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A




Eu não consigo pontuar o exato momento em que eu conheci a A. Ela está na minha vida desde que eu me conheço por gente: até hoje ela é minha companheira número 1. No meu primeiro dia de aula do primeiro ano ela estava lá, entrando comigo na escola. “Entra com o pé direito, Lu, se não você vai ter má sorte”. Ela sempre se preocupou comigo. Nos momentos mais marcantes da minha infância, ela estava lá. Quando vinham mexer comigo na escola ela olhava no meu olho e sussurrava “Não responda”. Quando eu me perdi dos meus pais na Livraria Cultura, ela me encontrou quase de imediato. Por mais que no acampamento do clube os chalés fossem separados em meninos e meninas, ela fazia questão de me visitar, porque sabia que eu me sentiria sozinho.


Eu e a A éramos tão próximos que, muitas vezes, ela ia aos almoços da minha família. Ela se sentava ao meu lado na mesa dos homens, com meus tios e primos. Ela era praticamente uma irmã. Compartilhamos memórias e experiências e conversávamos por horas a fio. Os medos dela gradualmente se tornaram os meus, eu tomei as suas preocupações como minhas. Havia momentos em que sentia que estávamos nos tornando a mesma pessoa.


Quando éramos pequenos, a A era magra, pálida, de cabelos pretos cobrindo seu rosto e tinha um olhar hipnotizante. De repente, a A cresceu, ficou forte, alta e confiante.


Quando entramos no oitavo ano, as coisas mudaram. Por mais que fôssemos grudados, inseparáveis, passei a sentir que ela não queria o meu bem. Quando os meninos vinham fazer piadas homofóbicas comigo, ela apontava para mim, para dentro de mim. Quando eu estava inseguro, ela abria um sorriso. Quando eu me sentia feio, ela concordava. Quando minhas amigas saíam sem mim, ela virava e dizia: “Imagina se elas estiverem falando mal de você”.


Eu queria me afastar da A, mas ela estava inserida na minha vida. Meus pais a amavam, minha irmã também. Ela era minha vizinha de porta. E, mais do que tudo, eu dependia dela.


Ano passado, quando comecei a faculdade, fomos a uma festa. Ela não desgrudava de mim. Eu bebi bastante e consegui fugir um pouco dela. Na volta, de Uber, ela me encarou e falou “Você estava ridículo”. Eu fiquei em choque e perguntei por que ela falaria isso. Ela não respondeu mais nada. Foi o caminho inteiro em silêncio, olhando pela janela.


No dia seguinte, acordei e ela estava sentada na minha cama.


“Deixa eu dormir, A!”

“Eu não vou embora.”

“Por que isso? A gente se vê todos os dias.”

“Quero falar sobre ontem.”

“O quê?”

“Você só passou vergonha, perdeu todas as suas amizades.”

“Como assim, eu só me diverti!”

“Foi feio, ninguém gosta mais de você.”

“Você não gosta de mim?”

“Deixa de ser bobo! Sou sua melhor amiga.”


Ela me abraçou. Passei o dia com ela, me sentindo mal, me sentindo só. Quando ela foi embora de casa, liguei para minha amiga Maria.


“Hello!”

“Eu estou me sentindo péssimo.”

“Por que?”

“A A disse que eu passei muita vergonha ontem.”

“Deixa de ser doido! Você estava normal, super divertido!”

“É sério?”

“Claro! A A distorce as coisas. Eu sempre te falo que eu não vou com a cara dela.”


Eu decidi dar um gelo na A por uns dias — sempre que eu estava com ela, me sentia mal comigo mesmo. Um dia ela tocou a campainha em casa e eu não respondi. Ela me mandou uma mensagem: "Tá me ignorando?”. Eu respondi, “Não. Só estou dando um tempo”. “De mim? Você nunca deu um tempo de mim”. Eu desliguei o celular e fui dormir cedo. Eu dormi bem, me senti leve longe da A.


Eu acordei com alguém batendo na porta do meu quarto. Batiam baixo, quase silencioso, com um ritmo constante. “Toc ... toc ... toc”.


Eu abri a porta, mas não tinha ninguém. Só uma folha, com uma mensagem em vermelho:


Ninguém te ama.

Ninguém te amou.

Ninguém vai te amar.


Ass.: a sua melhor amiga, a Ansiedade







Autoria: Luís de Paula Eduardo


Revisão: Luiza Parisi, Gabriela Veit, Anna Cecília Serrano


Imagem de Capa: Pinterest







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