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DIAS PERFEITOS (E SUA DISTÂNCIA GRADUAL)


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Tenho o hábito de perguntar às pessoas o que seria um dia perfeito para elas. A maioria não sabe responder e, em seguida, devolve a pergunta. Então, compartilho minha concepção desse dia e minha fala é sempre a mesma: um dia ensolarado, uma caminhada leve, raios ultravioletas ao som de The Beach Boys, uma tarde inteira de leitura entre os milhares de livros que ainda quero conhecer. À noite, janto com minha família ou amigos. Ao final, assisto a um filme  talvez O Show de Truman em casa, talvez Veludo Azul com a Kyra no Sesc e converso sobre ele. É claro que o dia não se resume apenas a isso, mas essa é sua essência, um dia calmo, no qual tenho todo o tempo do mundo para me aprofundar nos meus interesses. Eu diria que o principal é o tempo. Segundos passam como horas, da melhor forma possível, para, ao final, tudo acabar rápido demais e me deixar com vontade de repetir o mesmo ciclo, quase como um vício. Eu viveria assim facilmente.


Se antes os dias pareciam infinitos, agora percebo que o tempo é mais escasso do que minha memória gostaria de acreditar. Nossos tempos, de alguma forma, diminuem à medida que crescemos. Digo isso porque existem o tempo do corpo, orgânico, e o tempo que criamos, o das metas, dos prazos, das obrigações. O primeiro obedece à natureza, enquanto o segundo, à pressa. E é sobre esses dois tempos que falo: o biológico e o social. Somos lembrados constantemente do envelhecimento durante todas as nossas vidas. O corpo age como um relógio, e seus ponteiros, rugas, fios de cabelo brancos, marcam a passagem de algo que não podemos deter, a passagem do tempo biológico. Já o tempo social passa da mesma forma, mas é muito menos perceptível. Ele não se revela no espelho, mas nas horas roubadas pelas obrigações, nas mensagens nunca respondidas, nas pausas que deixamos de fazer. É o tempo tomado pelas exigências externas que silenciosamente substitui o tempo que antes era nosso. Diferentemente do biológico, que nos é imposto pela natureza, o social é um tempo inventado, cultivado por nós mesmos, e talvez por isso seja o mais cruel, porque acreditamos que ainda temos controle sobre ele.


Para minha infelicidade, noto que, com o passar do tempo, meus “dias perfeitos” ficam cada vez mais distantes. Sinto que o tempo está acabando, que estou em uma constante luta contra ele. Talvez o mais angustiante seja perceber que o tempo social corre mais rápido do que o biológico. É como se a vida exigisse que eu envelhecesse antes da hora. De certa forma, é ridículo pensar que “meu tempo está acabando”. Ora, sou uma jovem de 19 anos, não deveria temer o tempo. Ainda assim, é minha sensação. Acho aterrorizante imaginar que, com o futuro à frente, minhas obrigações só aumentem enquanto meus interesses perdem minha atenção. Às vezes penso no homem do subsolo, de Dostoiévski lúcido demais para se conformar, mas impotente diante da própria consciência. Há algo de cruel em perceber o absurdo do mundo e ainda assim precisar viver nessa realidade, como se o simples ato de compreender já fosse uma forma de sofrimento. Essa lucidez é insuportável, enxergar a perda do próprio tempo e, mesmo assim, seguir cumprindo tarefas, sorrindo, vivendo como se nada estivesse errado.


Apesar de a lucidez sem a capacidade de mudança não me satisfazer, o que me aterroriza ainda mais é a possibilidade oposta, a de deixar de perceber. Imaginar que um dia essa inquietação se silencie dentro de mim, que eu me conforme com a pressa, com as obrigações, com a substituição gradual dos meus desejos por deveres. Esse seria o verdadeiro fim — não o esgotamento do tempo, mas a morte lenta da consciência, o apagamento daquilo que em mim ainda resiste.


Essa percepção da perda gradual do tempo encontra um paralelo óbvio na literatura. Em A Morte de Ivan Ilitch, Tolstói apresenta a história de um homem, Ivan, que cumpriu todas as expectativas sociais, construiu uma carreira, uma família e uma vida aparentemente respeitável. No entanto, ao se ver diante da morte, percebeu ter desperdiçado sua existência em convenções. A verdadeira dor não era a proximidade do fim, mas a consciência tardia de que nunca realmente havia vivido. Quando li esse livro, confesso que me apavorei. E se eu acabar exatamente como Ivan? E se meu último suspiro for um arrependimento, pois não vivi a vida ao máximo? Perceba, não acho que devemos simplesmente ignorar nossas obrigações, mas sim não deixar que elas nos consumam, nos corrompam.


Até agora, não encontrei uma solução definitiva para esse problema. Alguns diriam que o equilíbrio seria uma opção viver de forma medida, distribuindo tempo entre obrigações e prazeres. Por mais que isso dê conta de grande parte do problema, até que ponto ele realmente nos salva? Alcançar esse equilíbrio futuro exige sacrifícios no presente, como abdicar de experiências intensas, adiar desejos, contornar paixões. E, mesmo assim, não há garantia de sucesso. A vida pode escapar de nossas mãos antes que consigamos ajustá-la perfeitamente. Pergunto-me, então: estamos dispostos a trocar a intensidade do agora por uma promessa incerta de futuro? Por agora, abstenho-me dessa resposta.


Em vez de soluções definitivas, busco valorizar cada vez mais o meu tempo social. Cada caminhada, cada leitura, cada filme, cada conversa, cada pequena troca de ideias se torna cada vez mais preciosa. Agora, tenho cada vez mais consciência do que faço e da intensidade de meus atos. Tento capturar cada momento como este da forma mais precisa possível, para que meus “dias perfeitos” não sumam tão repentinamente e eu não acabe como Ivan Ilitch.


Autora: Lara Celani

Revisão: Ana Carolina Clauss

Imagem:  Pinterest


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2 comentários


paulocelani
há 3 dias

Excelente!

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meylan
há 3 dias

Espetáculo

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