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A FORÇA DO RISO



“Rir é um ato de resistência”. Desde a semana passada não consigo tirar essa frase da minha cabeça. Seu dono, Paulo Gustavo, ator e comediante brasileiro, se foi no dia 4 de maio, mais uma vítima da COVID-19. Ele era um símbolo muito forte da cultura brasileira contemporânea. Seus filmes da série “Minha Mãe é uma Peça” sempre lotaram os cinemas e tiraram risadas de todos os seus espectadores, dos 8 aos 80. Além de criativo como humorista, Paulo também trazia críticas e reflexões em suas performances. Ele fazia do humor mais do que somente um instrumento da comédia: era um ato social e político provocado pelo riso. Sua morte trouxe-me, e creio que a outros também, um convite à reflexão: o que é o humor nas nossas vidas?


Acredito que, considerando onde chegamos em termos de complexidade da nossa vivência, o riso e a comédia têm o papel primordial de refúgio. O progresso do conhecimento no mundo contemporâneo não é meramente uma base para descobrir respostas, mas também uma base para revelar perguntas. A cada passo que damos em direção a novas descobertas, todo o processo ontológico chega a múltiplos questionamentos. O que aplicamos hoje está realmente certo? Precisamos mudar o sistema? Estávamos errados até agora? Uma avalanche de incertezas que fazem parte do processo científico e provocam a mudança e a evolução nas mais diversas áreas do conhecimento, mas que também trazem uma pitada de incertezas perturbadoras. Política, cultura e sociedade não escapam desse cenário, são também fontes poderosas de alvoroço no cotidiano social, principalmente o brasileiro. O humor entra como um escape, uma rota de fuga dos sentimentos ruins de insegurança e até de receio que podem vir em função de acompanhar a vida nacional.


Acordamos com notícias ruins de decisões erradas, de posicionamentos políticos absurdos e de devastações provocadas por nós ou pela natureza. No atual contexto, isso ocorre literalmente a cada hora. Os números, as taxas e todo tipo de informação que não para de gritar nos nossos smartphones, noticiários, rádios... É compreensível o sentimento de estar vivendo o fim do mundo. Até porque estamos mesmo. Mas o fato de que todo esse alvoroço serve também como ingrediente para memes, piadas e vídeos humorísticos tira um pouco desse peso obscuro da complexidade humana e da vida social. Sobretudo tratando de política, rir efetivamente se torna um posicionamento. O cômico é um alívio dos sentimentos que surgem quando lemos, por exemplo, que um presidente se posicionou contra a vacina para a doença — que matou, até agora, 3,3 milhões de pessoas no mundo — por “razões” políticas. O humor é uma maneira de nos desviarmos da desesperança. Nesse sentido, rir é, sim, um ato de resistência. É estabelecer que as atrocidades não nos abalam completamente, que não provocam a desistência ou a conformidade com o desastre. Afinal, estamos rindo.


Preciso, contudo, completar a fala de Paulo nesse ponto. Rir é um ato de resistência que também pode se tornar um ato político, se acompanhado não só de posicionamento, mas de proposta. Encontrar humor nas catástrofes políticas é como sobrevivemos na confusão constante da vida em sociedade e se utilizar dessa forma de defesa como uma arma para lançar novas propostas é um método muito poderoso de organização político-social. Rir, então, pode e deve ser acompanhado de reflexões que provoquem mudanças, o que torna o humor um caminho possível para recusar a inércia diante de acontecimentos que nos incomodam. Ele é um verdadeiro artifício para a mobilização.


É claro que, aqui, trato do cômico que tem como objeto posicionamentos políticos ou atos de pessoas públicas e, por isso, pode criar essa repercussão reflexiva. O humor não precisa necessariamente ser político: existe o “rir por rir” e ele também é de extrema importância nas nossas vidas. É uma forma de aliviar a existência como seres racionais que percebem tudo e enxergam os problemas apavorantes do mundo. Existência essa que, como já defendi, pode se tornar muito dura e simplesmente triste. Não precisamos viver sempre pensando; aliás, os momentos em que não pensamos e simplesmente rimos de algo bobo e engraçado são deliciosos e tornam as reflexões doídas mais suportáveis. Como fã de “The Office”, preciso incluir aqui a concepção do personagem Michael Scott, gerente do escritório no qual se passa a série. Como um chefe que tenta sempre fazer o papel de palhaço no cotidiano monótono dos seus empregados, trabalhadores do tedioso ramo da indústria de papel, seu objetivo é, obviamente, nos fazer rir. Porém, também nos induz a refletir sobre a necessidade dos minutos divertidos que colorem minimamente o dia a dia monótono. O humor sem objetivos políticos e sociais é imprescindível.


Entretanto, esse aspecto leviano da comicidade não pode servir de desculpa para conceber vias de intolerância. Acredito que muitas pessoas e boa parte dos humoristas também defendam que, por mais que o humor seja subjetivo e que possa ser criado a partir das mais diferentes situações, utilizá-lo para rebaixar um indivíduo, uma classe, um gênero, uma raça ou qualquer grupo social pode facilmente se tornar um ato de opressão. Criar piadas que repetidamente incomodam um grupo, aflorando sentimentos de menosprezo e exclusão, e tratá-las como “brincadeira” ou "gozação" reduz o cômico à violência. Pior ainda, uma violência velada que tenta se esconder no riso. Isso é também um ato social, mas um de humilhação e de abuso, indo contra todos os outros propósitos tão positivos e indispensáveis do humor.


Paulo Gustavo foi, para mim, um dos maiores humoristas brasileiros que tive o prazer de prestigiar. Fez com que eu risse e refletisse com sua comédia completamente inclusiva e acessível, unindo tudo o que considero admirável do humor em suas performances. Artistas como ele abrem nossos olhos para a vida das mais diferentes maneiras e esse é um dos papéis mais importantes da cultura. Como comediante, Paulo foi brilhante e me fez chorar de rir no cinema assistindo à Dona Hermínia representando todas as mães do Brasil em uma só. Também, me faz chorar de tristeza internamente por havermos perdido essa mente maravilhosa, mas creio que podemos homenageá-lo de uma forma muito simples, porém poderosa: rindo. Encontremos humor no bobo e no sério, porque precisamos disso. No segundo, não vamos só “rir pra não chorar”, riamos com todas as forças do passado, do presente e do futuro como forma de resistência a tudo o que nos inquieta. E mais: tornemos isso uma oportunidade de reflexão e mudança que inclua todo mundo. Creio que esse é um legado que Paulo ficaria orgulhoso de haver deixado.



Revisão: Bruna Ballestero

Imagem de capa: Reprodução / ABC DO ABC


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