No texto de hoje, nossa redatora Ingrid Bonfim apresenta os desafios e injustiças vividos pela juventude preta em um país que encurta a trajetória de vida de pessoas negras. Venha entender como, através do Rap nacional, denúncias contra um Estado genocida são feitas, e a maneira como elas se mostram necessárias em meio à onda de racismo que assola o Brasil.
“Olhei no espelho, Ícaro me encarou Cuidado, não voa tão perto do Sol Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei O abutre quer te ver de algema pra dizer: Ó, num falei?!”
(Trecho da letra de “Ismália”, de Emicida - 2019)
De algema ou drogado, no chão, sem sonhos e sem vida. Se eu deixasse só a letra dessa música já seria muito, diria muito e faria sentido. Mas tem quem ouve como melodia e não como grito. Vou facilitar para esses aí, aproveitar e gritar daqui.
Em Ismália, Emicida resgata Ícaro, da mitologia grega, para lembrar que, para alguns, a liberdade não é tangível, é quase. Inebriado pela beleza do sol, o personagem esqueceu o conselho de seu pai e voou alto demais. A tentativa frustrada de fugir de Creta culminou em sua morte nas águas do mar Egeu. Descobriu que ser livre é sonho.
Ágatha Félix, 8 anos; Kauê dos Santos 12 anos; Marcos Vinícius, 14 anos; João Pedro 14 anos, Guilherme Silva Guedes, 15 anos... Muitos, muitos outros! A bala acerta quem mal teve tempo de sonhar. Assim, o “quase” é uma sombra que acompanha o corpo negro desde a infância e está lá para lembrá-lo de que a plenitude é dos brancos. Em casa, andando pela quebrada ou indo para a escola, crianças e jovens descobrem que, para eles, ser livre é quase.
“Olha quantos corpos negros aí Estirados no chão Olha quantos sonhos negros aí Estirados no chão Olha quantos filhos negros aí Estirados no chão”
(Sangue, Suor e Lágrimas part. 2, Max Souza - 2017)
Uma multidão apática olha os corpos e se pergunta: o que eles fizeram para estar ali? Gastam 10 minutos tentando justificar e se esquecem na semana seguinte. E na boca podre da mídia, os filhos estirados no chão viram notícia, em um processo constante de desumanização. Em outras palavras, a desumanização de jovens como Guilherme se mostra presente quando, primeiro, condenam a reação legítima de quem não aguenta mais perder um dos seus, para depois pensarem que uma vida foi covardemente interrompida.
Enquanto isso, as Marias tentam provar que suas crianças não mereciam ser mortas. E, em uma tentativa de humanizar os seus filhos – que soa como um pedido de socorro e um grito por justiça –, elas dizem: “ela [Ágatha] só tirava dez na escola, queria ser bailarina”, “ele [João Pedro] ia para a igreja, era um bom menino”, “meu filho [Marcos Vinícius] estava com a camiseta da escola quando foi atingido”.
Sob um Estado genocida, a juventude preta passa a vida tentando não morrer e comprando a ideia de que, se você tirar boas notas, conquistar uma medalha ou um diploma, vai se tornar mais humano, sair da frente do alvo, fazer a bala desviar e fazer com que aquele “quase” desapareça e te deixe ser livre. Mas o Rap alerta: “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo” (Ismália).
E, assim, os meninos continuam correndo para chegar em um topo que não seja o da estatística. O problema é que a polícia pode entrar na sua casa, te confundir com um suspeito, achar que seu guarda-chuva é um fuzil, te sequestrar e te matar. Porque. na periferia, o braço coercitivo do Estado mata. Na Paulista, acena com as mãos cheias de sangue para quem defende ditadura. Em Alphaville, abaixa a cabeça.
“Tiros e tiros e tiros Os menino levou 111 (Ismália) Quem disparou usava farda (Meu crime é minha cor) Quem te acusou nem lá num tava (Eu sou um não lugar)”
(Ismália)
Até este texto ser publicado, mais quantos dos meus serão assassinados?
Citações:
Emicida - Ismália: https://www.youtube.com/watch?v=4pBp8hRmynI Max Souza - Sangue, Suor e Lágrimas Parte 2 (Part. Sarah Guedes, Kainná Tawá e Djonga): https://www.youtube.com/watch?v=7HSx54hKfcU
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