Nosso redator, Felipe Takehara, traz uma cativante crônica que traduz sublimemente todos os sentimentos por trás de uma simples viagem. Esta é uma história singular, dentre centenas de outras que ocorrem diariamente.
Não se pode bobear no Terminal Rodoviário Barra Funda, pensou João Tadeu, ao chegar ao formigueiro de gente. Desceu da condução carregando sua mala e bolsa térmica, e se dirigiu às escadas, acompanhando a marcha infinita. Chegando ao piso principal, após sair da passarela, João Tadeu começa a perguntar a quem passa, ingenuamente, onde fica o lugar que se sobe nos ônibus, pois mal percebe ele, conscientemente ou não, que há placas e sinais que informam, em letras garrafais e diferentes cores, onde fica o que e como chegar lá, o mínimo que se espera em lugares públicos densamente frequentados. Mas é o costume de João Tadeu o de todo brasileiro, o de pensar depressa e decidir mais rápido ainda, e não esperar um tanto e olhar em volta, por exemplo, numa situação como esta, para perceber as placas informativas tão evidentes e preciosas, pois que, seria um absurdo supor que toda essa gente que marcha aos montes aprendeu a chegar ao seu destino simplesmente tentando e errando, mais errando do que tentando, sim, mas absurdo maior ainda seria duvidar da capacidade deste povo de demonstrar esses comportamentos incríveis.
João Tadeu então chegou aonde precisa, o piso inferior do Terminal, plataforma número dezesseis, e espera na fila de embarque. Já esteve aqui antes, na verdade, já o fez mais de uma vez, mas como é um homem que viaja pouco, também pouco importa a memória do local onde se embarca nos ônibus interestaduais do Terminal Rodoviário Barra Funda. Quer dizer, viajou pouco, mas viajou muito, pois é João Tadeu um desses guerreiros que vão a muito longe de ônibus, tão longe quanto ir, por exemplo, a João Pessoa, na Paraíba, partindo-se de Itaquiraí, no Mato Grosso do Sul. Destino este que está perseguindo agora, para onde também vai Inês, mulher com quem João Tadeu compartilha o assento duplo e uma história sobre outra viagem que fez, tragicômica inclusive, na qual, em vez de chegar a João Pessoa, terra que o criou, foi parar em Eunápolis, na Bahia. Pois João Tadeu não entendeu a explicação do rapaz do guichê, de que não há viagem direta de Itaquiraí para João Pessoa, porquanto a longa distância e escassa demanda não o permitem, e, portanto, a condução termina em Eunápolis para que os passageiros se transfiram a outro veículo destinado a João Pessoa, tudo isto incluído no valor da passagem, é claro, mas João Tadeu não captou e concluiu que o rapaz o enganou e despachou-o para Bahia, o que prolongou mais ainda a viagem e fez inchar suas pernas, mostrando com as mãos à mulher o diâmetro que elas ficaram, ao que Inês respondeu, rindo, “Misericórdia”.
O som das vozes de João Tadeu e Inês preenchiam o ar, os assentos, e o corredor. A palavra inchar na fala de João Tadeu fez Inês refletir um pouco, pois lhe ocorreram desconfortáveis memórias ao ouvir o termo, como a morte de seu pai após o pipocar de um AVC, o que a magoou um tanto e produziu um estranho silêncio, mas de qualquer maneira, superou-o, e a João Tadeu disse isto, “Então, agora, não sei, diz que a pessoa quando bebe muito, fuma muito, e a pressão sobe, diz que o coração incha”, e o homem, com obscuro orgulho, replicou-lhe, “Claro que incha! Quando meu coração tava inchado, a minha pressão foi vinte e dois. Eu cheguei no posto de saúde, o médico largou quem tava consultando pra me socorrer. Eu cheguei, viu, com os zói deste tamanho e vermelho. Aí ele falou, ‘se vai dá uma parada cardíaca, venha cá ligeiro!’. Aí já me aplicou injeção na veia, me deu soro. Depois que eu fui nesse médico de lá, aí minha pressão controlou, é catorze, treze, doze, mas é, ela foi até vinte e dois!”.
