[música para escutar com a leitura: “On the Nature of Daylight”]
Em meio a rajadas de luz e estrondos cataclísmicos, o sibilar do vento anuncia uma nova tempestade ganhando vida pelas proximidades.
Cá estou novamente. Não partirei dessa vez.
Tudo parecia ser tão simples: sorrisos, abraços, beijos, carinho. Onde todas essas promessas foram perdidas? Devo estar cansada. Cansada de sentir o peso de não poder mudar o imutável. As grandes tempestades sempre se fizeram presentes e mais uma está por vir. Queria eu ter sido capaz de montar um abrigo que nos protegesse do dilúvio.
Vocês ainda têm lembranças daquela noite? Nossas risadas tornavam o ambiente mais leve e o badalar do relógio marcava presença como uma companhia indesejada. Estávamos famintos por mais conversas, mais alegria, mais horas na semana; até que fomos descobertos em nosso pequeno refúgio e as flechas cintilantes que rasgavam os céus intensificaram-se, trazendo consigo os tambores da discórdia. Vocês se lembram de como nos despedimos às pressas? Mal pude olhar nos seus olhos e pedir desculpas. Não pude, não deu tempo. Irônico como ele sempre está em falta, o tempo. Sempre o mesmo, mas nunca suficiente. Vocês se foram enquanto permaneci imóvel, mas parte de mim sente que quem partiu fui eu e de alguma forma ainda os encontrarei aguardando-me ao lado do relógio de parede da minha casa, naquela sala onde costumávamos planejar nossas brincadeiras. Não fez falta, apenas queria que tivesse sido diferente.
Sei que a luz do dia já não resplandece sobre nós. Sei também que ela não parece ligar muito para isso, entretanto insisto em perguntar: quando as coisas desandaram? Acerca do começo, reservo poucas palavras: algo tão puro e belo não deveria ser contaminado. Talvez não haja explicação para a neve ser branca, o fogo ser ardido ou mesmo a escuridão ser tão assustadora e enigmática. Talvez você saiba de tudo isso e ache graça na forma como me aborreço pelo rio de hoje não ser o mesmo de ontem; pela maneira como o nascer do Sol ofusca a dança das estrelas, a qual tanto nos atraía. Peço desculpas por pensar em tudo excessivamente, seja sobre um evento sem muito charme que vi esses dias, seja sobre sua reação ao que falei naquela manhã. Peço perdão por viver constantemente no meu mundinho, onde imperfeições existem porque assim queremos e não porque é impossível ter controle sobre tudo. Peço perdão a mim, principalmente, por culpar-me todas as vezes em que o primeiro relâmpago é lançado ao chão e uma fina camada de água o acompanha como um chicote.
Vocês ainda escutam as canções? Aquelas que davam vida aos nossos encontros, fazendo com que o ar à nossa volta se movimentasse como bailarinas em um espetáculo. Elas nunca me agradaram muito, tinha mais prazer em encontrá-los dormindo silenciosamente após uma das inúmeras discussões que costumávamos costurar, as quais não davam a lugar algum. Para falar a verdade, não sinto falta das discussões, ou das conversas, ou das noites acordadas em claro debatendo sobre algo que jamais viria a acontecer. Você sabia que estávamos velhos demais para contos de fadas.
Às vezes, acumulo horas pensando em como as coisas são – coleciono dias fantasiando sobre como poderiam ter sido. Às vezes, vejo-me fazendo tempestade em copo d' água, dando vida a descargas de eletricidade, que assustam e afastam. Às vezes, pego-me vociferando trovoadas quando as palavras já não fazem sentido e sentimentos neblina tomam conta. Às vezes, rendo-me ao passado e suplico uma maneira de adormecer e despertar no ontem, sendo agraciada com uma chance de fazer diferente. Pior do que tudo isso, às vezes flerto com a ideia de que não há nada de errado comigo. Traio meu julgamento padrão e concluo que foi melhor assim – vocês pensam dessa forma. Você acredita nisso. Não sinto saudades: são apenas resquícios de algo que amei algum dia.
De fato, parti, porque foi necessário. Parti, porque as conversas, os abraços, os beijos, os encontros não faziam mais sentido – cabe a nós reconhecermos que a trilha segue em direção ao horizonte mesmo que o nosso limitado percurso tenha chegado ao fim. Parti, porque sentia-me menos só quando estava em minha própria companhia. Não tenho mais ideia de quem sejam, no que acreditam ou quais são as batalhas que guardam no peito. Sei que já não me reconheceriam igualmente. Parti, porque precisei de tempo – sempre o mesmo, mas nunca suficiente – para abraçar a viagem e aprender a dizer adeus, para aprender a gostar dos clarões que estouram na janela e iluminam todos os cantos do meu quarto.
Hoje, escolho ficar. Não partirei dessa vez. Não fugirei da tempestade, porque, afinal, carrego comigo seus raios e trovões.
E sabe de uma coisa?
As cores são tão lindas vistas daqui de dentro.
Autor: Rafael Diz Motooka da Cunha Castro
Revisão: Enrico Recco
Capa: Pinterest (editado pelo autor)
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