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A PRESENTE DISTOPIA

No texto de hoje, nossa redatora Luiza Castelo traz uma visão bastante aprofundada a respeito dos mundos distópicos que dialogam não somente com um futuro devastador, mas também com as suas origens no presente. Seria este o momento perfeito para se imaginar uma distopia, tendo em vista que a estamos vivendo diariamente? Venha ler para entender mais!

Distopias parecem ter seus momentos de pico quando as projeções sobre o futuro se tornam muito ruins. Os períodos entre e pós-guerra geraram obras como 1984 e Admirável Mundo Novo. A guerra fria abriu espaço para produções como Fahrenheit 451, o Senhor das Moscas e A Revolta de Atlas. Mesmo a trilogia Jogos Vorazes, ápice da nova geração de romances distópicos, foi concebida enquanto Suzanne Collins assistia à televisão, e um canal transmitia cenas da guerra do Iraque enquanto o canal seguinte transmitia um reality show.


Para Maria Elisa Cevasco, professora de literatura da USP, as projeções do futuro que são criadas na ficção são apenas uma visão sobre o presente; e um presente triste projeta um futuro pior ainda. Distopias nada mais são do que nossos medos atuais projetados e ampliados para o futuro. Independentemente da mídia, a popularidade das distopias cresce de maneira proporcional ao medo que temos do presente e, consequentemente, do futuro.


Independentemente do fato gerador de um universo distópico, os temas explorados são sempre os mesmos: desigualdade social, autonomia de inteligências artificiais, vírus e doenças desconhecidas que assolam a humanidade, governos autoritários, corporações malignas, devastação do meio-ambiente, altos níveis de poluição e a restrição de direitos civis. Em uma distopia, esses são os resultados irremediáveis do presente. Está aí o ponto de oposição entre a utopia e a distopia: enquanto uma oferece uma promessa de um futuro melhor, a outra oferece um aviso.


Atualmente, vivenciamos uma das mais graves crises sanitárias da história da humanidade, que vem acompanhada de uma onda conservadora como não é vista há décadas. Governos autoritários ganham força ao redor do mundo e avanços que foram conquistados no campo dos direitos humanos estão sob grave ameaça. No Brasil, a má gestão da pandemia pelo governo Bolsonaro já acumula mais de 96 mil mortos por COVID-19, o que coloca o país em segundo lugar no ranking mundial, superado apenas pelos Estados Unidos. A população brasileira está desempregada, passa fome e tem acesso restrito a serviços de saúde e educação. Ataques aos direitos humanos e liberdades civis são feitos diariamente. Nossas instituições estão fragilizadas e no comando da nação se encontra um militar psicótico e caricato. Perdemos o prazo para avisos. Estamos oficialmente vivendo em uma distopia.


Shauna Shames e Amy Atchison, cientistas políticas e coautoras do livro “Survive and Resist: the Definitive Guide to Dystopian Politics,”, afirmam que toda distopia é política. “Distopias são fictícias, mas governos reais podem ser distópicos”. Para elas, uma distopia é geralmente um alerta sobre algo ruim que um governo está fazendo ou algo bom que está deixando de fazer. “Distopias fictícias nos alertam sobre futuros evitáveis; esses alertas podem nos ajudar a prevenir um verdadeiro fim da democracia”.


Shames e Atchison dividem distopias em três tipos, baseados na presença ou ausência de um Estado funcional. O primeiro é o clássico cenário de "1984", em que um governo excessivamente poderoso infringe liberdades e direitos individuais. O segundo seria o cenário das “capitocracias”, cenários distópicos que não parecem autoritários à primeira vista, mas nos quais há uma violação de direitos humanos e devastação ambiental em função da excessiva influência do mercado na política e na economia. É o cenário do filme Wall-e, por exemplo, no qual o CEO de uma poderosa multinacional é também o presidente dos Estados Unidos. Nesse tipo de distopia, trabalhadores e consumidores são explorados pelas indústrias e o meio ambiente é uma das maiores vítimas. O terceiro tipo de distopia representa o absoluto fracasso de um governo e o colapso das instituições que o compõe. São os failing states, do qual nos fala Moses Nain. É a distopia de Mad-max, ou do Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, em que a humanidade reverte a um primitivo "Estado de Natureza".


