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UM EU PRA CADA LÍNGUA

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A língua é minha pátria, Caetano Veloso


Às vezes sinto que não pertenço a uma língua só. Duas línguas pertencem a mim. Talvez mais. Duas nacionalidades me permeiam, mas ainda encontro uma barreira linguística. 


Nasci falando português, ouvindo um pouco de japonês e aprendendo algum inglês. Quando cresci, decidi fazer aulas de francês e um pouco de espanhol veio naturalmente, como para qualquer brasileiro. Considero-me bilíngue pela fluência, consigo ler, escrever e falar em inglês e português: só. Forçando um pouco posso dizer que sou poliglota, mas normalmente quando digo isso, não me refiro ao japonês. Assim como qualquer pessoa, sou composta de retalhos: cada língua corresponde a uma parte de mim.


Desde que nasci tive contato com o português, fui criada assim pelos meus pais. Essa é minha língua materna e considero-a como primeira língua. Vivia em São Paulo, portanto só ouvia essa língua nas ruas, nos restaurantes e mercados. Estudei em uma escola infantil brasileira e uma escola fundamental brasileira, então minha educação também foi pautada no português: aprendi matemática, ciência, história e geografia nessa língua. Aprendi a escrever redação e tive minhas primeiras leituras em português. Discussões sérias não podem fugir dessa língua. Costumo recorrer a ela para falar dos meus sentimentos mais profundos. 


O inglês me foi introduzido em aulas mais do que qualquer coisa. A mãe de um amigo meu virou minha professora particular, eu sempre amei as aulas porque fazia com meu amigo e ela sabia como fazer dinâmicas divertidas. Em paralelo, sempre gostei de assistir séries e filmes em inglês, treinando expressões mais corriqueiras. Ao longo do tempo fui mudando as legendas do português para o inglês, passei a ler livros e acostumei meu cérebro à essa nova língua. Tinha também as aulas da escola, que apesar da gramática ser básica, me deu espaço para exercitar minha criatividade e treinar um pouco falando com outras pessoas (não minha professora). Uso de vez em quando inconscientemente, uma palavra ou outra rolam da minha boca como se houvesse esquecido minha língua materna. 


“Como fala isso em português mesmo?” Às vezes recebo uma resposta direta e me pergunto como possivelmente esqueci como dizer isso: a palavra como inicialmente aprendi a me expressar. Outras vezes - e é nesse espaço que se compreende como os retalhos me formam - não se encontra uma tradução simples. Mais acima, nesse texto, quis usar o conceito de “stretch”, e no final acabei usando a expressão “forçando”, mas sinto que não passou o exato significado que eu pretendia. Uma palavra que sempre insisto em usar, mesmo tendo tradução em português, é “awkward”, a sonoridade representa mais o seu significado do que simplesmente falar que algo é “constrangedor”.  Pelo menos é isso que sinto.


Obviamente português segue sendo minha língua materna, e por uma aversão ao complexo de vira-lata me forço a falar que estou sobrecarregada e esgotada ao invés de usar o termo “burnout” por exemplo, apesar de não significar exatamente o mesmo. Em algumas palavras me encontro mais no inglês e em outras sinto que o português me representa melhor, é claro, como o conceito de “saudade”. Um mistura de nostalgia, com o sentimento de falta e um aperto no coração, é o amor pelo que está longe: palavra intraduzível.


Ainda há um certo distanciamento quando falo em inglês, talvez uma síndrome de impostor ou uma falta de naturalidade. Minhas amigas falam que parece que eu tenho outra voz ao falar em inglês, e já ouvi de alguns estrangeiros que eu pareço americana (ou melhor, estadunidense) pelo meu sotaque, um elogio que soa em meus ouvidos como uma crítica. Não sei se quero falar sem sotaque e ser mais facilmente entendida, ou carregar em minha fala as origens da minha língua mãe.


Às vezes falo comigo mesma nessa língua estranha, não sei ao certo o porquê, mas sinto que assim o que digo não é tão real. Consigo viver em um mundo de faz de conta ao pronunciar palavras de uma língua que não pertence a mim e que não conhece parte da minha vida. Afirmo com confiança que falo de maneira fluente, mas ainda me sinto distante de mim mesma (pelo menos do meu eu que tem a língua materna como o portguês).


O japonês eu sempre ouvi de canto de ouvido, entendia algumas palavras entre conversas roubadas, aprendi alguns termos que falo quase todos os dias, mas estou longe de conseguir conversar com alguém. Meu avô prefere o japonês ao portugues porque essa é a língua materna dele. Atualmente sei falar o nome de algumas comidas e expressões básicas que você ensinaria à um bebê que descobre o mundo e o próprio corpo. Sei falar 耳 (que se pronuncia como “mimi”) que significa orelha e 鼻 (que se pronuncia “hana”) que é nariz. Entretanto, o kanji (a escrita) ainda não me é familiar.


Não sei sustentar conversa, mas alguns termos me são mais comuns que palavras em protuguês. Antes de dormir, desejo ao meu avô (que chamo de jiji) “oyasumi nasai”, que significa boa noite, e é usada normalmente para pessoas pelas quais você quer demonstrar respeito. Sempre antes de começar a comer falo “itadakimasu” e “gochisousama” ao terminar, mesmo que diga só pra mim mesma. Essa língua está intrinsecamente ligada às minhas origens, me obrigo a saber alguns termos para honrar meu passaporte. 


Não só a língua me permeia, mas a cultura que ela carrega. O respeito aos mais velhos, que vêm atrelado às palavras. A tradição da repetição de hábitos e o tratamento da comida e das refeições.  Uma palavra que, assim como no inglês, não encontra tradução satisfatória no português é “mottainai”, que a princípio significa desperdício de comida, mas não se limita à isso. É uma filosofia de valorização dos recursos e respeito pela sua utilização, mais do que um jeito de repreender um comportamento, mas de lembrar a importância dos alimentos.


Em certo ponto decidi também aprender francês, minha irmã e minha mãe já faziam aulas e eu ansiava por entender suas conversas quando treinavam essa nova língua. A sonoridade era diferente, mas tinham alguns termos que me pareciam familiares. Comecei a fazer aulas e aprendi o básico para me virar, decidi então ir para a França fazer um intercâmbio e percebi como meu inglês acabava sendo mais útil do que um francês básico. Conseguia sobreviver usando um pouco de sinais e mímicas, mas era impossível manter uma conversa interessante. No meio dessa experiência, eu me machuquei e precisei ir para o hospital. Nesse momento, entendi o porquê português é minha língua “principal”: tive dificuldades para descrever meus sintomas nessa língua estranha e precisei ligar para casa para contar o quanto eu sofria – nem o inglês nem o francês me bastavam para isso.


O espanhol eu nunca tive aula, mas mesmo assim sei me virar. Sinto que honro minhas origens latinas quando estou fora do país e decido improvisar um portunhol ao invés de recorrer ao inglês quando falo com hispanohablantes. Por saber falar “espanhol” me sinto não só brasileira, mas latina. É difícil que eu recorra a palavras dessa língua pois meu vocabulário é bem limitado, mas ainda sim representa uma parte de mim, que extrapola o meu eu falante de português.


Sou uma composição de cada uma dessas línguas. Sou cada uma das versões que formam a minha personalidade e que se perdem em si mesmas. Sou uma colcha de retalhos: cada tecido carrega o peso de uma língua inteira, com milhares de palavras e todos os seus significados, únicos.


Autoria: Elis Montenegro Suzuki

Revisão: Ana Clara Jabur

Imagem de capa: Pinterest

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