"Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer"
A pedra filosofal, António Gedeão
A subjetividade do sonho é observada desde os primórdios da organização social humana, sendo também método de estudo de mentes brilhantes como Freud e Jung para a compreensão da nossa existência. Mas, não apenas durante o sono é que se pode sonhar, assim como já dito por Mário Quintana, “sonhar é acordar-se para dentro” na tentativa de entender o nosso mistério interior.
A temática do sonho é retratada no poema “A Pedra Filosofal” do poeta português António Gedeão (1906 - 1997), publicado em 1956, junto do livro Movimento Perpétuo (recomendo a leitura do poema antes da análise). Sua estrutura rítmica e compassada facilitou a musicalização do poema na década de 1970 por Manuel Freire, que a tornou um hino contra a ditadura salazarista em Portugal.
O poema é composto por quatro estrofes irregulares, com uma alternância de rimas ao longo dos versos, e se baseia principalmente na divisão “abba”. Cada estrofe se inicia com o mesmo verso “Eles não sabem que o sonho”, criando uma sensação circular e construtiva, enquanto o último verso sofre uma pequena mudança: "Eles não sabem, nem sonham”, indicando o encerramento de uma ideia e a conclusão do poema. A estrutura irregular e compassada dita o ritmo pelo qual somos guiados ao longo do texto, levando-nos a transcorrer o processo de evolução da nossa sociedade.
A sua linguagem simples facilita a compreensão do leitor e aumenta o seu contato com o poema. Além disso, uma estrutura repetida para citar as invenções humanas intensifica o ritmo e a importância de cada uma delas. O uso de termos técnicos, históricos e científicos, como “caravela quinhentista”, “cisão do átomo” e “locomotiva” expressam a evolução tecnológica humana ao longo dos séculos, uma vez que o campo semântico completo do poema cria uma sensação de progresso. Um vocabulário mais naturalista (“ribeiro manso” e “pinheiros altos”) na primeira parte do poema cria uma atmosfera tranquila e esperançosa, mostrando a simplicidade por trás do sonho e a naturalidade por trás do ato de sonhar. A ideia de excepcionalidade do sonho é desconstruída, mostrando que sonhar está na nossa natureza e, portanto, o próprio viver já é sonhar.
A temática do sonho é completamente relacionada ao progresso e à evolução humana. Logo no início do poema, o eu lírico afirma: “Eles não sabem que o sonho; é uma constante da vida; tão concreta e definida; como outra coisa qualquer”. A concepção mais comum de sonho como algo excepcional e irreal é substituída por uma ideia atrelada à evolução da espécie humana. Para o eu lírico, a temática do sonho esporádico não tem papel importante, pois o sonho é “uma constante da vida”. A humanidade vive a sonhar com o progresso, com a evolução e com cada conquista nova que nos traz um melhor padrão de vida. A esperança do sonho não é algo passageiro, que surge em momentos difíceis para passar por eles, a esperança é constante e define a nossa evolução.
Durante todo o poema, percebemos a evolução científica, tecnológica e artística de um modo cronológico, em termos e invenções como “vinho”, “pincel”, “vitral” e “televisão”. A forma transcorrida que usa uma mesma estrutura reforça a ideia de que o progresso é constante e contínuo e, ao se basear no sonho, a engrenagem social e científica continua girando. A partir de uma figura de linguagem, a acumulação, o eu lírico aumenta o significado de sonho (“é tela, é cor, é pincel”), atrelando cada invenção humana ao simples ato de sonhar, que, ao acumular diversas inovações e mudanças, mostra toda a sua complexidade oculta.
Na última estrofe, o eu lírico diz que “o sonho comanda a vida; que sempre que um homem sonha; o mundo pula e avança; como bola colorida; entre as mãos de uma criança.”. O sonho comanda a vida, porque a vida é o próprio progresso, a constante mudança e o constante aprendizado. A bola colorida nas mãos de uma criança simboliza toda a simplicidade e a alegria por trás do sonho, da pesquisa e da evolução. O mais complexo avanço tecnológico é tão simples como a bola colorida nas mãos da criança, pois ele se mostra natural ao homem, uma vez que o próprio ato de sonhar, ao ser uma constante da vida, nos levará ao progresso. A esperança é constante e está atrelada ao nosso estilo de vida sonhador, ousado e arriscado que define a existência da espécie humana e que acha, em sua própria tristeza, uma esperança com o sonho do progresso.
O eu lírico nos conforta ao mostrar a mudança da sociedade ao longo dos séculos, apresentando que a constante mais definida de nossas vidas é a própria mudança, impulsionado pelo sonho de se fazer diferente. A vida flui a todo momento, flui como o rio de Heráclito, que nunca é duas vezes o mesmo, e flui, pois queremos que a mudança aconteça. Sabemos que, apesar dos pesares, o nosso sofrimento e o constante peso que é viver conseguem valer a pena por causa da constante alegria que é sonhar.
O modus operandi de sonhar já cria, em sua própria concepção, a necessidade e o anseio pela mudança, e a própria execução de uma mudança para um bom sentido, algum progresso, já veio impulsionada pelo ato de sonhar. Afinal, sonhar, além de ser um ato de esperança, mostra, na mudança, que é um ato de resistência. Ao sonhar, esquecemos de uma rotina burocrática, repetitiva e uníssona e tentamos, ao final de tudo, achar na mudança algum motivo pelo qual valha continuar lutando e pelo qual se valha sonhar.
Link para o poema: https://www.nossapoesia.com/poema/pedra-filosofal-antonio-gedeao/
Autoria: Thomás Furtado Danelon
Revisão: Artur Santilli, Beatriz Nassar e Guilherme Caruso
Imagem de capa: El hombre en el cruce de caminos - Diego Rivera
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