A REPRODUÇÃO CULTURAL E O ESGOTAMENTO DA IMAGINAÇÃO
- Lara Celani
- há 22 horas
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Atualizado: há 12 horas

Desde sempre, o ser humano se inspira no que o cerca. Ao revisitar a história, é possível perceber que o Renascimento reconstruiu a cultura clássica, enquanto o Romantismo surgiu como resposta ao pensamento iluminista. Em diferentes eixos, como na literatura, no cinema, na moda e em muitos outros, a arte sempre se alimentou do que veio antes, reinterpretando o passado e transformando-o em novidade. A cultura é, em sua essência, um diálogo contínuo, no qual tudo conversa entre si. Épocas se espelham, ideias retornam em novas formas. E não é apenas a arte que se constrói desse modo, mas os próprios indivíduos também se moldam a partir do que observam, seja no passado ou no presente, nas imagens que consomem diariamente. Por muito tempo, esse movimento funcionou como impulso criativo: da influência nasciam novas expressões. Hoje, porém, a conversa parece ter perdido parte de sua vitalidade. O diálogo, antes fonte de invenção e inovação, tem cedido lugar à repetição.
Atualmente, a sociedade se encontra presa em um ciclo de retornos, especialmente perceptível na produção cultural. A reprodução incessante de obras consagradas tornou-se uma fórmula segura de sucesso. Basta entrar em uma sala de cinema para perceber que sempre há um spin-off de alguma franquia aclamada. Os live actions da Disney recontam histórias já conhecidas, a Marvel continua lançando séries de personagens já existentes, Toy Story anuncia uma quinta continuação, e até Harry Potter terá um reboot antes mesmo de seus fãs envelhecerem. O fenômeno se repete na literatura, marcada por atualizações de Shakespeare e Jane Austen, biografias de figuras históricas e romances que replicam a estrutura de best-sellers anteriores. A indústria cultural como um todo parece ter se rendido à nostalgia como estratégia de sobrevivência.
A moda, talvez mais do que qualquer outra expressão cultural, torna esse movimento ainda mais evidente. Cada década retorna como se estivesse esperando na esquina: “Back to the 70’s”, “revival dos anos 1990”, “Y2K está de volta”. As vitrines e as redes sociais se tornam espelhos de um tempo que insiste em se repetir, como se a imaginação estivesse presa ao retrovisor. Recentemente, a volta da estampa de poá foi acompanhada por frases como “o poá nunca sai de moda”, mas, na prática, tratou-se apenas de mais uma tentativa de reconstruir a silhueta e a estética dos anos 1950 e, como tantas tendências atuais, durou menos de um mês. A moda, que antes era um retrato da sociedade, agora se baseia em resgatar tendências passadas. Mas será que isso também não seria um retrato da sociedade?
Essa reciclagem de arte, por mais que não traga nada inovador, parece agradar o público, ou, pelo menos, contê-lo. A indústria utiliza esse fenômeno a seu favor. Afinal, se não houvesse audiência, não haveria motivos para a Marvel lançar sua vigésima série em cinco anos, ou para a Zara criar uma coleção inteira de poá. Mas então, se a produção cultural deixou de inovar, por que o público se satisfaz com isso?
Em tempos de instabilidade, a nostalgia funciona como abrigo. O passado, mesmo idealizado, oferece estabilidade e pertencimento diante de crises econômicas, sociais, políticas e climáticas. Assistir a filmes antigos, ouvir músicas de décadas passadas ou vestir tendências já consagradas torna-se uma forma de encontrar coerência em meio ao excesso de estímulos. Como já mostrado por diversas pesquisas na área da psicologia, a nostalgia não é apenas um saudosismo inofensivo, mas ela também opera como uma estratégia de regulação emocional, reduzindo a sensação de desconforto e reforçando a maneira como o indivíduo se percebe ao longo do tempo.
É justamente essa saturação que conecta nostalgia e pensamento crítico. Em um mundo acelerado, a repetição não é apenas uma escolha estética, mas consequência de um modo de vida que reduz o tempo disponível para questionar. As redes sociais aceleram esse ciclo com microtrends que duram semanas, nascem viralizadas e desaparecem antes de se consolidar. Tudo passa rápido demais para ser analisado e, por isso mesmo, tende a ser aceito sem reflexão. Consumimos porque nos disseram, gostamos porque foi visto muitas vezes.
Esse ambiente favorece a perda gradual do pensamento crítico. Em Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han argumenta que vivemos na era da produtividade, na qual o “tempo perdido” é indesejado. Sem pausas, silêncio ou tédio, que são condições fundamentais para pensar, o indivíduo preenche cada lacuna com estímulos rápidos, superficiais e repetitivos. O excesso de informação gera menos elaboração, não mais. Gostos, opiniões e desejos passam a ser moldados antes mesmo de serem percebidos como escolhas.
O crescimento da inteligência artificial (IA) aprofunda esse fenômeno. Ferramentas que prometem poupar tempo começam também a poupar o esforço de pensar. Algoritmos sugerem não só o que consumir, mas como interpretar o mundo. Quanto mais o indivíduo delega à tecnologia o trabalho de filtrar e organizar a realidade, menos exerce o hábito de questionar. Assim, a influência midiática, que é ampliada pela IA, ganha uma força sem precedentes, enquanto o pensamento crítico se enfraquece por desuso.
O passado, antes fonte de densidade cultural, agora é reduzido a fragmentos estilizados, reproduzidos mais pela promessa de pertencimento do que pela busca de significado. Esse sentimento reconfortante do passado, por mais que pareça uma procura legítima por coerência, acaba sendo capturado e mercantilizado. Diante de um público fragilizado e incerto, a repetição se torna um porto seguro e, justamente por isso, um produto fácil de vender. A nostalgia deixa de ser escolha e passa a ser oferta. O que era memória vira mercadoria.
E é nesse ponto que a pergunta final emerge: quando tudo ao nosso redor se transforma em repetição, o que ainda pode ser considerado novo? Talvez a resposta não esteja em rejeitar o passado, mas em recuperar a capacidade de dialogar com ele sem depender dele. A inovação não precisa ignorar o que veio antes, mas precisa ir além da cópia. Enquanto não conseguirmos isso, continuaremos caminhando para frente com os olhos fixos no que já passou.
Autoria: Lara Celani
Revisão: Pedro Anelli
Arte da capa: Pinterest







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