Quem consegue regular as redes sociais?
Para tentar responder a essa difícil pergunta, devemos começar no Brasil de 2020, com a história do projeto de lei 2630. O PL das Fake News, como foi apelidado, visava estabelecer uma série de medidas direcionadas a regular a operação de redes sociais – como WhatsApp, TikTok, Twitter, Instagram etc. – que compõem o ambiente virtual em que gastamos boa parte de nossas vidas. No texto do PL, figuravam medidas como a proibição do uso de bots, a responsabilização legal das empresas de tecnologia pelo conteúdo postado e a criação de uma agência reguladora para lidar com a internet [1]. O contexto histórico justificou o projeto, nascido no início do governo de Jair Bolsonaro, que fez uma campanha altamente virtual e se beneficiou pesadamente de fake news escandalosas para mobilizar e radicalizar eleitores. Assim, tanto hoje em dia quanto à época, a preocupação com o peso de notícias falsas nas eleições vindouras é muito viva.
Porém, mesmo com essa preocupação e um debate intenso durante o primeiro semestre de 2023, o PL estagnou e saiu do radar de votações da Câmara [2] em pleno 2024, ano de eleições municipais. Essa situação se deu, principalmente, por duas razões: a enérgica campanha das big techs – como Google e Telegram – contra o projeto e a repulsa tanto da direita bolsonarista quanto da direita mais arrumadinha à palavra “regulação”, o que se traduziu em uma oposição ferrenha ao “PL da Censura” [3]. Entrarei em mais detalhes sobre esses fatores nos parágrafos abaixo, mas, por enquanto, basta saber que o texto agonizou por 4 anos e morreu na praia do Congresso, e hoje em dia as tímidas tentativas de ressuscitá-lo não têm funcionado [4].
Dito isso, viajemos aos Estados Unidos de 2024, agora com a história do projeto de lei HR 7521, consagrado popularmente como TikTok Ban Bill e introduzido à Câmara dos Representantes por congressistas republicanos e democratas. O projeto visa forçar a empresa dona do TikTok, a chinesa ByteDance, a vender toda sua participação no aplicativo em até seis meses, sob pena de banimento da plataforma em caso de violação dessa determinação [5]. Citando a proibição de “Aplicativos controlados por adversários” [6], o texto reflete a preocupação americana em ter uma empresa chinesa com fácil acesso aos dados dos cerca de 170 milhões de estadunidenses usuários do TikTok – ou, pelo menos, reflete a vontade que congressistas americanos têm de demonstrar essa preocupação frente a seus eleitores.
Apresentado no dia 7 de março, o projeto foi aprovado menos de uma semana depois – no dia 13 de março – em uma das votações mais velozes e incontroversas dos últimos tempos: foram 352 votos a favor, contra apenas 65 contra. A única (tentativa de) oposição real ao bill foi uma série de ligações breves e confusas aos gabinetes dos congressistas por parte de jovens e crianças motivadas por uma notificação desesperada do TikTok que convocava usuários para a defesa do app [7]. No caso americano, as big techs e a direita ou ficaram quietinhas, ou apoiaram o projeto.
Imagino que você já deve estar percebendo aonde eu quero chegar com essa comparação. Certamente, seria desejável para os brasileiros, tanto quanto para os americanos, que os ambientes virtuais em que investimos grande parte de nossas vidas contemporâneas – seja em termos de tempo ou recursos financeiros – não sejam uma anarquia sem leis ou regras que assegurem um mínimo nível de segurança aos seus usuários. Mesmo assim, os EUA tiveram facilidade em aprovar uma medida que “censura” uma rede social, enquanto o Brasil sofre para tentar colocar o mínimo de ordem nas plataformas digitais operantes no país. Por quê?
