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RUBBER SOUL: 60 ANOS DA PRIMEIRA OBRA DE ARTE DOS BEATLES

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Na segunda metade de 1965, os Beatles passavam por um momento singular. No ano anterior, haviam feito a sua estreia na televisão americana e atingiram o ápice da fama, conquistando milhares de fãs a cada dia. Também conheceram um de seus maiores ídolos: Bob Dylan, responsável por apresentar o quarteto de Liverpool àquilo que seria uma ferramenta crucial para suas aventuras musicais dali em diante: a maconha. No início de 1965, os Beatles trabalharam em Help!, seu 5º álbum de estúdio, que continha parte da trilha sonora do filme de mesmo nome por eles protagonizado. Ainda, realizaram, em agosto, um histórico show no Shea Stadium, em Nova York, para mais de 55 mil pessoas. Era, definitivamente, o ponto alto na carreira dos quatro rapazes.


Quando retornaram aos estúdios Abbey Road, em outubro de 1965, os Beatles traziam consigo novas vivências e experiências. Além da maconha apresentada por Dylan, que já trouxera um ar diferente para a sonoridade de Help!, eles tiveram contato com novos gêneros musicais oriundos dos Estados Unidos, em especial o Funk, o Black e a Soul Music.


Da junção de todas essas influências externas com a genialidade intrínseca do quarteto surgiu Rubber Soul, 6º álbum de estúdio da banda, que marcou uma virada não somente na carreira dos Beatles, mas também no cenário musical como um todo.


Aqui, não existem mais as letras românticas e fofinhas dos álbuns anteriores. Mais do que nunca, agora a musicalidade da banda era marcada por letras profundas e reflexivas, instrumentais bem trabalhados e carregados de novos instrumentos e técnicas de gravação inovadoras. O título se comunica com isso tudo: um trocadilho com a tentativa britânica e branca de imitar a Soul Music negra americana, fazendo uma “alma de borracha”.


A arte da capa é uma história à parte: após uma sessão de fotos na casa de John Lennon, o fotógrafo Robert Freeman, responsável por outros trabalhos de capa dos Beatles como o próprio Help! e seus antecessores, Beatles For Sale e A Hard Day’s Night, usava cartolina para aumentar as imagens tiradas, deixando-as do tamanho de discos, para que os rapazes pudessem ter uma ideia melhor e escolher a capa do próximo álbum. Entretanto, um acidente ocorreu e deixou uma das fotos distorcida. A admiração foi instantânea: não era mais necessário qualquer trabalho, a capa estava escolhida. Os olhares distantes, cansados, fechados e vermelhos dos Beatles, bem com o fundo verde-escuro e a distorção da imagem passavam bem a energia de “disco da erva”, apelido carinhoso dado ao álbum por Lennon.


O álbum começa com os dois pés na porta com o riff de abertura de “Drive  My Car”, faixa composta majoritariamente por Paul McCartney. Nela, acompanhamos um rapaz contando sobre sua namorada que sonha em ser famosa como atriz, e que diz para ele que, quando ela for famosa, ele pode ser seu motorista particular. A faixa é marcada pelo groove trazido pelo baixo de McCartney e a bateria de Ringo Starr, característico da Soul Music. Também, a guitarra de George Harrison é um dos pontos altos, além dos pianos que acompanham o refrão, tocados pelo brilhante maestro George Martin, produtor da banda. A temática da música, em especial a história da garota que desejava ser uma atriz famosa, pode ter sido influência da relação de McCartney com Jane Asher, sua namorada na época, que sonhava justamente em fazer sucesso no cinema, sonho este que nunca teve apoio de McCartney. Essa relação é o que dá norte à maioria das faixas escritas pelo baixista neste álbum.


A seguir, recebemos a clássica “Norwegian Wood (This Bird Has Flown)”. A letra, composta por John Lennon, trata claramente de um caso extraconjugal que o beatle teve na época, provavelmente durante alguma das intermináveis turnês. Entretanto, por mais lírica que seja a letra, o ponto maior está na instrumentalidade: o violão de cordas de aço tocado com força por Lennon, em contraste com sua voz suave, é acompanhado por uma cítara, instrumento indiano tocado com maestria por George Harrison. Essa foi a primeira vez que os Beatles utilizaram a cítara em uma música, demonstrando o início de seu interesse (em especial o de Harrison) pela música e cultura indiana. O instrumento voltaria a aparecer em faixas marcantes da banda, como “Love You To” e “Tomorrow Never Knows”, do álbum seguinte, Revolver, “Within You, Without You”, do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, e “The Inner Light”, que saiu como single.


