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A FÊNIX BRASILEIRA: GLÓRIA MARIA MATTA DA SILVA



Faltava um minuto para a primeira transmissão ao vivo da televisão brasileira ser realizada quando, de repente, a lâmpada que viria a iluminar a repórter queimou. O jeito foi usar a luz da Veraneio — carro esportivo utilizado pela equipe de reportagem —, conta Glória Maria.


Apesar de pioneira em diversos momentos da trajetória da televisão brasileira, a estrela do jornalismo nacional e internacional não se importava de ser lembrada como a protagonista do telejornalismo. Não tinha a vaidade de ser a precursora de momentos históricos, estava preocupada em viver.


“Eu nunca pensei que estava sendo a primeira. Eu nunca tive tempo de pensar. Para mim, foi tudo sendo tão natural [...] Eu não imaginava, eu não olhava em volta da redação e via que só tinha eu [referindo-se ao fato de ser a primeira mulher negra a entrar ao vivo na televisão]. Não dava tempo de racionalizar. [...] Todo mundo faz história. Eu nunca pensei em fazer história, porque a história já estava ali”, conta Glória no podcast Mano a Mano.


Nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória Maria Matta da Silva era filha de um alfaiate e de uma dona de casa que não tiveram a oportunidade de estudar, mas que lhe deram a liberdade ter um futuro diferente. Durante os Ensinos Fundamental e Médio estudou em escolas públicas e, com uma bolsa de estudos, cursou jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a PUC-Rio.


Aqui não especificaremos datas. Glória odiava datas. Segundo ela, nada do que se fala de números sobre sua vida está correto. No podcast Mano a Mano, que tem como anfitrião o rapper Mano Brown, a repórter fala que contar os anos nunca foi um hábito de sua família.


Ela recorda que poucos parentes foram registrados na data correta. O fato retrata assertivamente a realidade brasileira antes dos anos 2000, mas que, em menor proporção, ainda é presente em diversas regiões do país. No passado, muitas famílias encontravam diferentes empecilhos para conseguir ir ao cartório fazer o registro de nascimento, como distância e falta de recursos financeiros. Por isso, adiavam a ação e, muitas vezes, aguardavam o próximo filho nascer para assim “economizar a viagem”. Por isso, hoje, muitos adultos e idosos possuem suas verdadeiras datas de nascimento como uma incógnita.


Diferente do que se imagina da tradicional família brasileira, Glória conta que, na sua casa, as coisas eram um pouco diferentes. Ao começar pela pessoa de maior autoridade na família, sua avó, umbandista que adorava uma roda de samba no quintal. Por outro lado, seus pais católicos garantiram que ela fosse batizada na igreja cristã. Ela conta que o futuro planejado às meninas do seu entorno não era casar, afinal, poucos na sua família se casaram, mas sim adquirir e repassar os conhecimentos da matriarca. Um desses conhecimentos foi a coragem e outro foi o dom da escuta. Coragem para ser realista e encarar os momentos bons e ruins que a vida lhe proporciona, e a escuta para aprender e conhecer o outro.


O tempo é tempo, não é número. Glória não queria que a idade fosse um fator limitante para suas ações. Ela queria ter a oportunidade de viver intensamente suas experiências como jornalista recém formada ou repórter com 15 passaportes carimbados. Gostava de se desafiar, de conhecer seus limites e encarar seus medos, não pela adrenalina ou pelo sentimento de poder, mas pelo conhecimento. Glória acreditava que, dessa forma, conhecia o outro lado de sua alma, conhecia verdadeiramente a vida.


Um dos momentos mais especiais de sua carreira foi apresentar o Fantástico, programa da Rede Globo de reportagens especiais. Infelizmente, o período de alegria também foi marcado por infelizes episódios de racismo. Durante os primeiros anos de trabalho no horário nobre da televisão, a repórter recebia cartas e telefonemas com ofensas racistas que a acusavam de roubar o lugar de mulheres brancas.


Outro episódio marcante foi aquele com o General Figueiredo, no período da Ditadura Militar. Segundo Glória, o presidente a detestava. Assim, todas as vezes que ela chegava para cobrir uma notícia em um local onde ele estava, o General dizia: “Tira aquela 'neguinha' da Globo daqui”, contou a jornalista em uma entrevista no programa Conversa com Bial.


Muito mais que momentos difíceis em que teve que enfrentar o racismo escancarado e velado, Glória Maria teve sua vida marcada por episódios admiráveis, além de conhecer o mundo, culturas, histórias e celebridades de todos os cantos.


Subiu duas vezes o Himalaia, onde colecionou histórias divertidas de choque cultural; participou da cobertura da Guerra das Malvinas, por iniciativa própria — ela solicitou ao diretor que a deixasse ir; cobriu a invasão de guerrilheiros à residência do embaixador do Japão no Peru, uma das séries de reportagens mais desafiadoras de sua carreira; saltou do maior bungee jump do mundo, em Macau; entrevistou o rei do pop, Michael Jackson, com quem passou horas conversando atrás das câmeras, Freddie Mercury, Madonna e, várias vezes, o seu artista preferido, o Rei Roberto Carlos.


A fênix brasileira. Durante algumas entrevistas após sua recuperação e cura de um tumor no cérebro, Glória gostava de comentar sobre a sua sobrevida, sobre a nova oportunidade que teve de viver, de voltar a trabalhar, de curtir as filhas e de fazer o que mais amava, viajar.


Glória Maria, quando criança, não tinha em quem se inspirar. Sua família era pobre e sem cultura — segundo a própria jornalista — não havia formados ou alguém que tivesse trilhado um caminho diferente do comum. Nos jornais, livros e televisão, não havia muitos negros, muito menos mulheres negras. Ainda sim, a repórter encarou o mundo que muitos não queriam que pertencesse a ela. Glória Maria não tinha uma força inspiradora, mas tinha a coragem para se tornar uma — ainda que essa não tenha sido diretamente sua intenção.


Glória Maria nos deixa fisicamente, mas um pouquinho dela renasce em cada menina preta e periférica que um dia brilhará nos telejornais ou na internet, e que a teve como inspiração: Glória Maria faz com que elas acreditem que é possível, e que o mundo também as pertence.


Revisão: André Rhinow, Anna Cecília e Beatriz Nassar

 

FONTES:


Mano a Mano. Entrevista com Glória Maria. Dezembro de 2021.

Roda Viva. Entrevista com Glória Maria. 14 de março de 2022.

Conversa com Bial. Entrevista com Glória Maria. Setembro de 2020.


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