O primeiro ponto é o poder que as big techs têm em nosso dia a dia. Como qualquer firma, as empresas de tecnologia querem maximizar seu lucro, o que fazem com base em um modelo de negócio que coleta a maior quantidade de dados possível de cada usuário e mapeia interesses e perfis. A partir dessas informações, elas vendem ad space em suas plataformas digitais para que outras empresas anunciem os produtos certos para as pessoas certas, isso é, as que vão comprar. Esse ciclo todo é, por sua vez, continuado por algoritmos altamente eficientes em prender nossa atenção, aumentando a chance de que vejamos propagandas feitas sob nossa medida. Aqui, começa a surgir o problema que empodera demais essas empresas, já que elas se tornam detentoras de uma máquina capaz de mapear personalidades e comportamentos de bilhões de pessoas, muitas vezes melhor que elas mesmas. Repare na linguagem: elas são detentoras, e não mestres de toda essa operação, já que são os algoritmos que fazem todo o trabalho de percepção e reconhecimento e, se eles acabarem impulsionando notícias falsas ou informações perigosas no processo, as big techs conseguem se safar da culpa por esses atos.
E fica pior, já que o despreparo de governos nacionais diante dessa mutável realidade deixa o Estado vulnerável ao lobby dessas empresas. Aqui no Brasil, quando o debate sobre o PL se intensificou em 2023, as plataformas empreenderam uma verdadeira campanha contra o projeto, com a Meta e o Google sendo acusados de direcionar usuários que buscavam informações sobre o PL 2630 a resultados críticos à lei [8], além do Telegram ter enviado – por meio de canal oficial – uma mensagem que tentava persuadir as pessoas de que o projeto iria “acabar com a liberdade de expressão” no país [9]. Adicionando-se a essas medidas, o Ministério Público Federal acusou essas empresas de se reunirem com deputados para forçar um voto contra o projeto [10], uma escancarada intervenção na política brasileira.
Enquanto isso, os Estados Unidos têm uma situação um tanto diferente. O sistema político americano é, também, muito vulnerável a lobbies e doações financeiras, mas a diferença é que a maioria dessas poderosas big techs, como a Meta e o Google, são empresas americanas. Logo, no caso do TikTok Ban Bill¸ a pressão do lobby das plataformas digitais é no sentido de incentivar a aprovação do projeto, já que esse forçaria a saída do TikTok do mercado estadunidense ou a venda do app de sucesso – o qual gigantes como o Google estariam em posição privilegiada para comprar [11]. Isso, aliado à vontade de congressistas americanos – de ambos os partidos Republicano e Democrata – quererem demonstrar força diante da China, torna completamente compreensível o fato de que o projeto tenha voado pela Câmara como fez.
No caso brasileiro, deputados bolsonaristas tiveram mais incentivos para ir contra o PL. Com o relator do projeto sendo da base do governo Lula – o deputado federal Orlando Silva, do PCdoB – e as big techs colocando o projeto como o “PL da Censura”, a oposição teve toda razão para tomar o partido das pobres empresas bilionárias e disparar exageros e desonestidades:
Tweet por @nikolas_dm
(Fonte:Twitter) [12]
Na imagem, Nikolas Ferreira, deputado bolsonarista do PL, expõe parte do texto do projeto de lei que veda discriminações de caráter racista, homofóbico e nazista e extrapola uma comparação dessas modalidades de ódio com “ensinamentos bíblicos” e “discordar da homossexualidade”. Não querendo entrar no mérito de que discordar da homossexualidade é literalmente homofobia, não basta muito para entender que não há indicação nenhuma de que a lei permitiria, por exemplo, a censura “ensinamentos bíblicos” sob a perspectiva de discurso de ódio.
Nos Estados Unidos, essa pressão por proteções e vantagens vem de uma comunidade nativa de empresas gigantes de tecnologia e interage com a existência de uma ameaça externa constante, posada pela China e a suposta facilidade com que o governo em Pequim teria de acessar dados da população estadunidense via TikTok [13]. É verdade que as big techs americanas não só também detém um vasto compêndio de informações sobre todo usuário de internet, como utilizam esses dados para favorecer o anunciante que pagar mais caro, mas parece que – para o americano médio – é suficiente não ser associado a governos que usam bandeiras vermelhas e palavras tão assustadoras como “comunismo” e “República Popular”.
O ponto é que congressistas americanos têm bons motivos para ignorar seletivamente essa óbvia violação de princípios supostamente caros ao governo dos Estados Unidos, como o livre-mercado e a liberdade de expressão, enquanto aqui no Brasil, não. Em nossas terras tupiniquins, não temos nem poder econômico suficiente para permitir a existência de big techs nacionais, nem poder político suficiente para ter um inimigo externo para chamar de nosso. Unindo essa configuração ao viralatismo de muitos políticos – principalmente de direita, mas também de esquerda – que parecem achar que o Brasil precisa ser um paraíso desregulamentado para que empresas estrangeiras façam o grande favor de se instalarem no país, temos enfim o cenário do rechaço ao “PL da censura”.