Após isso, somos apresentados a mais um groove Soul de McCartney: “You Won’t See Me”. Aqui, novamente ele trata sobre os conflitos que tinha com Jane Asher a respeito do sonho de carreira da atriz, que, como já disse, recebia grande reprovação de McCartney, que acreditava que ela deveria ficar em casa e se preservar. Por mais contraditória que seja a opinião do beatle, vale ressaltar que ele ocupava o posto número 1 na lista de pessoas mais famosas do planeta desde muito jovem, e sabia na pele como isso era desgastante e cansativo, ainda mais para jovens na casa dos 20 anos como eles – talvez por isso fosse tão contrário ao sonho de fama de Asher. Na letra, Paul fala justamente sobre não ser ouvido e não ter seu lado considerado por ela nessas discussões. O destaque vai para as harmonias de John e George que acompanham os vocais de Paul, formando um som característico da Soul Music e do Funk.


A faixa seguinte, “Nowhere Man”, é bonita, melódica e simbólica. Uma das últimas escritas por Lennon para o disco, fala sobre a sensação que o beatle tinha de estar perdido no meio de um vasto mundo de possibilidades. Lennon se descreve como o “homem de lugar nenhum”, sem gostos, sem visão de futuro, sem opinião própria. A faixa serviu de referência para o filme biográfico de Lennon, intitulado Nowhere Boy (2009) – no Brasil, chamado de O Garoto de Liverpool. O destaque central da música está no vocal de Lennon, que mistura sentimento e apatia de uma forma maestral, e nas harmonias realizadas por George e Paul, que, pessoalmente, me lembram um pouco o trabalho dos Beach Boys, banda americana considerada rival dos Beatles na época.


A seguir, George Harrison apresenta a primeira das duas faixas por ele compostas nesse disco: “Think For Yourself”. A letra é inspirada na música “Positively 4th Street”, de seu grande ídolo e amigo Bob Dylan, e nela George fala sobre o término de um relacionamento como metáfora para fazer críticas sociais severas, dizendo para as pessoas pensarem por si mesmas e não se deixarem influenciar por fatores externos. Nos instrumentais, o destaque vai para o trabalho de baixo de Paul McCartney: aqui, ele grava uma linha normal de baixo, e depois adiciona outra camada utilizando um pedal de fuzz no instrumento, que deixa o som mais cheio e faz o baixo funcionar como uma “terceira guitarra”, dando ainda mais profundidade ao som.


Em seguida, vem mais um toque Soul, desta vez escrito por John Lennon. “The Word” volta no tema de amor já característico dos trabalhos anteriores dos Beatles, mas dessa vez não de uma maneira romântica clichê, mas sim num tom mais reflexivo a respeito de um Amor Universal e maior, que habita em todos os seres, e que funciona como chave para desbloquear a Luz da Consciência – um prelúdio do que viria a ser o movimento hippie dois anos mais tarde. Na parte instrumental, o baixo mais uma vez toma o protagonismo, trazendo um groove potente, além de um riff de um instrumento chamado harmônio, uma espécie de órgão em que o som sai por meio de um fole e passa por tubos de metal, tocado por George Martin.


Fechando o lado A, temos “Michelle”, famosa balada de amor composta por Paul McCartney. A letra, com trechos em francês e somada ao som calmo do violão, passa essa energia de romance e paixão, mas que vai aos poucos se transformado em um desespero pessoal para conseguir a pessoa amada, sem perder o romantismo: a passagem dos gritos de “I love you” para “I need you” nos refrões de McCartney é um exemplo claro disso. O solo, composto por George Martin e tocado por Harrison, é mais um toque especial de  uma das músicas mais bonitas do álbum .


Virando o disco, abrimos com “What Goes On”, faixa composta por Lennon em 1959, que recebeu uma tentativa de gravação por ele e McCartney em 1963, mas que não foi para frente. Agora, a faixa é reinventada com um estilo mais country, e Ringo assume os vocais principais. Na letra, acompanhamos um rapaz que passa por problemas no relacionamento, e busca entender o lado de sua parceira, questionando o que se passa na cabeça dela, em uma tentativa de não perder seu grande amor.


