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A ARTE DA CONVIVÊNCIA



"Não vivo em mim; torno-me parte daquilo que me rodeia", Byron


Há alguns dias, passei um fim de semana com meus pais em uma cidadezinha chamada São Francisco Xavier. Chegamos algumas horas depois do que havíamos planejado, devido ao habitual atraso do meu pai, e após uma longa viagem de carro, com ele falando sem parar e com minha mãe se irritando com o waze.


Demos a sorte de, por causa desse tempo maluco de São Paulo, pegar um fim de semana frio e uma casa com lareira. No primeiro dia, fui comprar lenha com meu pai na cidade. Ele elogiou a igrejinha e notou que havia uma pizzaria no meio da estrada que aparentava não ter sido avisada de que a cidade estava há uns 800 metros na outra direção. Leu várias placas como "Cachoeira Pedro Davi" e "Trilha da Toca do Muriqui" e falou que teríamos que voltar para fazer as trilhas. Meu pai também mencionou que havia muitas barbearias na cidade e que o supermercado tinha uma quantidade espantosa de câmeras de segurança.


No dia seguinte, voltei à cidade com a minha mãe. Ela elogiou a igrejinha e notou que havia uma pizzaria no meio da estrada que aparentava não ter sido avisada de que a cidade estava há uns 800 metros na outra direção. Leu várias placas como "Cachoeira Pedro Davi" e "Trilha da Toca do Muriqui" e falou que teríamos que voltar para fazer as trilhas. Minha mãe também mencionou que havia muitas barbearias na cidade e que o supermercado tinha uma quantidade espantosa de câmeras de segurança.


Não, isso não foi um erro de digitação. Você realmente acabou de ler o mesmo parágrafo duas vezes, porque os dois fizeram exatamente os mesmos comentários ao visitar a cidade. Foi como viver um déjà-vu, mas com pessoas diferentes. Agora você deve estar pensando que estou exagerando ou que isso foi uma ocorrência muito rara, mas se passasse um dia interagindo com meus pais perceberia que digo apenas a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade (sim, vou colocar uma frase de Direito no meio deste texto, afinal, as horas de aula precisam servir para alguma coisa, não?).


Enfim, você presenciaria meus pais comentando as mesmas coisas, sem terem ouvido um ao outro, como "Você já renovou o passaporte?", "O clube precisa construir uma pista de curling" — se você nunca viu curling, imagine transformar passar roupa e enxugar o chão em um esporte e saberá do que se trata —, "Eu adoro o Toddy" — não o achocolatado, mas um cachorro, apesar de os dois absolutamente se recusarem a ter qualquer bicho de estimação — e "De novo essa roupa?", como se tudo tivesse sido perfeitamente ensaiado.


Meus pais são completos opostos, mas às vezes acho que são a mesma pessoa. Sim, sim. Sei que já tem um nome para isso: convivência. Mas, acho que essa viagem e um post que vi no Instagram me fizeram perceber a beleza desse fenômeno.


No post estava escrito: “Eu faço lamen da forma que um amigo me ensinou no primeiro ano do ensino médio. Todo outono, eu ouço uma playlist feita para mim por um menino por quem eu cruzei uma fronteira para beijar. Eu como sushi, porque uma menina que não fala mais comigo me fez provar, e comida indiana, porque os pais da minha melhor amiga pediram para mim antes de que eu soubesse que gostava. Há filmes que amo, porque alguém que amo os amou primeiro. Eu sou um mosaico de todos que já amei, mesmo que só por um instante.”


Assim, comecei a olhar para os meus pais de outra forma. Comecei a analisar que traços eram intrinsecamente seus e quais foram adquiridos por osmose, na convivência com o outro. Meu pai, por exemplo, tira os sapatos ao entrar em casa, pois minha mãe o ensinou, e todas as noites minha mãe fecha as janelas, porque meu pai sempre reclama delas abertas. Concluo que, apesar de terem seus próprios temperamentos e personalidades, após mais de 25 anos de convivência, eles, seus hábitos, expressões, gostos e desgostos foram se tornando uma linda aquarela, com as tintas do meu pai se mesclando às da minha mãe.


Não é apenas em relações tão duradouras quanto um casamento que vejo os impactos da convivência. Também os vejo na minha vida, como é descrito no post que mencionei. Percebi que eu e a maioria das minhas amigas da escola falamos "nhooo" ao invés de "awww" ou "ownn" ao ver algo fofo, porque uma amiga nossa inventou a expressão e todas adotamos. Sempre uso a receita de cookies que uma amiga me apresentou e constantemente me vejo adotando gírias e expressões que ouvi ao meu redor. Li Apanhador no Campo de Centeio por muita insistência de uma amiga e ela leu O Mundo de Sofia em troca. Quando minha sala leu Persuasão, da Jane Austen, para a aula de literatura, das mais de 220 páginas do livro, das mais de 5.003 frases, eu e uma amiga nos encantamos pela mesma: “Seu estado de espírito precisava da solidão e do silêncio que só um grande número de pessoas pode conferir” (página 90, frase 18).


Olho para o meu vocabulário, cheio de expressões emprestadas, meu armário, com roupas que comprei com minhas amigas, meus filmes e livros favoritos, que assisti acompanhada em sua maioria, e aquilo que como, porque um dia alguém me ensinou a gostar. Percebo meus traços tornarem-se difusos, perco-me dentro da pergunta "Quem sou eu?". Sou um pouco das pessoas das quais escolhi me aproximar, sou eu e sou todos à minha volta.


Sou, não, somos o resultado da arte da convivência, o incrível ato de um equilibrista, que se transforma um pouco naqueles que o cercam, sem perder aquilo que é.



Autoria: Sofia Nishioka Almeida

Revisão: Guilherme Caruso e Beatriz Nassar

Imagem de capa: Love, Glittering shards

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