Mas é claro, você já deve ter notado uma aparente pedra no caminho desse texto, que é o fato de que esses dois projetos de lei são diferentes, o americano querendo regular especificamente o TikTok, enquanto o brasileiro é mais amplo e contempla todas as redes sociais. Além disso, a maior motivação do bill é a segurança e defesa nacional dos Estados Unidos, algo que está expresso claramente não só no texto da lei, na já citada preocupação com Aplicativos controlados por adversários, como no discurso de congressistas responsáveis pela aprovação meteórica do projeto [14].
Isso é verdade, mas também é fato que o PL também trata de segurança nacional, ainda que de modo mais indireto. Os algoritmos e dados pessoais contidos em redes sociais já provaram ter impactos decisivos na política não só do Brasil, como também dos EUA. Entre exemplos disso, estão as eleições americanas de 2016 e as brasileiras de 2018, nas quais propagandas políticas personalizadas para as demandas específicas de microgrupos de usuários do Facebook e WhatsApp foram cruciais para a radicalização à direita de milhões de eleitores, o que levou às vitórias de Donald Trump e Jair Bolsonaro [15]. Ou seja, manter certo controle sobre o que essas empresas de tecnologia fazem com os dados da população e garantir alguma accountability sobre notícias falsas nas plataformas digitais é desejável para manter a estabilidade do país. Então, por mais que sejam diferentes em algum nível, os projetos de lei aqui debatidos têm muita semelhança.
Dito tudo isso, posso finalmente responder à pergunta inicial: Quem consegue regular as redes sociais?
Como exposto aqui, acredito que seja uma questão de poder econômico e influência política das big techs, além da posição do país no sistema internacional. Os Estados Unidos conseguem regular as redes sociais, desde que seja uma empresa chinesa que abocanhou uma fatia importante do mercado americano. Já o Brasil não consegue, e o debate político se convulsiona em torno da problemática (aparentemente) tão complicada de que os brasileiros merecem algum cuidado no manuseio dos seus dados em ambientes virtuais.
Mas é possível, agora, posar outra pergunta: Quem precisa regular as redes sociais?
A resposta é, na minha humilde opinião; todo país que se preze nesse nosso terrível e caótico século XXI.
Autoria: Pedro Augusto Castellani Rolim
Revisão: Artur Santili e Laura Freitas
Imagem de capa: Montagem própria [Lula: Reprodução Ricardo Moreira/Getty Images via Exame; Biden: Reprodução Getty Images via BBC.]
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Referências/Fontes:
[1]: HENRIQUE, Layane. PL das Fake News: os 10 pontos principais para entender o projeto de lei. Politize! 3 de maio de 2023. Disponível em: https://www.politize.com.br/pl-das-fake-news/. Acesso em: 16 de março de 2024.
[2]: ROCHA, Marcelo. BRAGON, Ranier. PL das Fake News enfrenta impasse e sai do radar de votações da Câmara. Folha de S. Paulo. São Paulo, SP. 19 de junho de 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/06/pl-das-fake-news-enfrenta-impasse-e-sai-do-radar-de-votacoes-da-camara.shtml#:~:text=Atualmente%2C%20l%C3%ADderes%20partid%C3%A1rios%20afirmaram%20%C3%A0,apoio%20minimamente%20s%C3%B3lida%20na%20C%C3%A2mara. Acesso em: 16 de março de 2024.
[3]: SARDI, Marcio Achilles. Oposição vai combater o chamado PL das fake news, antecipa o deputado Maurício Marcon. Rádio Câmara – Câmara dos Deputados. 5 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/1034751-oposicao-vai-combater-o-chamado-pl-das-fake-news-antecipa-o-deputado-mauricio-marcon/. Acesso em: 16 de março de 2024.
[4]: AZEVEDO, Victoria. Relator do PL das Fake News deve procurar Lira para tratar do andamento do texto. Folha de S. Paulo. São Paulo, SP. 26 de Janeiro de 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2024/01/relator-do-pl-das-fake-news-deve-procurar-lira-para-tratar-do-andamento-do-texto.shtml. Acesso em: 16 de março de 2024.
