Belchior é um nome carregado de significados. Acredito, caro leitor, que seria uma tarefa ingrata e custosa tentar definir precisamente quem foi Belchior – por isso, irei me abster desse trabalho. Ainda assim, posso afirmar sem receios que ele foi um flâneur em meio ao Brasil dos anos de chumbo. Como o próprio cantor espirituosamente afirmava, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foi – e ainda é – um dos maiores nomes da música popular brasileira.
Para além de um gosto pessoal pela obra de Belchior, escrevo este texto por estarmos em um momento oportuno: neste mês, o segundo álbum de estúdio de Belchior, Alucinação, completa 47 anos. O disco – ouso dizer – é o mais importante trabalho da carreira de Belchior e, quiçá, um dos mais importantes da história da música brasileira. Diversas faixas do álbum, como Velha Roupa Colorida e Como Nossos Pais, se tornaram clássicos incontestáveis e algumas delas foram regravadas por grandes nomes como Elis Regina, Maria Bethânia e Ney Matogrosso. Em 2019, o rapper Emicida utilizou um sample de Sujeito de Sorte na faixa título do álbum AmarElo – o que mostra, certamente, a inexorável relevância artística do cantor cearense.
Inegavelmente, o estilo de Belchior era único: em Alucinação, nota-se influências de rock, blues, folk e alguns ritmos do nordeste brasileiro. Não é incomum uma comparação entre o cantor brasileiro e Bob Dylan, tanto pelas canções “narrativas” como pelos posicionamentos de contracultura marcantes na obra de ambos os compositores. Acredito que a música Fotografia 3x4 sintetize bem essa comparação. A música, penúltima faixa do lado B do disco, tem um caráter autobiográfico: Belchior retrata sua saída de Sobral rumo ao Sudeste, assinalando todos os meandros e dificuldades encontradas na travessia. Com efeito, a hostilidade das grandes cidades, especialmente com migrantes, impactou diretamente na forma como o cantor retratou o cotidiano urbano. O desencantamento de Belchior é observado na referência ao tropicalismo: no verso “Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua”. Nele, percebe-se, intrinsecamente, uma menção ao movimento cultural encabeçado por Caetano como algo já ultrapassado. A apatia frente aos acontecimentos diários é sobretudo abordada em Caso Comum de Trânsito, música presente no disco Coração Selvagem, lançado em 1977.
Como o compositor adverte, o disco é um “delírio com coisas reais”. Ainda que pareça contraintuitivo, Alucinação trata da realidade, do cotidiano. Belchior acreditava na arte como um mecanismo de denúncia e transmissão da realidade. Há algum tempo atrás, li um trecho de uma entrevista, na qual, com uma certa destreza, Belchior consegue aproximar esses signos aparentemente antitéticos. Durante a divulgação de seu álbum, o cantor afirmou para a revista Pop: "viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto". A faixa título deixa isso claro: ainda que seja repleta de sofrimento, há de se entender todos os pormenores da realidade. O tom está longe de ser desesperançoso, a música evidencia que um delírio fundamentado na “experiência com coisas reais” nos exime da estagnação sonhadora. Afinal, apenas ao nos pautarmos pela realidade, podemos atuar pela sua modificação.
Com efeito, ao tratar da realidade, Belchior evidencia suas contradições. Afirmei que Belchior era um flâneur no sentido estrito da palavra, isto é, um observador e analista da vida rotineira e ordinária. De fato, seu dom era escancarar o cotidiano, trazer a arte para a rua. De um certo modo, Belchior representa os princípios baudelairianos: mostrar a realidade pela ótica de quem a vivenciou. É possível, leitor, que uma perspectiva sem idealismos seja taxada como conformista. Contudo, a proposta de Belchior nada tem de inativa: afirmo novamente que, para ele, compreender a realidade era uma condição essencial para alterá-la. Parte desse esforço de compreensão passa pelo engajamento na dinâmica política e social. Decerto, o disco traz questões políticas à tona e, ao mostrar a realidade, evidencia que “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
A pretensão de Belchior era a mudança. Ainda que algumas canções pareçam desencantadas com as contradições sociais – Como Nossos Pais, por exemplo –, muitas tratavam esperançosamente do futuro e eram gritos claros contra o regime militar – tal como Velha Roupa Colorida e Como o Diabo Gosta. Essa postura, decerto cambaleante, na prática refletia o sentimento de toda uma geração. Essa sensação foi precisamente ilustrada por João Bosco e Aldir Blanc na canção O Bêbado e o Equilibrista. Juntamente a esses compositores, Belchior fora enormemente influenciado pelas fervorosas manifestações estudantis de maio de 68 e, apesar de um endurecimento cada vez maior do regime militar – iniciado no governo de Costa e Silva –, ainda mantinha o desejo por mudanças concretas e reais – o qual era a “alucinação” do cantor.
Dificilmente conseguiria resumir as ideias e dimensões reflexivas que transpassavam pela cabeça de uma figura tão complexa como Belchior. No entanto, a alucinação proposta pelo compositor tem um lema central claro dentro da obra: “amar e mudar as coisas”. Inegavelmente, ele olhava com entusiasmo para a vida cotidiana e seus dois álbuns seguintes – Coração Selvagem e 2 é Demais – confirmam isso. Tanto eles como Alucinação são pautados nas ideias de Baudelaire, uma vez que conseguem aproximar a rua da arte. Ademais, a ideia da mudança pautada na realidade estabelece, a meu ver, uma filosofia atemporal. Seja pela sua análise crítica da realidade urbana brasileira ou pela atemporalidade de Como Nossos Pais, Belchior marcou a música brasileira com uma discografia ao mesmo tempo refinada musicalmente e pautada no olhar para o cotidiano social e político.
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Autoria: Giovanni Tortorella
Revisão: Enrico Recco, André Rhinow e Anna Cecília Serrano
Imagem da capa: Foto de Belchior retirada de matéria da Folha de São Paulo
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