Em sequência, vem outro clássico de Lennon: “Girl” utiliza um som acústico inspirado na música grega e um vocal sentimental para descrever um arquétipo de mulher forte, intensa e certeira, que desperta o mais profundo sentimento de desejo em quem a vê. John, mais tarde, relatou que, na época, descrevia seu tipo de mulher ideal, que encontraria alguns anos mais tarde em Yoko Ono. Além das guitarras, do vocal e da letra, as harmonias, mais uma vez semelhantes ao trabalho dos Beach Boys, ganham novo destaque na faixa. Vale também a recomendação da maravilhosa versão brasileira da música, gravada por Ronnie Von em 1966, intitulada “Meu Bem”.


Para variar um pouco as composições de McCartney, a próxima ainda relata seus problemas de relacionamento com Jane Asher. Em “I’m Looking Through You”, ele relata uma tentativa de reconhecer na amada alguém que ela já não é mais, e coloca nisso mais razões para os desentendimentos. As guitarras são um tom à parte: distorcidas, passam um tom pesado e animado para a música, principalmente quando se juntam ao vocal gritado de Paul nos refrões.


Agora, chegamos no que considero o verdadeiro ponto alto do disco: “In My Life” é uma das mais famosas e mais bonitas letras dos Beatles. Após o lançamento de seu livro autobiográfico In His Own Write, John Lennon leu uma crítica dizendo que ele deveria explorar mais o tema da infância e da nostalgia em suas canções. Daí, surgiu “In My Life”, uma ode ao passado, às memórias, aos amigos e aos amores que marcam nossas vidas. Na parte instrumental, tudo se encaixa, mas o foco central é o solo de piano tocado por George Martin, que dá um toque a mais na faixa. Esta também recebeu uma versão em português, dessa vez na voz da eterna Rita Lee, na música “Minha Vida”.


A próxima faixa, “Wait”, foi inicialmente gravada para o álbum Help!, mas acabou ficando de fora, e foi reutilizada aqui. A letra, escrita por Paul, mais uma vez relata suas questões de relacionamento com Jane Asher, dizendo que ela deveria esperá-lo em qualquer momento da vida: seja para seguir com seus sonhos, seja após um possível término ou para qualquer coisa, ela deveria esperá-lo e não deixar nenhum dos dois só. No instrumental, as guitarras de George, com um pedal de efeito que dão uma pegada bem característica à música, a bateria marcante de Ringo e o vocal compartilhado por Lennon e McCartney completam a poesia musical.


Agora, em contraste às letras de Paul, a segunda faixa de George, “If I Needed Someone”, é uma das mais românticas do disco. Nela, George declama seu amor por sua então noiva, a modelo Pattie Boyd (que foi musa inspiradora de muitas músicas não somente do beatle, mas de outros companheiros posteriores, como Eric Clapton). Na musicalidade, George utiliza uma guitarra de 12 cordas e é muito influenciado pela música “The Bells Of Rhymney”, da banda The Byrds, e na cultura musical indiana em geral. 


Fechando o disco, entra a polêmica “Run For Your Life”. Para escrever a faixa, John se inspirou na música “Baby Let’s Play House”, de Elvis Presley. Apesar de o trabalho de guitarras ser magnífico, a letra tira todo o brilho que a faixa poderia ter: “Eu prefiro vê-la morta, garota / Do que vê-la com outro homem”. Lennon posteriormente admitiu se arrepender de ter escrito a faixa e declarou desprezo total pela música e por sua mensagem.


De modo geral, Rubber Soul é um disco excelente. Além de servir como marco na carreira dos Beatles, mostrando novas influências musicais e psicodélicas, o álbum também apresenta uma evolução do quarteto de Liverpool, com arranjos mais complexos e letras que fogem da simplicidade e do clichê e abraçam um lirismo quase que poético. As inovações em técnicas de gravação, utilizando instrumentos de outras culturas e colocando toques da música clássica barroca no pop rock, serviram de base para tudo o que viria pela frente no mundo da música.


Rubber Soul é uma obra prima à parte. Até Help!, os Beatles faziam música. A partir de agora, eles fazem arte.


Autoria: Pedro Anelli

Revisão: Ana Clara Jabur e Sarah Costa

Imagem da capa: Amazon


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