[5]: MAHESWARI, Sapna. McCABE, David. KARNI, Annie. House Passes Bill to Force TikTok Sale From Chinese Owner or Ban the App. The New York Times, Nova Iorque.13 de Março de 2024. Disponível em: https://www.nytimes.com/2024/03/13/technology/tiktok-ban-house-vote.html. Acesso em: 16 de março de 2024.
[6]: UNITED STATES OF AMERICA. House of Representatives. H. R. 7521, 118th Congress, 2nd Session, March 5, 2024. To protect the national security of the United States from the threat posed by foreign adversary-controlled applications, such as TikTok and any successor application or service and any other application or service developed or provided by ByteDance Ltd. or an entity under the control of ByteDance Ltd. Washington, D.C. Disponível em: https://docs.house.gov/billsthisweek/20240311/HR%207521%20Updated.pdf. Acesso em: 16 de março de 2024.
[7]: FEINER, Lauren. How the House quietly revived the TikTok ban before most of us noticed. The Verge. Washington, D.C. 15 de Março de 2024. Disponível em: https://www.theverge.com/2024/3/15/24102472/house-tiktok-ban-bill-staffers-calls-congress. Acesso em: 16 de março de 2024.
[8]: JUNQUEIRA, Caio. MPF notifica Google e Meta sobre resultados de busca e anúncios contra PL das Fake News. CNN Brasil. São Paulo, SP. 1 de Maio de 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/mpf-notifica-google-e-meta-sobre-resultados-de-busca-e-anuncios-contra-pl-das-fake-news/. Acesso em: 16 de março de 2024.
[9]: REDAÇÃO. Telegram envia mensagem a usuários contra PL das Fake News; veja repercussão. Brasil de Fato. Rio de Janeiro, RJ. 9 de maio de 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/05/09/telegram-envia-mensagem-a-usuarios-contra-pl-das-fake-news-veja-repercussao. Acesso em: 16 de março de 2024.
[10]: JUNQUEIRA, Caio. MPF notifica Google e Meta sobre resultados de busca e anúncios contra PL das Fake News. CNN Brasil. São Paulo, SP. 1 de Maio de 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/mpf-notifica-google-e-meta-sobre-resultados-de-busca-e-anuncios-contra-pl-das-fake-news/. Acesso em: 16 de março de 2024.
[11]: MAHESWARI, Sapna. McCABE. What to Know About the TikTok Bill That the House Passed. The New York Times, Nova Iorque. 13 de Março de 2024. Disponível em: https://www.nytimes.com/2024/03/13/technology/tiktok-ban-law-congress.html. Acesso em: 16 de março de 2024.
[12]: FERREIRA, Nikolas. Um trecho da proposta enviada pelo TSE pra piorar o PL da Censura(...). 25 de Abril de 2023. Twitter: @nikolas_dm. Disponível em: https://twitter.com/nikolas_dm/status/1650957980500652047. Acesso em: 16 de março de 2024.
[13]: MAHESWARI, Sapna. McCABE, David. KARNI, Annie. House Passes Bill to Force TikTok Sale From Chinese Owner or Ban the App. The New York Times, Nova Iorque.13 de Março de 2024. Disponível em: https://www.nytimes.com/2024/03/13/technology/tiktok-ban-house-vote.html. Acesso em: 16 de março de 2024.
[14]: FEINER, Lauren. How the House quietly revived the TikTok ban before most of us noticed. The Verge. Washington, D.C. 15 de Março de 2024. Disponível em: https://www.theverge.com/2024/3/15/24102472/house-tiktok-ban-bill-staffers-calls-congress. Acesso em: 16 de março de 2024.
[15]: BBC News Brasil. Como os dados de milhões de usuários do Facebook foram usados na campanha de Trump. BBC News Brasil. 9 de Abril de 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43705839. Acesso em: 16 de março de 2024;
BARRAGÁN, Almudena. Cinco ‘fake news’ que beneficiaram a candidatura de Bolsonaro. El País. 19 de Outubro de 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_146583.html. Acesso em: Acesso em: 16 de março de 2024.
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