life up with some greater reality of story⁶.
Já há elementos suficientes para observar aqui o que Taylor afirma ser o sujeito no espaço moral (the self in moral space). Nesse contexto, o filósofo entende moralidade não como regras e obrigações, mas como um conjunto de proposições que caracterizam a natureza do bem viver. Esse espaço, afirma o autor, confere ao sujeito uma variedade de questões a partir das quais ele conseguirá extrair o significado que as coisas têm para ele juntamente com quadro de sentido incorporado:
"[...] we take as basic that the human agent exists in a space of questions. And these are the questions to which our framework-definitions are answers, providing the horizon within which we know where we stand, and what meaning things have for us.⁷"
É importante a imagem topográfica que Taylor constrói a partir do conceito de espaço moral, pois ela nos permite posicionar o sujeito em relação à concepção que ele possui de bem, isto é, aquilo que ele está a perseguir e que confere sentido àquilo que é buscado. Desse modo, é possível entender que as ações que realizamos ao longo da vida fazem parte de uma cadeia de eventos justificados pelo sentido que esse bem que buscamos confere. É o que Taylor diz quando a vida pode ser entendida como uma busca (quest), e que a compreender também como uma narrativa nos permite observar o modo pelo qual o desdobrar de nossas ações nos posiciona diante daquilo que é buscado.
"To the extent that we move back, we determine what we are by what we have become, by the story of how we got there. Orientation in moral space turns out again to be similar to orientation in physical space. [...] Thus making sense of my present action, when we are not dealing with such trivial questions as where I shall go in the next five minutes but with the issue of my place relative to the good, requires a narrative understanding of my life, as a sense of what I have become which can only be given in a story. And as I project my life forward and endorse the existing direction or give it a new one, I project a future story, not just a state of the momentary future but a bent for my whole life to come.⁸"
Isso nos permite recolocar a narrativa de "O Deserto dos Tártaros" nos seguintes termos: Drogo é um oficial que passará toda a sua vida em busca da realização de uma expectativa que justificará tudo o que renunciou em nome de sua espera, e que essa renúncia só é legítima na medida em que ela confere sentido à sua permanência no forte. Este é o sentido da vida na história de Giovanni Drogo.
Agora, uma vez estabelecido que o que está a conferir sentido para sua vida é um evento futuro, resta saber se este evento de fato ocorre ao longo da história. Mas assim é que se observa o aspecto trágico da vida de Drogo. Ao final da narrativa os tártaros de fato aparecem no horizonte, com seus exércitos marchando em direção ao forte Bastiani, claramente demonstrando sua intenção de invadir o país. Acontece que, Giovanni Drogo, a essa altura do romance, tornou-se um oficial velho, doente, e apesar de ainda estar à espera dos inimigos, percebe que não possui mais forças para lutar.
Olhou pela luneta o triângulo visível de deserto, esperou não enxergar nada, que a estrada estivesse vazia, que não houvesse nenhum sinal de vida; era o que Drogo desejava para si mesmo, após ter consumido a vida à espera do inimigo. [...] Diferente das míseras fileiras de soldados no tempo da demarcação da fronteira, era o exército do Norte, finalmente...⁹
O velho soldado percebe que tudo o que justificou seu longo sacrifício, isto é, a expectativa de combater os inimigos do Norte, no momento em que estava prestes a se realizar, foi de uma só vez reduzida à inutilidade, como se houvesse desperdiçado sua vida inteira. É que como havia se tornado um vetusto oficial de alta patente, uma carruagem foi enviada pelo Estado-Maior do Exército para retirar Drogo do forte e garantir sua segurança diante da ameaça de guerra. Quando soube da notícia:
Uma terrível ira invadiu o peito de Drogo. Ele, que jogara fora as melhores coisas da vida para esperar os inimigos, que há mais de trinta anos se alimentara daquela única fé, era enxotado justo agora que finalmente a guerra chegava? [...]
(Drogo dirigindo-se à um subalterno)
— Há mais de trinta anos estou aqui à espera… Deixei passar muitas oportunidades. Trinta anos são alguma coisa, tudo para esperar os inimigos. Não pode querer que eu parta, não pode querer, tenho o direito de permanecer aqui…¹⁰
Há incorporado no personagem a ideia de que sua expectativa é perfeitamente legítima, de maneira que sua não realização, nesse caso deliberadamente causada, implicaria em profundo sentimento de injustiça. De fato, é dessa injustiça que sente o personagem que se origina o aspecto trágico do romance, pois o leitor também é levado a internalizar a expectativa do personagem e esperar que ela se realize.
A vida e o desfecho da vida de Drogo é uma representação dessa grande angústia do viver humano: como se vive uma vida que exige sentido, expectativas e ambições sabendo que há a possibilidade de se frustrar ao final, ou assim como Drogo, perceber que pode se fazer as apostas erradas e ser tarde demais? Talvez seja impossível fazê-lo de maneira totalmente segura. Não é temerário afirmar que boa parte de nós vive nossas vidas incorporando uma narrativa (ainda que implícita) que confere sentido ao que fazemos e ao que desejamos fazer, sem a qual não conseguiríamos nos entender como indivíduos – sem a qual nossa identidade e individualidade provavelmente não seria possível.
A vida moderna necessita do nosso posicionamento no espaço moral e que incorporemos ao menos algum quadro de sentido. Em síntese, na modernidade, o sujeito humano só pode ser na medida em que essas condições são atendidas, sem as quais ele perde a identidade enquanto sujeito humano de fato. Acredito que o romance "O Deserto dos Tártaros", ao narrar a vida do soldado Giovanni Drogo, é capaz de nos apresentar essa angústia de forma esteticamente bela e representativa, e que analisá-lo na perspectiva de Taylor nos permite esclarecer a condição humana a partir dos elementos que constituem sujeito moderno.
REFERÊNCIAS:
¹ TAYLOR, Charles. Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989. p. 3
² BUZZATI, Dino. O Deserto dos Tártaros. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 36-37
³ É universal uma vez que todos nós buscamos uma resposta, mas também um fenômeno subjetivo na medida em que cada um encontra uma resposta particular para si.
⁴ BUZZATI, Dino. O Deserto dos Tártaros. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 20
⁵ Ibid. p. 56
⁶ Ibid. p. 43
⁷ TAYLOR, Charles. Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989. p. 29
⁸ Ibid. p. 48
⁹ BUZZATI, Dino. O Deserto dos Tártaros. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 160
¹⁰ Ibid. p. 162
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