Quando precisei, o sistema que sempre defendi não me protegeu. Na peça de teatro “Prima Facie”, Débora Falabella vive Tessa, uma advogada penalista bem-sucedida. A partir do modus operandi do Direito, o espetáculo aborda as dificuldades enfrentadas por mulheres vítimas de violência sexual que buscam Justiça. A apresentação se torna ainda mais potente se lembrarmos que as questões por ela expostas fazem parte do cotidiano brasileiro. Ainda em 2024, uma das mais altas cortes do país, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), chegou inclusive a negar a existência de estupro de vulnerável em dois casos de relações sexuais com menores de 14 anos.
“Prima Facie” esteve em cartaz no Teatro Vivo até o início de dezembro e tem nova temporada confirmada em fevereiro de 2025. Anteriormente, já foi exibida no Rio de Janeiro e em Brasília. Nas cidades, duas sessões tiveram debates acerca da violência contra a mulher, contando com a participação de autoridades ilustres, como a ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, e a ex-procuradora geral da República, Raquel Dodge. Em São Paulo, o debate ocorreu em 17 de outubro. A discussão contou com a participação de Débora Falabella; da ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves; da promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Silvia Chakian; e da advogada, Clara Serva. Essa foi a sessão que tive a honra de prestigiar e, por isso, o Gazeta em Cartaz de hoje traz comentários referentes à peça e ao debate mencionado.
Ao longo da obra, Débora Falabella inclui entre as falas de sua própria personagem, dizeres de outras personagens que participam da cena relatada. O monólogo media muito bem os momentos em que são necessários incluir discursos de outros personagens para um melhor desenvolvimento da história. Isso fica evidente ainda nos atos iniciais da peça, nos quais observamos Tessa em uma de suas audiências. A mais marcante, sem dúvidas, é a do interrogatório de Dina. Neste caso, a advogada penalista atua em defesa de um réu acusado de estupro – algo um tanto quanto comum em sua rotina acostumada em atuar em casos de violência sexual.
Acreditando ser apenas uma “operadora do direito” – a qual procura brechas na narrativa da acusação que impedem a aplicação da lei –, Tessa consegue a absolvição de seu cliente após uma esperta e angustiante estratégia de interrogatório da testemunha e vítima, Dina. Nesse momento, é curioso como a advogada tenta justificar para si e para uma amiga seu envolvimento em casos de violência sexual. Em um primeiro momento, Tessa afirma que seu papel não é julgar, mas sim contar uma narrativa. Não cabendo a ela saber se seu cliente é culpado ou inocente. “Quando você julga, você tá fodido!”, ensina a advogada à audiência. Outro motivo, seria a “lei do taxista”. De acordo com Tessa, um penalista não escolhe seus casos. Assim como um táxi, ela somente verifica se tem disponibilidade e vai para onde for o desejo do cliente.
É interessante como a personagem, movida estritamente pela racionalidade, parece criar motivações ideais que a afastem de qualquer auxílio à impunidade de um agressor sexual. Até mesmo diante da força de Dina, ao afirmar que não vai ao tribunal por si, mas para proteger todas as outras mulheres, Tessa parece distanciar-se da questão. Porém, vale ressaltar que em nenhum momento o espetáculo tenta imputar como errado ou antiético a defesa dessa modalidade de réus, a peça compreende a necessidade de uma defesa técnica. Na realidade, o que se discute são os moldes pelos quais esse direito é exercido.
Tal debate, choca-se com a história da penalista após um acontecimento em sua vida pessoal. Durante a peça, Tessa nos apresenta Daniel, um colega de escritório pelo qual a personagem está profundamente interessada. Os advogados começam a sair juntos, fazem sexo no trabalho e, posteriormente, saem para jantar.Nesse dia, depois de algumas bebidas, ambos vão à casa de Tessa, bebem ainda mais e transam. Minutos depois, a advogada começa a passar mal e vai nua ao banheiro vomitar. Muito fatigada pela situação, Daniel a carrega até a cama novamente. Debilitada, Tessa recusa fazer sexo com seu colega mais uma vez, o qual a diz para ficar apenas quieta. Sendo forçada, a penalista pede que ele pare, mas Daniel não a respeita. Nas cenas seguintes, a advogada passa por todas as dores e dificuldades que vítimas de estupro costumam ter.
Tendo sua narrativa questionada por diversas pessoas, Tessa ainda vive um conflito interno. Sua mente aplica em série seu método de interrogatório contra si mesmo. Esses são os principais momentos em que se clarifica a incapacidade do Direito em proteger plenamente as mulheres vítimas de violência sexual. A personagem vê todo o sistema de leis e de Justiça que ela fielmente defendeu durante toda a sua vida ruir. Desde um banho antes do exame de corpo de delito a uma oferta de emprego e conversas no escritório, tudo é usado contra ela no julgamento de Daniel.
“Prima Facie” ainda incorpora o péssimo espírito de “vingança” que muitos espectadores poderiam ter ao ver a obra. Após revelar ser uma advogada ao policial que faz seu boletim de ocorrência, o agente declara, debochando da penalista: “agora você vai precisar da gente!”. O comentário, embora breve, ressalta um triste comportamento social muito comum: a culpabilização de advogados pelos atos de seus clientes. De forma que, como Tessa havia defendido agressores sexuais, seria “merecido” o que ocorreu a ela.
