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A MORTE QUE NOS FAZ VIVER



Quando eu era criança e meus pais iam para um encontro me deixando sozinha para adormecer, pensava muito sobre a morte. Pensava “Quando a gente morrer a gente nunca, nunca, nunca, nunca, nunca mais vai voltar. Mas o que é nunca? Como assim nunca?!” Demorava pra dormir agoniada com meus pensamentos. Morria de medo da morte.


Muitos anos depois, já mais madura, comecei a pensar sobre a morte. A ideia do que o “nunca” significava ainda me assustava, assim tomei a decisão de enfrentar esse medo de algum modo. Nos livros que lia, via a morte sendo tratada de diferentes jeitos e então fiquei pensando sobre como queria que fosse a minha. Quer dizer, não exatamente como vou morrer — acho que não adianta colocar energia nisso agora —, mas o que quero que aconteça depois que eu morra. Sempre pensei que queria ser cremada e jogada no mar, mas todo mundo quer isso, até mesmo pessoas com quem não acharia confortável passar minha vida após a morte. Logo terei que decidir outra coisa. Tenho uma amiga que quer ser cremada e dividida em copos de shots para depois ser bebida por seus amigos, o que considero um pouco perturbador.


Vou partir, portanto, do que não quero. Não quero de jeito algum ser enterrada. Cemitérios são os lugares mais perturbadores que já visitei. Corpos em decomposição abaixo de seus pés, presos para sempre em caixas pequenininhas, nas quais nem o dedo de sua alma consegue se mexer. Também não quero ser cremada e colocada em uma urna. Iria me deparar com o mesmo problema dos caixões, com exceção do fato de que não teria vizinhos moribundos.


Então quero ser cremada, mas não sei onde quero ser despejada. Talvez em uma cachoeira, com a água revitalizante e gelada, que sempre alimentou minha vitalidade. Parece-me uma boa opção. Pelo córrego minhas cinzas desceriam, algum animal iria bebê-las junto com a água ou elas se juntariam a alguma planta e eu voltaria para a natureza, meu lugar de origem, podendo ser inserida de volta no ciclo da vida. Mas não sei se tenho certeza sobre a cachoeira, terei que ponderar mais sobre o assunto.


***


Não é mais sobre minha morte. Agora é sobre a morte dos outros, a morte que me faz sofrer pois é a morte em que eu estou viva. Por volta dos meus doze anos, minha cachorrinha Bela morreu. Morreu uma morte traumática. Alguma veia em sua orelha estourou e, quando a peguei no colo, seu sangue correu pelos meus braços, manchando a minha roupa e descendo até as minhas pernas. Eu inteirinha suja de sangue, esperando meus pais chegarem do mercado. E a Bela longe de mim, sendo cuidada pelo pessoal que estava perto na praça. Lembro que tomei banho aos prantos enquanto via, sob meus pés, água e sangue, sangue e água. Talvez imaginasse que era meu sangue, pois bem que poderia ser. Nunca havia tido contato com a morte e ali estava ela diante de mim, no lugar que antes era de minha cachorrinha. Em minhas veias agora corriam lágrimas e meu sangue se ia com o de Bela pelo ralo do chuveiro.


Tive outro encontro com a morte quando tinha quinze anos. Minha tia avó morreu. Foi minha primeira perda de parente. Ela estava no hospital havia tempo. A tristeza me abateu, mas não desmedidamente. Foi nessas circunstâncias que visitei um cemitério pela primeira vez. Saí horrorizada. E Vó Dida nem foi enterrada, ela foi colocada em uma daquelas gavetas. Imagine isso. Nem todo mundo tem dinheiro para ser enterrado e mesmo se tivesse, não haveria espaço. Então por que não enfiar as pessoas em gavetas, empilhadas em um prédio e trancadas com concreto? Mas, o que mais me marcou com a partida de Vó Dida foi um sonho que tive alguns meses depois, sonho tal que se repetiu no começo desse ano. Nele eu estava jantando na casa de minha Vó Cecinha e de repente senti uma sensação completamente nova, completamente bizarra. Era como se a alma de Vó Dida tivesse entrado em mim e eu a senti, ela estava dentro de mim. Acordei subitamente, tremendo, tremendo muito.


Meu terceiro e mais recente encontro com a morte foi no início desse ano, com dezesseis anos. Meu vô de olhos azuis e bigode grosso e grisalho, depois de meses batalhando com o câncer, morreu. E o período de luto de sua morte foi um dos mais esquisitos de minha vida. Eu tinha acabado de voltar de um acampamento onde fiz amizades maravilhosas e vivi dias muito felizes. Cheguei em casa exalando felicidade. No dia seguinte, deitada em meu lençol branco com a parede branca ao meu lado, fui acordada pelo meu pai com uma cara melancólica. Na hora que abri os olhos ele disse “Seu avô morreu”. Meu avô morreu. O Vô Leo morreu. Morreu e agora eu não vou vê-lo mais. Dei um abraço em meu pai e corri para procurar minha mãe, que estava aos prantos. Abracei-a. Era a única coisa que poderia fazer. Abraçá-la. Porque não há palavras que possam confortar diante da morte de um pai. Então a segurei com todo o amor que pude.