Para as autoras norte-americanas, os Estados Unidos ainda não se tornaram uma distopia. Apesar das ameaças do governo Trump, elas alegam que o país ainda conta com instituições democráticas funcionais, o habeas corpus e a liberdade de expressão ainda são assegurados e a população ainda é capaz de se revoltar contra a desumanização e a perseguição de minorias. Eu me pergunto por quanto tempo teremos o luxo de dizer o mesmo sobre a situação brasileira.


Em um argumento mais cínico sobre o "entretenimento" distópico, a escritora e jornalista Jill Lepore adverte que ter sido avisado sobre algo não é sinônimo de estar precavido contra a chegada deste mesmo algo. Lepore tem uma visão pessimista sobre o consumo de distopias no século 21. Para ela, as brilhantes distopias baseadas na luta por direitos abriram espaço para a criação de um subgênero desse tipo de ficção: o dos “futuros sombrios para adolescentes entusiasmados”. Geralmente protagonizada por um herói adolescente, essa variante se comunica diretamente com os jovens que se sentem traídos por um mundo que se mostrou muito pior do que lhes parecia quando eram mais novos. Para Lepore, essa é uma literatura baseada na absoluta falta de esperança na política e nas instituições. Ela apela a todos, à esquerda e à direita, porque não demanda qualquer tipo de imaginação moral ou política e requer do leitor apenas que aproveite a companhia de pessoas cujos medos do futuro se alinham confortavelmente com o seu próprio. “Distopias costumavam ser uma forma de ficção de resistência”, explica a autora. “Se tornaram uma ficção de submissão, a ficção de um século 21 solitário e sombrio, onde não há confiança. (...) [Essa ficção] não é capaz de imaginar um futuro melhor, e não pede a ninguém que se esforce para construir um. Sua única advertência é: se desesperem mais”. Para Lepore, esse sentimento de “pessimismo radical” já contribui, por si só, para o enfraquecimento do Estado de Direito e suas instituições.


Durante a primeira década deste século, cenários pós-apocalípticos se tornaram uma verdadeira máquina de fazer dinheiro. O colosso de Jogos Vorazes, Divergente, The 100 e outros best-sellers e sucessos de bilheteria que marcaram o começo do milênio, deixando claro que o fim do mundo era um tema altamente lucrativo. O exemplo mais recente talvez seja o videogame The Last of Us part II que, lançado em junho de 2020, vendeu mais de 4 milhões de cópias em apenas dois dias. Contudo, não há necessariamente uma grande busca por mudança por de trás da produção e consumo desse tipo de conteúdo. Como antecipava Marx, no capitalismo, tudo se transforma em mercadoria. Mesmo as críticas ao sistema são reificadas. Na cultura pop, a distopia acabou banalizada e transformada numa estética atraente que arrecada milhares de dólares em merchandise. Tornou-se símbolo de um desconforto com o sistema, mas na maior parte das vezes, não nos provoca à rebelião e à mudança.


Lepore afirma que, se a utopia é o paraíso, a distopia é o paraíso perdido. Enquanto a utopia promete um futuro ideal, a distopia retrata o futuro que não deu certo. Nesse sentido, ter um debate sobre distopias como gênero de ficção já é, por si só, um grande privilégio. A lista de sintomas de um universo distópico, tal como narrado pelo mundo das letras ou do cinema, em pouco se afasta da descrição do cotidiano da maioria dos habitantes do planeta. Para esses não houve sequer um paraíso idealizado que fosse possível perder. Para a grande maioria das pessoas pessoas, o futuro sobre o qual a ficção vem nos alertando já chegou há décadas.


E nesse cenário eu me pergunto: qual é o futuro que o nosso presente projeta? Ouso dizer que não estamos num momento propício para escrever grandes distopias. Em períodos de crise absoluta em diversas esferas da sociedade civil, como o atual, não há futuro a ser projetado. Estamos sendo inteiramente consumidos pelo medo do presente. Não tenho dúvida de que o nosso tempo será responsável por uma esplêndida leva de distopias cheias de avisos sábios para as gerações futuras, mas elas talvez sejam escritas posteriormente, quando atravessarmos o ápice da crise e formos capazes de refletir sobre ele com lucidez. O momento atual é de ação, não de alertas. O futuro chegou. E agora?


Fontes:



Foto da capa: Chelsea Stahl - NBC News

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