Por isso, mais uma vez, retomo que a demonização da advocacia não é o espírito da peça. A discussão, seguramente, gira em torno de como o Direito é empregado de maneira inversa ao seu fim, afetando até mesmo aqueles que o aplicam no dia a dia. Essa utilização oposta à Justiça, como bem observado pela promotora de Justiça, Silvia Chakian, faz com que, na prática, quem se sente no banco dos réus não sejam os agressores sexuais, mas sim as vítimas.
Em todo o momento, Tessa é revitimizada durante o julgamento. Isso porque, a defesa de Daniel tenta a todo momento descredibilizar o seu testemunho. Busca-se dois meios para tanto: em primeiro lugar, a advogada estaria mentindo em nome de eliminar o réu de uma concorrência por uma oportunidade de emprego; no outro, a penalista teria consentido o sexo, mas apenas estava confusa sobre os fatos da noite devido ao álcool. As duas linhas argumentativas são usadas cotidianamente não apenas no tribunal, mas também nas conversas que temos para desacreditar denúncias de violência sexual. Quantas vezes não se ouviu que uma mulher estaria denunciando um homem apenas para “destruir a carreira dele”? Ou, então, que ela tinha sim consentido e seu comportamento provava isso?
Nessa questão, é importante que entendamos também nosso papel em uma cultura que revitimiza essas mulheres a todo instante. A ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves, aponta para a necessidade de que a sociedade mude para que, assim, o Estado de fato possa ser mais acolhedor a essas vítimas. Sem uma ampla compreensão de como cada um de nós mantém tais estruturas, nada será magicamente mudado.
Retomando o Direito, “Prima Facie” também sustenta a dificuldade de aplicar-se a racionalidade que rege as leis sobre casos de estupro. Em casos como os de Tessa, boa parte, se não todo, do julgamento e das provas circulam apenas na versão de um contra a de outro. E, nesse confronto, busca-se a narrativa que melhor elucidem os fatos. Porém, o que se vê no espetáculo é uma tentativa feroz de desacreditar Tessa por não lembrar de detalhes periféricos da noite. Como em muitos episódios traumáticos, a penalista apresenta dificuldades em recordar-se de pequenos detalhes, mas sem que isso prejudique sua memória do episódio em si. Isto é, não saber exatamente onde estava posicionada a sua mão, não incorre na falta de memória sobre seu consentimento.
Assim, “Prima Facie” chama atenção como a racionalização feita pelos “operadores do direito” resulta em injustiça nesses casos. Especialmente, porque esse processo é todo pensado por homens que não compreendem os processos pelo qual uma vítima de estupro passa após uma violência. Por isso, o espetáculo clama pelo surgimento de uma nova perspectiva do Direito. Nesse sentido, não se pede que todos os princípios e direitos de defesa sejam descartados, mas que se pense em um sistema de Justiça que compreenda os obstáculos impostos às mulheres vítimas de violência sexual.
Outro ponto que chama atenção no espetáculo, é a relação da vítima com seu abusador. Geralmente, cria-se uma imagem do estuprador como um homem desconhecido maldoso e com diversos estereótipos negativos. Contudo, o que se observa na prática não é isso. Dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública afirmam que 84,7% dos agressores são familiares ou conhecidos da vítima. Assim como Tessia, boa parte das mulheres é violentada por pessoas de confiança, das quais não se espera tal perfil. Diante disso, é preciso ressaltar a não existência de um modelo de homem abusador, sendo preciso atentar-se dentro das relações de confiança também. Nisso inclui-se parceiros românticos ou sexuais. Isso porque a existência de um consentimento em outras relações ou anterior a relação não implica que todas as outras relações sexuais sejam consentidas. A promotora Silvia Chakian destaca que o consentimento é um acordo que está constantemente em negociação, não podendo ser presumido: é preciso uma declaração inerrante. Com isso, o fato de Tessa e Daniel terem feito sexo naquela noite não significa que havia permissão para uma segunda relação.
Por fim, gostaria de encerrar trazendo a reflexão que tive na discussão final da peça com as excepcionais debatedoras. Felizmente, tive a oportunidade de perguntá-las qual seria o papel de uma faculdade de Direito diante do exposto na trama de “Prima Facie”. A promotora destacou a importância de que o corpo discente reflita e discuta as questões que perpassam as violências de gênero, como o consentimento. Principalmente, porque serão esses os futuros advogados que irão repetir (ou não) o comportamento que revitimiza e desacredita mulheres nos tribunais.
Penso que esse seja um passo fundamental, é preciso que a perspectiva femininista do Direito também seja explorada na faculdade para que tais problemas não se mantenham. Um direito somente pensado e criado por homens brancos héteros e cisgênero – como tem sido desde o Iluminismo – pouco ou nada protege minorias sociais. Por esse motivo, é preciso superar uma dificuldade histórica. Em resposta a minha questão, a ministra Aparecida Gonçalves salientou a resistência das faculdades de Direito de justamente atualizar seus currículos e abordar essas questões.
Com isso, fica evidente que a mudança de postura no Direito em relação às mulheres depende de uma força que una todos, dos que aplicam a lei aos que estudam e ensinam. E “Prima Facie” é brilhante justamente por explicitar isso em um monólogo.
Autoria: Erick Martins Rosario
Revisão: Artur Santilli
Imagem da Capa: Infoteatro
Comments