ANATOMIA DE UM CORPO EM COLAPSO
- Sarah Barros
- há 5 dias
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Me sinto uma jóia mal colocada em um estúdio de péssima qualidade, cujo dono do corpo conduz inúmeras tentativas de expulsar a qualquer custo. Me sinto um antígeno que corre pela corrente sanguínea, inabalável na quantidade de mal que tem a oferecer. Me sinto a nicotina do cigarro quando ela entra em meus pulmões e danifica meus pneumócitos. Me sinto nas unhas que roo até meus dedos serem tingidos de um carmim vivo. Me sinto nas lágrimas que encharcam meu corpo quando percebo que é impossível escapar da engrenagem viva que mantém meus órgãos pulsantes. Então eu a danifico. De novo e incessantemente. Bebo o suficiente buscando que minha força vital também escoe pelo vaso sanitário. Ela não escoa. Os dias são os mesmos.
Ainda acordo pontualmente às 6, entro no ônibus com a magnificência de quem já repetiu o mesmo movimento mil vezes e tento controlar a angústia que grita dentro de mim em vozes incessantes. Elas não se calam. São lembretes constantes de que os nove meses no ventre de minha mãe foram os únicos que consegui concluir com alguma proeza. Depois do nascimento, tudo veio – ao menos, é o que eu achava. Em doses genéricas de afeto, formularam-se os primeiros pensamentos: “fome”, “sono”, “mãe”. Fui criada numa família amável, com uma mãe de olhos carinhosos, um irmão-guia e um pai rocha – mas que desaguava em rios quando me via chorar. Tive uma infância perfeitamente normal, como as outras. Fui criada em meio a carinhos constantes, como muitos. Mas, com o tempo, senti-me diferente.
Conforme o passar inescapável dos dias, os carinhos já não penetravam tão fundo. O amor já não me era sentido na corrente sanguínea com a mesma profundidade das agulhas médicas. Minha mãe já não tinha todas as respostas. O mundo era o mesmo? Era, era sim. Ou mesmo que não o fosse, na minha visão era. Então só havia de ser eu. Alguma composição química maligna me atingiu com a força de um campo eletromagnético. Não me engano, nem busco te enganar: ainda era capaz de ser feliz, mas era atingida com uma certa tristeza aguda de maneira gradual. As vozes do “devo” e “não devo” surgiram aqui, provavelmente, mais como um sussurro do que qualquer outra coisa.
Não consigo apontar com exatidão em qual momento as falas deixaram de ser um ruído distante e passaram a amaldiçoar meus dias a cada segundo vivido. Só sei que aconteceu. Só sei que agora penso três vezes antes de proferir qualquer sentença, que há dias que sou abraçada pelos lençois como se fôssemos ìmãs opostos e que sou incapaz de dar qualquer passo sozinha, tal como um recém-nascido. Nunca soube delinear tais sentimentos negativos, nem sequer nomeá-los, na esperança fajuta de que sumiriam tal qual como o vieram: num piscar de olhos. Esse é o tipo de ingenuidade corrosiva que te queima como soda cáustica. É a ignorância que você acredita te trazer paz. É a alienação auto-induzida que não te acalenta, mas sim te conduz ao abismo eterno. Ao ignorá-las, as feridas abertas que ninguém via não fecharam. Na verdade, se abriram tanto que poderiam qualificar uma fissura geológica capaz de engolir cidades inteiras. Me engoliram toda.
Consultas, psiquiatras, psicólogos e todos os tipos inimagináveis de suposições médicas. Foi nesse momento que ironizei: não havia sido sublime nem no útero, nem sequer na ideia do que eu viria a ser hoje. Desaguei rios, deixei-me afogar no pensamento. “Desequilibrada”. De maneira literal. Desequilíbrios de neurotransmissores impediam o pleno funcionamento do sistema, dos nervos, das respostas, de mim. Curioso, há uns quatrocentos anos poderia ter sido queimada em um episódio de mania acusada de histeria, mas qual a diferença se ainda hoje me sinto queimando por dentro?
Em meio a toda essa combustão silenciosa, não existe um final feliz. Pílulas, receituários ou consultas constantes não ajudam a apagar o incêndio que ninguém mais vê. Carrego em mim um coração descompassado com o desejo do cérebro de tender a inexistência. Enxergo que não há glória no sofrimento, mas talvez haja resistência em permanecer – mesmo que cambaleante, mesmo que entre ruínas. E por mais que doa, por mais que meu corpo resista às minhas constantes investidas de parar com essa engrenagem viva, não há o que mais fazer: ainda estou aqui, inegavelmente pulsante.
Autoria: Sarah Isabelly Barros da Costa
Revisão: Ana Clara Jabur
Imagem da capa: Pinterest







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