“Agora, quando incha assim eu não sei se é do bicho barbeiro, porque naquele tempo, que nem nós, não sei o senhor, se morava em sítio também, mas tinha muito aquele bicho né”, disse Inês. “Rapaz, lá pra Paraíba, hoje não, que hoje ninguém vê, mas antigamente, a gente era muito pobre naquele tempo, fraco, a gente deitava em rede ou em colchão no chão, e quando amanhecia o dia, era aquele bichão tudo cheio de sangue. Eu digo que, acho que antes de eu morrer, vou sentir essa doença ainda. Porque meu irmão já tá, minha irmã já tá, lá na Paraíba, com doença de Chagas, minha mulher também tem problema de Chagas”. Essas últimas afirmações de João Tadeu foram intercaladas com um “Hmm”, em tom triste, evidentemente, por uma visivelmente empática Inês cada vez que ele falava sobre um familiar, porquanto a família daquela, múltipla e pobre como a dele, sofreu e sofre de trauma semelhante.
“To com quarenta anos que eu saí de lá, vai completar quarenta anos que eu vim da Paraíba pro Mato Grosso”, disse João Tadeu, melancólico. “Já não gosto mais de farinha, também de cuscuz, desacostumei, a comida deles lá, ave maria, é duas semanas com a barriga inchada.” Os dois riem ao mesmo tempo. Já está a escurecer. Falar sobre comida fez se lembrar João Tadeu da bolsa térmica. Na verdade, não queria trazê-la consigo, pois nem sua era. “Tenho uns sobrinhos em São Paulo, eles falavam que eu não andava comendo, ‘não, vai levar sim’ me disseram, e me colocou café me colocou bolacha, até sacolinha me colocou. É muito legal aquele povo pra mim, Deus o livre”. João Tadeu cuidadosamente apalpa o vulto que está embrulhado pela sacolinha. É bolo o que seus sobrinhos puseram. É verdade que papel alumínio quebra um galho, mas serviria bem, era o melhor na verdade, que o tivessem colocado em alguma vasilha de plástico ou recipiente sólido, com algo para espetar a doçura, um garfo, uma colher, guardanapos também seriam ótimos, mas agora é tarde, e João Tadeu está com os dedos sujos.
Há um algo nisto que é a gente brasileira, já muito estudado e avaliado pelos eruditos sob vários matizes, julgando-o um ativo precioso ou mácula intrínseca do nosso subdesenvolvimento, que é a tal da cordialidade ou pessoalidade presente no nosso trato com o estranho e o desconhecido, espécie de afeto inconsciente que penetra nas mais diversas interações, simples e complexas, evidenciado nesta conversa entre Inês e João Tadeu, que aliás nunca se viram antes, e já estão a dizer, ao menos este, sobre sua família, as doenças que ela têm, e, agora, se a senhora Inês aceita um pedaço de bolo.
“Onde que o senhor tava lá?”, perguntou Inês. “Na casa do meu irmão”. “Não, é na onde é o lugar”, “Ah, não é, é no Itaim Paulista! Eu cheguei lá antes de ontem, mas já to indo embora porque arrebentaram a porta da minha casa lá no sítio”, disse o homem. Continuou, “Mas não roubaram nada, não sei por que. Aí deixei uma mulher lá pra ver pra mim, ela foi fechar a porta que arrebentaram, quebrou a chave”. Inês, espantada, mas nem tanto, pois conhece o povo que lá vive, disse, “Meu Deus, então mexeram lá no sítio”. “Mexeu. Eu acho que não roubaram nada não, a mulher não é doida, eu to pagando pra ela cuidar lá, assim, duas vezes por semana. Será que ela não viu se roubaram alguma coisa?”. “Ah se tivessem roubado ela teria avisado o senhor né”. “Tinha né. Ela falou que ficou com medo de entrar lá dentro de casa, aí chamou a nora dela, e entraram. Não tinha ninguém. A porta tava aberta, a luz acesa, e disse que não tinha nada roubado. Se roubaram alguma coisa, não viu, é doido é. Agora, amanhã cedo, se Deus quiser, eu to lá, e lá pro meio dia ou onze horas eu to em casa”, explicou João Tadeu.
E seguiram conversando esses estranhos, ao longo da viagem, até onde a consciência de estar acordado lhes permitiu, pois é demorado e cansativo este trajeto, são quinze horas e 1.090 quilômetros de viagem, sentados nesses confortabilíssimos assentos da “classe executiva”, e os motoristas são orientados a realizarem apenas duas paradas ao longo do caminho. Inês estava distraída por um momento, a prestar atenção em conversa entre duas mulheres que se sentavam à sua frente, e percebeu, olhando ao lado, que seu companheiro de viagem já estava dormindo. João Tadeu sonhou que viajava ao lado de seus sobrinhos, e que estavam voltando à Paraíba, dessa vez de avião.
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