Pegamos um avião para ir para o Rio e enquanto estava ouvindo música e olhando pela janela fiquei pensando no meu avô. Fiquei pensando na minha felicidade do dia anterior, em como dois polos se encontraram e foram obrigados a conviver. Então, durante a ponte aérea, escrevi algumas coisas em meu caderninho, vou transcrevê-las para cá.


“O que é o luto?


Estou com saudades do meu vô. Estranho pensar que essa frase poderia se aplicar a qualquer momento da minha vida com exceção de algumas férias. Eu cresci longe de meu vô. Mas hoje minha saudade se tornou permanente. Eu não vou mais ver ele. Nunca mais. Talvez o veja de modo desconhecido pelos que vivem.


Nunca na minha vida senti o que estou sentindo agora. Uma tristeza que parece banal se chamada assim. Ao mesmo tempo estou feliz por poder estar sentindo isso. Estou me sentindo incrivelmente estranha.


Quando você morre, você vira tudo: tudo que te forma já formou outro algo e tudo que te forma vai formar outro algo. Como lidar com a morte? Entendendo o que ela é enquanto conceito. Entender o que a morte significa especificamente para você. Falando sobre ela. Planejando seu funeral. Pensando sobre ela e vivendo lembrando dela.”


Alguns meses depois escrevi sobre o velório do meu avô:


Azul da cor do mar


Carro estacionado, seu capô refletindo o sol e absorvendo aquele calor de Maricá que não parece existir em lugar algum. Atravessamos a rua e entramos em um estabelecimento pitoresco. Na entrada, faixas: “Desconto da funerária: coroa de flores, duas pelo preço de uma”. Tia Catia e Tia Dola de olhos inchados devido às circunstâncias. Trocamos abraços e palavras de conforto, estas sem muito efeito. Lembro que falamos dos olhos, aqueles olhos azuis esplêndidos que somente Cecília teve a sorte de receber. Desatravessamos a rua e passamos pelo portão. Tio Carlos, Janine e Tio Casé nos olhavam. Mais abraços e palavras de conforto. Decidimos, então, entrar: a primeira capela à esquerda. Respiro fundo despreparada para minha reação. Lá está ele. Ou melhor: era lá que ficava ele. Me aproximo. Não sei como deveriam ser as feições de um morto então as descrevo com possível imparcialidade: seus lábios estavam delicadamente puxados para os lados, como o esboço de um sorriso de quem usa aparelho; seus olhos, pálpebras na verdade, descansavam. Não havia nada franzido. Meus pensamentos são interrompidos por um moço com pó e pincel na mão. Ele se aproxima e reboca o falecido. Passa maquiagem em um morto. Pinta um corpo sem vida. Algumas palavras de conforto ecoam em meus ouvidos e o tal do maquiador de defuntos continua a enfeitar o caixão. Maquiador de defuntos e decorador de caixões. É nesse momento que realmente reparo no resto do caixão. Vô Leo era alto e encorpado. Era alto e encorpado e aquele caixão era baixo e estreito. Ele não está apertado aí? Coro em sinfonia me assegura que não. Será que o toque faz sentido nessa situação? Sei que me arrependerei se não o tocar uma última vez. Tasco-lhe um beijo na testa e meus lábios sentem a superfície gelada. Superfície gelada naquele calor de Maricá.


***


Finalizo aqui, caro leitor, mais um texto sobre a morte. Pode ser que muitos evitem falar sobre ela e, quando falam, o façam de modo superficial. No entanto, não podemos cair nessa rotina. Precisamos reinventar o modo como lidamos com a morte. Já ouvi várias vezes que o Butão é considerado uma das nações mais felizes do mundo. Fui procurar mais sobre isso e descobri que um dos grandes motivos de tal felicidade tem origem no modo como eles lidam com a morte. Eles falam e pensam sobre ela no mínimo cinco vezes por dia. É como se, ao pensar sua vida diária a partir da ótica de que um dia você vai morrer, a felicidade pudesse ser mais plena e você pudesse entender melhor o motivo das escolhas que toma. Vivemos em um país que sempre desvalorizou a vida. Mata-se como se não fosse nada e, nesse momento, a morte está diante de nós de maneira monstruosa. Ela paira por entre as pessoas, está em toda esquina. Nós a vemos em forma de números. Números que tendem a crescer enquanto não entendermos o que eles significam de fato. Cada um desses números significa uma vida que se foi. Uma pessoa que fazia outra sorrir, que amava e era amada, que tinha uma comida preferida e que gostava de visitar determinado lugar. E não podemos nos deixar esquecer. Devemos lembrar dessas pessoas e devemos continuar falando sobre a morte. Porque ela está logo ali. Afinal, estamos aqui só esperando ela chegar. Então por que não falar sobre ela?

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