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A REFORMA




Aquela batida incessante pregava a minha cabeça, como se quisesse me escavar para finalmente tirar algo dali. O frio me impedia. Do estômago para cima ele me gelava, a falsa apatia. Doía muito, porque aquele prego perfurava camadas que desconhecia. Não era possível aquilo, como podia? Inexplicável, de fato. O ritmo descompassado era atordoante. Um tormento nervoso de pura incerteza. De medo. Vulnerabilidade que não sei de onde vinha, mas estava lá nas minhas entranhas. Imagino um vácuo entre elas onde isso devia estar guardado a sete chaves. Quem abriu essa trava maldita, maldito era.



Noutro dia, a batida veio mais forte e espaçada, estilhaçando tudo a sua volta. Fiquei com receio de que caísse todo o edifício, ainda bem que suas fundações eram bem fincadas no chão, resistentes. No final, foi uma pancada que estremeceu por dentro. Gesso, vidro e concreto ruíram por entre as tubulações do exaustor do meu banheiro. O incômodo foi tremendo, mas, ao fim do expediente, dormi em paz.



A reforma seguiu por dias a fio, corroendo o meu sossêgo. Minha paz se esvaía de dia, quando era forçosamente relembrada daquilo que não queria. Resolvi dar uma pausa, tomar um café. Café não me deixa sem sono, acho que me deixa mais cansada. Queria dormir. Afinal, dormindo eu tenho meu mundo paralelo, que, independente de qualquer coisa, não doí.



Num dia em que acordei atrasada, deixei de lado o café e segui meu caminho. Quando desci do ponto, vi um pombo estraçalhado no asfalto. O semáforo ia fechar para mim, então corri e quase fui atropelada por um motoqueiro impaciente ou desatento. O cheiro, contudo, daquelas vísceras de bicho se misturava com o cheiro de lixo e a umidade daquele tempo chuvoso, que permaneceu comigo durante toda a caminhada até meu destino. Neste dia, cheguei mais tarde em casa, então não fui incomodada pelas marteladas.



Na mesma semana, vi pelo menos mais dois pássaros dilacerados na rua. O que será que deu com eles? Antes os pássaros reagiam melhor aos carros. Será que os carros estão na verdade mais silenciosos e rápidos? Provavelmente. Ou os pombos estão emburrecendo. Só queria voltar. Estava evitando o barulho de minha casa, mas se eu voltasse antes das 18:00, provavelmente ainda escutaria as batidas.



Chegou uma fase em que a obra ralentou o seu ritmo. A batida passou de galopes para pontadas. Ficou mais lenta. Enfraquecia aos poucos, mas se fazia presente de tempos em tempos. Do nada. O tempo era o ecossistema dela, era como se expressava e onde se alojava. Era um relógio sem ponteiro. Não me convinha tanto porque, mesmo assim, eu via o tempo passar.



Quando a aceitei como uma medida abstrata, a batida me incomodou menos. Ela não estava na mesma dimensão que eu. Ela se afastara há muito tempo. A abertura causada por ela se manteve, mas o sangue estancou. Uma leve camada de coagulação me protegia dias após a última martelada.



Bastou o esforço de um sorriso para fazê-la sangrar de novo.




Autoria: Maria Eduarda Neuburger Freire


Revisão: Guilherme Caruso


Imagem de capa: Le Double Secret, René Magritte (1927)



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